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Coisa de gente grande

Eduardo Cunha usa a redução da maioridade penal e a criminalização do aborto para tirar a atenção de suas denúncias de corrupção. Por Daniel Mello

 

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O presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, acredita que parte das pessoas que praticam crimes no Brasil não recebe a punição merecida. Deputado pelo PMDB do Rio de Janeiro, ele poderia estar falando dos casos de corrupção que têm escandalizado o país, especialmente neste momento, em que 34 parlamentares são investigados em uma mesma operação policial — a Lava-Jato. Ou mesmo dos executivos e diretores de empreiteiras acusados de distribuir propinas para lucrar com contratos superfaturados na Petrobras. Mas não é o caso, até porque Cunha também está na lista de suspeitos.

 

Evangélico e reacionário, o deputado carioca tem se esforçado para pautar a redução da maioridade penal. Apesar de nenhuma passagem bíblica mencionar o encarceramento de crianças e adolescentes, o presidente da Câmara se entendeu muito bem sobre o assunto com o governador de São Paulo, o católico conservador Geraldo Alckmin (PSDB). Ambos estão unidos na defesa da Proposta de Emenda Constitucional 171 de 1993. Grande bandeira da Bancada da Bala (uma frente parlamentar integrada, em grande parte, por policiais), o projeto prevê que a partir dos 16 anos a pessoa seja tratada como um adulto pelo Sistema Judiciário. Só não há previsão de que a mudança diminua a violência. Apenas 1% dos crimes contra a vida são praticados por menores.

 

De qualquer maneira, o debate sobre o tratamento penal a crianças e adolescentes já começou a disputar espaço na mídia e nos corações da opinião pública com temas como a Reforma Política e a Operação Lava-Jato. Em seu blog na Carta Capital, o ativista de direitos humanos Douglas Belchior conta que o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), assumiu que sofreu pressão de Cunha para acelerar a votação do projeto.

 

 

Petrobras

 

Arthur e seu pai, o senador Benedito Lira, são outros citados nas investigações sobre os desvios bilionários na Petrobras. A Queiroz Galvão e a OAS, empreiteiras que investiram na candidatura malsucedida de Benedito ao governo de Alagoas, tiveram dirigentes presos pela Polícia Federal em razão das denúncias que provocaram a crise na petroleira. As empresas deram para o caixa da campanha, respectivamente, R$ 400 mil e R$ 500 mil. Como teve uma arrecadação robusta, Benedito repassou recursos para ajudar a candidatura do filho.

 

Em 2010, a Camargo Corrêa, empresa que forneceu companheiros de cela para os executivos citados na Lava-Jato, investiu R$ 500 mil para garantir que Eduardo Cunha pudesse continuar a ser a voz do setor privado no Congresso. A quantia foi uma das mais volumosas doadas pela construtura a uma campanha para deputado. Em 2006, o financiamento (R$ 40 mil) veio de outra suspeita, a construtora Odebrecht.

 

Além das empreiteiras, Cunha recebeu apoio de um amigo rico para se eleger a dois mandatos anteriores na Câmara. Eleito deputado estadual em 2014, Domingos Brazão declarou um Porsche valendo R$ 300 mil entre seus bens. Em 2010, Brazão fez diversas doações para a campanha de Cunha, em um total de R$ 64 mil. Dono de postos de gasolina, o deputado estadual tem a simpatia de grupos paramilitares que atuam na região de Rio das Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro, segundo depoimentos prestados na CPI das Milícias.

 

Brazão e Cunha compartilharam ainda um revés. Em 2012, os dois aliados foram condenados e multados por compra de votos. Isso porque, em 2006, Brazão preferiu poupar as próprias economias e usar o Estado para favorecer a si mesmo e ao amigo. Candidato a deputado estadual, concedeu descontos na conta de água para os condomínios que fixassem placas promovendo a dupla. Cunha disputava vaga na Câmara. A sentença, no entanto, veio tarde. Como os mandatos conseguidos com essa campanha heterodoxa acabaram em 2010, antes da decisão, ambos escaparam da cassação.

 

 

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Reforma política

 

A condenação, mesmo tardia, foi uma exceção na vida de Cunha. Os escândalos costumam apenas resvalar no deputado, sem acabar em responsabilização. À época do governo Collor, quando comandou a Telerj, foi atingido por denúncias de favorecimento à empresa NEC em contratos com a estatal. Mais tarde, teve de deixar a presidência Companhia Estadual de Habitação (Cehab) do Rio de Janeiro sob as suspeitas de fraudes nos contratos firmados em sua gestão.

 

Como as regras do jogo parecem ter ajudado até agora, o PMDB, partido do presidente da Câmara, não está disposto a grandes mudanças. A proposta de Reforma Política apresentada pela sigla mantém o financiamento empresarial das campanhas. O modelo beneficia quem pode pagar por seus representantes e propicia a corrupção na medida em que o setor privado busca retorno dos investimentos eleitorais ao negociar com o Estado.

 

Mas a atenção agora deve ser dividida com a redução da maioridade penal. Ainda que a proposta não faça nenhum sentido pela lógica da segurança pública e ameace aumentar o contingente de jovens vivendo no colapso do sistema prisional. O texto-base em discussão foi apresentado pelo ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF). Condenado em agosto de 2014 por improbidade administrativa, Domingos recebeu dinheiro para que o PP apoiasse o governo de José Roberto Arruda.

 

A quadrilha foi desbaratada com um conjunto de vídeos que mostrava deputados enchendo as cuecas e meias com dinheiro. Primeiro governador preso no exercício do mandato, Arruda amargou dois meses na carceragem da Polícia Federal. O então secretário de Transportes do Distrito Federal, Alberto Fraga (DEM-DF), é hoje um dos líderes da Bancada da Bala e um dos principais defensores da redução da maioridade penal.

 

No entanto, as discussões puxadas pelos conservadores como Cunha passam longe desses pontos. Apoiados em doutrinas supostamente morais e religiosas, esses parlamentares tentam empurrar a pauta do Congresso e da opinião pública para disputas retrógradas, muitas vezes atacando direitos conquistados por séculos de lutas e barrando novas conquistas. Caso a proposta da maioridade naufrague, o presidente da Câmara já apresentou, por exemplo, um projeto que proíbe o aborto mesmo nas situações previstas pela lei atual. Talvez seja essa a nova polêmica para ajudar a tirar a atenção dos fatos que acontecem nas entranhas da política institucional.

 

A capa da revista Veja que traz Cunha como um líder expoente é o retrato do momento. Apesar da ficha manchada por denúncias e associações suspeitas, há uma aposta no presidente da Câmara como um personagem capaz de enfraquecer o governo do PT. Essa conjuntura deve ser favorável ao deputado em eventual julgamento político, dentro da própria Casa ou até no Supremo, onde a pressão da opinião pública também tem peso. Por isso a tentativa forçada de limpar a figura de Cunha. Como se um jato de mangueira e algumas entrevistas pudessem apagar uma história tortuosa.

 

Daniel Mello é jornalista e documentarista.

Ilustração: Mariana Leme.

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