Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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NO MEIO | 07: Um consolo impiedoso/ os nossos incêndios

Se nossos encontros estão cheios dos discursos que anunciam nossa extinção, qual nosso fôlego para encampar uma disputa justa e vigorosa? Por Luiz Pimentel

Esta coluna se dedica a tentar ouvir mais vozes que foram atravessadas pelos temas da Geni.

 

Situar-se no meio do horror. Não porque se quis. Porque aconteceu de ser assim. Como mediar nosso ódio? Como disparar nossa vingança? Situar-se no meio do horror, pelo amor por algo – uma ideia, um projeto, um desespero. Ao mesmo tempo, há a fragilidade que acontece de repente no corpo – no sono, na rua, na escola, no trabalho, na luta – frente aos genocídios do presente. Porque são nossos corpos, que escapam em diferentes graus da norma, que se tornam alvos declarados deste mesmo horror. Como se situar no meio dessa fragilidade, de forma, como escreveu o dramaturgo Bertolt Brecht, a não se diluir, como o sal na água?

 

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Na peça teatral Incêndios (também adaptada para o cinema em 2010), o escritor libanês Wajdi Mouawad compõe uma narrativa que se passa no presente e que investiga vestígios da Guerra Civil Libanesa transcorrida entre 1975 e 1990, justamente para resolver (ou embaralhar de vez) um problema contemporâneo. Na cena 25 da peça, “Amizades”, podemos ler um diálogo entre duas personagens mulheres e guerrilheiras, que entram em um embate a partir de suas distintas posições sobre qual destino deve ser dado aos inimigos:

 

SAWDA – Eles voltaram para o acampamento. Facas, granadas, machados, fuzis, ácido. A mão deles não tremia. Durante o sono, enfiaram a arma e mataram o sono das crianças, das mulheres, dos homens que dormiam na grande noite do mundo!

NAWAL – O que você vai fazer?

SAWDA – Me deixa!

NAWAL – O que você vai fazer? Aonde você vai?

SAWDA – Vou em cada casa!

NAWAL – Vai atirar uma bala na cabeça de cada um?

SAWDA – Olho por olho, dente por dente, eles não param de gritar isso!

NAWAL – Sim, mas não desse jeito

SAWDA – Não de outro jeito! Já que a morte pode ser contemplada com indiferença, então não de outro jeito!

NAWAL – Então você também, você quer ir nas casas matar crianças, homens e mulheres.

SAWDA – Eles mataram meus pais, mataram meus primos, mataram meus vizinhos, mataram os amigos distantes dos meus pais! Então dá no mesmo!

NAWAL – É, dá no mesmo, você tem razão Sawda, mas pensa!

SAWDA – De que adianta pensar! Ninguém volta a viver porque a gente pensa!

NAWAL – Pensa, Sawda! Você é a vítima e vai matar todos aqueles que estarão no teu caminho, então você vai ser o carrasco, aí, depois, vai ser a sua vez de ser vítima de novo! Você sabe cantar, Sawda, você sabe cantar!

 

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A Geni deste mês se dedica ao tema da ditadura. Tanto aquela que tomou o país vestindo a máscara, à época, de contrarrevolução como a que vivemos hoje, também explícita, porém ditada por outros valores que não a relacionam, em geral, com o governo militar. Se a percepção da violência e do genocídio constante e cotidiano do nosso tempo se popularizou recentemente entre parte da famigerada classe média (não me engano, também estou nela), os movimentos sociais, as aldeias indígenas, habitantes de regiões periféricas entre outros, lidam com o massacre já faz tempo. O equívoco, talvez, foi termos narrado, algum dia, a história de forma que o processo de generalização da violência tenha sido interrompido no dia 15 de março de 1985. Falha trágica, como num golpe de teatro.

