relato
Cecilia Silveira, Diretas Já, ditadura militar, Golpe de 64, marcha da família, número 10, Pedro Pepa Silva
De marcha a ré
O que vi na Marcha da Família, 2014. Por Pedro “Pepa” Silva
Perdi as contas de quantas vezes vi citada por aí a famosa frase do Marx de que a história se repete “primeiro como tragédia, depois como farsa”. Gente, isso é ironia do barbudo alemão: a história não se repete! O que se repete é a canalhice e a falta de noção (pra usar um termo caro à minha companheira de revista, Neusa Sueli).
O fato é que, assim como outros 137 jornalistas, corri pra Praça da República no dia 22 de março de 2014 pra ver de perto a canalhice de um grupo desmemoriado que comemorou o jubileu do regime militar em estilo vintage: propondo uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
A essa altura vocês já sabem que o resultado foi vergonha alheia. Mas não posso deixar de relatar o que vi. Nem de dizer que, se a ironia dá as caras aqui no texto, ela esteve um pouco distante daqueles 90 minutos em que estive lado a lado com os participantes – alguns deles skinheads. Veja a experiência de vida que acumulei: estar cercado por skinheads e desmemoriados e aplaudir quem estava lá no carro de som – esta foi a forma de proteger os meus 1,65 metro de altura e minha aura meio black bloc hipster, meio esquerdista (sendo-que-eu-não-mereço-isso e ainda tento disfarçar com uma projeção meio blasé, meio cínica – que eu penso que desempenho bem. #Aham!).
Mas o que vi na marcha que seria da família (essa coisa que nunca foi igual em tempo e espaço algum, mas que sempre merece ser salva nesse mundo louco de quem não tem Deus no coração) foi um número grande de homens brancos héteros maduros sozinhos. (Antes que você pergunte se eles tinham local ou se curtiam afeminados, respondo que naquele momento não acessei nenhum desses aplicativos satânicos de sociabilidade gay porque sou muito honestx e purificadx).
Não vi famílias – daquelas com pai, mãe, filhos, cachorro, papagaio, vovó. Vi algumas poucas mulheres camufladas pela bandeira do Brasil – que elas compraram lá mesmo de um moço (assim, moreno) que vendia o “lábaro-que-ostentas-estrelado” a dez reais enquanto lá no carro de som uma moça dizia que devíamos lutar contra o comunismo. Um rapaz na minha frente foi esperto: largou momentaneamente o cartaz escrito a mão (que dizia: “O Brasil já foi o país do futuro. Hoje flerta com o socialismo fracassado do passado”) para comprar de uma vez bandeira e capa de chuva. Vai que. Né?
“O comunismo matou milhões, a ditadura não conseguiu matar 400!” bradou um senhor segurando uma Nossa Senhora. Um outro mocinho (também, assim, moreno) passou vendendo uma cervejinha. Um banner no carro de som denunciava: “Querem expulsar Deus do Brasil” (e você ainda pensava que ele era brasileiro…)
Um senhor vestindo roupa vermelha foi hostilizado (só poderia ser do PT! Petralha!!!). Fui me chegando para o centro, onde pensei que, camuflado, estaria protegido. E nada melhor que cantarolar o Hino Nacional e aplaudir as denúncias que vinham do carro com a faixa “FFAA JÁ!”. O senhor com a santa passou o microfone para alguém que ouvi dizer: “… e graças a Deus eu sou heterossexual e muito bem casado!”. Clap, clap, clap.
Um rapaz (não reparei se era o mesmo de antes) passou com uma cartolina branca e os dizeres em hidrocor: “Solução para o Brasil: fechar para balanço e refundar com o que sobrar”. Uma mocinha jovem, bem branquinha, levantou rapidamente um cartaz: “Salve o fascismo!”. Achei que era pegadinha e preferi não entender quem ela apoiava. Cristina Peviani fez um discurso de apoio à PM (que nesse momento fazia uma meia-lua em volta da praça) e ofereceu flores a um coronel. (Pode ser que fosse outro o cargo na hierarquia, mas acho que “flores ao coronel” fica assim mais poético).
Alguns dos 137 jornalistas olhavam buscando cumplicidade e quase querendo fazer amizade. Que perigo! Uma estudante da FGV – poderia ter sido minha aluna anos atrás! – pediu uma entrevista. Ensaiei um olhar que fingia incompetência e soltei um “prefiro não, meu bem”. Um representante da maçonaria falava da relação entre PT e comunismo e eu só conseguia pensar em Eike Batista e em banqueiros e no quanto deixou de ser trendy o termo luta de classes nesses anos todos e… Clap, clap, clap.
Os skins ao lado enrolavam nas mãos uma gaze. (Respira. Respira. Não vai ser nada.) “Fora Dilma”. “Lula na cadeia”. Melhor focar a denúncia de outro cartaz sobre o problema das urnas eletrônicas. Elas podem ser sabotadas. (Elas têm sido sabotadas! Só pode ser isso!). E o voto deveria ser facultativo! É hora de se camuflar ainda mais: pegar com uma tiazinha do bem um cartaz escrito com guache verde e amarelo. Escolhido aleatoriamente, saiu o FORA COMUNAS. Agora é ter coragem de levantar sem parecer a rainha da dissimulação nem demonstrar medinho.
Mas nesse momento o espírito jornalismo gonzo da Geni não resistiu à repetição-da-história-como-farsa. Ops! Digo: não resistiu à canalhice e perversidade. Gritaram forte: “1-2-3-4-5-MIL, QUEREMOS MILITARES PROTEGENDO O BRASIL!”. E pensar que lá em 1984 gritavam “1-2-3-4-5-Mil, queremos eleger o presidente do Brasil!”. Foi demais pra um dia só!… Se antes eu achava esse povo bom só pra soltar chorume em caixas de comentários pela internet, o despudor em revolver o slogan das Diretas Já bateu fundo!
Foi quando os organizadores convidaram a todos a marchar até a Praça da Sé. Só aí me dei conta de que havia perdido tempo demais aplaudindo apenas o ensaio do teatro do absurdo! Melhor correr pra casa e me esconder debaixo da cama até esse povo todo voltar a existir apenas na internet. Pelo menos assim eles não me assombram com suas caras de homens de bem, e continuam com o status de figurinhas impertinentes – trolls com avatar de cachorrinho – povoando o mundo com longos e desnecessários comentários em caps-lock. E anônimos.
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Ilustração: Cecilia Silveira.