Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Nunca antes na história do país uma mulher havia sido eleita para ocupar o principal cargo da República. Que diferença isso fez? Por Marcos Visnadi

“Presidenta!”, disse a voz rouca de Lula, enquanto abraçava sua sucessora recém-eleita. Embora o feminino da palavra esteja no dicionário pelo menos desde 1899, aquele momento em 2010 foi a primeira vez que o Brasil teve a chance de dizer esse “a” final ao mencionar o posto político de maior destaque do país.

 

Desde os primeiros meses de seu mandato, enquanto Dilma Rousseff reivindicava o gênero feminino da palavra que designa seu cargo em entrevistas e documentos oficiais, algumas redações de jornais e revistas, como era de se esperar, rechaçaram o “presidenta”, por ser “pouco usado” e causar “estranheza aos leitores”.

 

Mas não era só a palavra que causava estranheza. Ainda que Dilma seja “presidente”, o que há para dizer sobre uma mulher? Páginas e mais páginas foram dedicadas a discutir os penteados, as roupas e a maquiagem de Dilma. Sua estilista foi entrevistada, e de repente a indústria da moda se tornou um assunto primordial para o governo federal. Falava-se do peso, da postura, dos sapatos de Dilma como nunca antes se falou do corpo de nenhum presidente.

 

Para os movimentos sociais de gênero e sexualidade, no entanto, outras questões apareceram. Em um país em que o feminicídio mata em média uma pessoa a cada 1h30, ter uma mulher como chefe de Estado era uma esperança de que a cultura machista pudesse sofrer um grande abalo. Agora, chegado o último ano de mandato de Dilma e às vésperas de uma possível reeleição, representantes dos movimentos LGBT e feminista se dizem insatisfeitas com a atuação da presidenta e avaliam que a identidade de gênero já não é um ponto a favor da pré-candidata petista.

 

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Um tiro no pé

 

A relação do movimento LGBT com a presidenta foi tensa em diversas ocasiões. Já em 2011, Dilma vetou o kit anti-homofobia do Ministério da Educação, declarando que seu governo não faria “propaganda de opção sexual”. Em 2012, outro veto, agora a um vídeo da campanha de Carnaval contra a aids que mostrava um casal gay. E, no final de 2013, a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvati, teria, a pedido de Dilma, orientado a bancada governista a não votar o projeto de criminalização da homofobia (PLC 122/06) antes das eleições de 2014. Dias depois, o projeto foi enterrado pelo Senado.

 

“Ela brinca com a vida de 20 milhões de brasileiros LGBTs”, diz Cris Stefanny, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Cris conta que, em 2010, fez campanha para Dilma, pensando que sua eleição seria “um avanço para a esquerda brasileira e para os movimentos sociais, mas tudo não passou de engano e ilusão”. Segundo ela, o apoio de movimentos sociais à candidata petista foi “um tiro no pé”. “Ela é responsável pelo aumento das violências contra as pessoas em situação de exclusão, como travestis e transexuais”.

 

Esse aumento aparece nas estatísticas do Grupo Gay da Bahia, que no relatório de assassinatos de LGBTs em 2013 aponta uma alta de 14,7% no registro de crimes homotransfóbicos desde a posse de Dilma. Cris lembra que, segundo relatório da própria Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 51,86% desses assassinatos, em 2012, foram contra travestis: “Mesmo assim, o governo sequer tem um plano ou estratégia para diminuir esses números. A população fica sem resposta, sem proteção e sem direito algum”.

 

Para Yone Lindgren, da Secretaria de Mulheres da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), “qualquer governante receberá críticas, porque governa para todos e tem que agradar também aos homofóbicos”. Mesmo assim, ela acredita que Dilma “está muito tendente a fazer o que os fundamentalistas querem” e que “o governo Lula foi bem menos tenso e machista”. Cris Stefanny concorda: “É uma presidenta omissa, de punho fraco com os fundamentalistas da bancada evangélica e da bancada ruralista”. Ativista do movimento de luta contra a aids, Cris também afirma que houve um “retrocesso no combate à epidemia, com desrespeito a acordos firmados nos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula”.

 

 

Avanços e retrocessos

 

Rosângela Talib, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, acredita que diferenciar os mandatos de Dilma e Lula não seja algo tão simples. Ela lembra que após a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, o governo do então presidente enviou ao Congresso um anteprojeto de legalização do aborto, que logo foi engavetado. “Desde aquele momento, o PT lavou as mãos e disse: ‘Já fiz o que tinha que fazer [pela legalização do aborto], agora não vou mexer mais, isso é problema dos movimentos sociais e do Legislativo’”. Pelo menos com relação a essa questão, Rosângela avalia que é um posicionamento do Partido dos Trabalhadores não proporcionar mudanças via Executivo.

 

Apesar disso, Rosângela enxerga alguns avanços nas políticas de gênero no governo Dilma. Uma grande conquista, segundo ela, foi a aprovação no Congresso e a sanção da presidenta do PLC 3/2013, que regulamenta o atendimento às vítimas de agressão sexual. A ativista também cita a implementação das Casas-Abrigo (destinadas a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica) e o aumento no número de secretarias estaduais e municipais de Políticas para as Mulheres. No governo Lula, houve a sanção da Lei Maria da Penha e a criação de um ministério-chave: a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), que hoje conta com uma histórica militante feminista, defensora da legalização do aborto e dos direitos LGBT, a ministra Eleonora Meniccuci.

 

A posse de Meniccuci, em 2012, foi bem recebida pelos movimentos sociais. “A escolha foi digna e ela tem atuado bem, dentro de suas possibilidades”, diz Yone Lindgren. Para Rosângela Talib, a notícia de Meniccuci na SPM também foi bem recebida pelo movimento feminista – “mas desde o começo a gente sabia que não ia ter nenhum avanço com relação à questão do aborto lá dentro e isso ela deixou bem claro já quando assumiu”.

 

De fato, em sua primeira entrevista coletiva, após anunciada sua posse, Meniccuci se apressou a afirmar: “hoje, a partir de sexta-feira e do momento que aceitei com responsabilidade o convite da presidenta, eu sou governo e a matéria da legalização e descriminalização do aborto é uma matéria que não diz respeito ao Executivo, ela diz respeito ao Legislativo”.

 

 

Bruxa, lésbica, abortista

 

Essa declaração foi feita em meio a numerosos ataques de fundamentalistas. Ainda hoje, se você digitar o nome da ministra no Google, a palavra “abortista” é uma das primeiras com que o site sugere que se complete a busca. Nas imagens, fotos de bebês ensanguentados se alternam com xingamentos e acusações não só contra Meniccuci, mas contra outras ministras e, claro, contra a própria Dilma.

 

Já em 2010, a campanha eleitoral teve um forte tom sexista. Fora os insultos machistas comuns – como “bruxa” –, Dilma teve sua sexualidade questionada diversas vezes. Para Yone Lindgren, a presidenta foi alvo não apenas de machismo, mas de lesbofobia. Além disso, a oposição conservadora utilizou temas como a legalização do aborto e a criminalização da homofobia para polemizar a campanha e assim ganhar força nas estratégias eleitorais. Assessorada por gente como o senador Magno Malta (PR-ES), Dilma lançou uma carta dirigida aos religiosos, em que se comprometia a não interferir nessas questões caso fosse eleita.

 

Teriam esses ataques constantes interferido na sua atuação como presidenta? Luka Franca, militante da Setorial de Mulheres do PSOL e do Comitê pela Desmilitarização da Polícia e da Política, acredita que não. “No congresso do PT de 2010, quando ela foi nomeada como única pré-candidata do partido para disputar as eleições presidenciais, já havia sido apontado que temas ‘sensíveis’ não teriam grande peso na campanha.” Na resposta de Dilma aos ataques sofridos, Luka vê uma “escolha de lado”: “Ela preferiu garantir a estabilidade do governo com a direita homolesbotransfóbica, machista e racista do nosso país, no lugar de combater essas opressões de forma contundente e que ajudasse na auto-organização desses setores sociais.”

 

Para Luka, aliás, a nomeação de Meniccuci para a SPM e de Maria do Rosário, que tem um discurso pró-direitos LGBT, para a Secretaria de Direitos Humanos, foram “algo apenas cosmético”: “Inclusive porque são pastas que têm orçamentos limitados. Assim que a Dilma assumiu a presidência da República ela já cortou o orçamento de áreas sociais importantes para a vida de mulheres negrxs, LGBTs. Tem medidas paliativas para tudo, mas não tem força política real para fazer mudanças mais estruturais no Estado”.

 

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Mas, mesmo com todas as críticas, a presença de uma mulher na presidência não significa um avanço para o país? No caso de Dilma, Rosângela Talib diz que “é uma diferença muito mais simbólica que real. Não é porque é mulher que a pauta feminista esteja dada, tem muitas mulheres que não defendem essa pauta”.

 

Para Luka Franca, “é uma falácia achar que apenas a identidade de gênero ou a orientação sexual devem servir para definir uma eleição”. Ela lembra que, nos anos 80, na Inglaterra, a primeira-ministra Margareth Thatcher “vilipendiava os direitos das mulheres e da população em geral”. Questionada sobre a prioridade que mulheres recebem em programas como o Bolsa Família, Luka diz que o recorte de gênero nos programas sociais é importante e que esse é um avanço do ponto de vista da equidade e da representação, mas que não significa uma mudança estrutural no patriarcado brasileiro.

 

Lembrando das eleições de 2010, à luz destes últimos quatro anos, várias perguntas fermentam: será que a campanha de 2014 será novamente sequestrada pela direita? Se Dilma for reeleita, podemos esperar novos retrocessos para as vidas de mulheres e LGBTs? Há outrxs candidatxs possíveis? E qual a postura que nós, militantes pelos direitos humanos, devemos adotar? Para Luka Franca, “a militância feminista, LGBT e antirracista deve ser categórica em rechaçar qualquer tentativa de utilização oportunista da pauta, seja por parte da direita clássica, seja por parte do governismo”.

 

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A Geni procurou a Secretaria de Mulheres do PT reiteradas vezes, mas não obteve resposta.

 

Ilustração: Bárbara Scarambone.

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