 

SAWDA – Não quero! Não quero me consolar, Nawal! Não quero que tuas ideias, tuas imagens, tuas palavras, teus olhos, tua amizade, toda nossa vida ao lado, não quero que me consolem do que eu vi e ouvi! (…) Eles começaram jogando as crianças contra as paredes, depois eles mataram todos os homens que conseguiram encontrar. Os meninos degolados, as meninas queimadas. Tudo em volta pegava fogo, Nawal, tudo pegava fogo, tudo torrava! (…) Um miliciano preparava a execução de três irmãos. Os milicianos arrastaram a mãe pelos cabelos, colocaram ela diante dos filhos e um deles gritou: “Escolhe! Escolhe qual você quer salvar, ecolhe! Escolhe ou eu mato os três!” E ela, incapaz de palavra, incapaz de nada, virava a cabeça pra direita e pra esquerda e olhava para cada um dos três filhos dela. Nawal, escuta, não estou te contando uma história. Estou te contando uma dor que caiu aos meus pés. E o corpo dela todo urrava “De que adianta ter parido esses filhos se é pra ver o sangue deles escorrer pelo muro?” Então ela olhou para o miliciano e disse, como uma última esperança: “Como pode, olha pra mim, eu poderia ser tua mãe!” Então ele bateu nela. “Não xinga minha mãe, escolhe!” E ela disse um nome, ela disse: “Nidal! Nidal!” E ela caiu e o miliciano atirou nos dois mais novos. Ele deixou o mais velho vivo, tremendo! Ele deixou e foi embora. A mãe levantou e no seio da cidade que queimava, que chorava com todo seu vapor, ela começou a urrar que era ela que tinha matado os filhos.

 

Então o que fazemos? Ficamos de braços cruzados! Esperamos? Compreendemos? Compreendemos o quê? A gente pensa que tudo isso é história entre malucos e que não temos nada a ver com isso! O Oscar deste ano quem levou foi o 12 anos de escravidão, um filme que tematiza a escravidão americana, a partir da história de um indivíduo que era livre, foi feito escravo novamente, e foi liberto depois de 12 anos, de forma a nos lembrar de como os homens do passado eram maus. Mas toda essa impostura está aqui, não apenas lá. Este horror é o nosso horror, é um horror que não nos deixou, só tomou ares de ficção histórica para aliviar nosso sono. E as Mães de Maio, o movimento organizado de mulheres que perderam seus filhos e filhas no genocídio de maio de 2006? Como pode acontecer de seus urros de revolta serem escutados como distintos das vítimas da violência vivida em regimes totalitários? Se cada visita a padarias, livrarias, revistarias nos deixa latindo de ódio com as mesmas sempre três revistas e dois jornais protagonizando os espaços de destaque com suas manchetes mentirosas. A gente fica com nossos livros e nosso alfabeto para achar isso “tão” lindo, “tão” belo, “tão” extraordinário e interessante. “Extraordinário” são os escarros nos rostos das vítimas. Palavras! Pra que servem as palavras, me diz, se hoje não sei o que devo fazer!

 

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NAWAL – Não posso responder, Sawda, porque estamos impotentes. Nenhum valor para nos guiar, só uns valorezinhos menores. O que a gente sabe é o que a gente sente. Isso é certo, isso não é certo. Mas eu vou te dizer: a gente não gosta de guerra, mas é obrigado a fazê-la. A gente não gosta de desgraça, mas está sempre no meio dela.

SAWDA – Então a gente não se mexe, é isso?

NAWAL – Mas quem você quer convencer? Você não está vendo que tem homens que não se pode convencer? Como você quer explicar pro cara que urrava nos ouvidos dessa mulher “Escolhe!”, exigindo que ela mesma condenasse os seus filhos, que ele se enganou? O que você acha? Que ele vai dizer “Ah! Senhorita Sawda, seu raciocínio é interessante, vou correndo mudar de opinião, mudar de coração, mudar de sangue, mudar de mundo, universo e de planeta e vou pedir desculpas imediatamente?” O que você está pensando? Que fazendo sangrar com tuas mãos os filhos dele vai ensinar alguma coisa pra ele? Você acredita que ele vai dizer, de um dia pro outro, com os corpos daqueles que ele ama aos seus pés: “Olha só, isso me fez pensar e é verdade que os refugiados têm direito a uma terra. Eu dou a minha pra eles e nós viveremos em paz e harmonia juntos, todos juntos!” Eu te juro, Sawda, que eu seria a primeira a pegar em granadas, em dinamites, bombas e tudo o que pudesse causar o maior estrago, eu as enrolaria em volta de mim, engoliria e iria direto pro meio desses homens imbecis e eu me faria explodir com uma alegria que você nem suspeita. Eu o faria, juro, porque não tenho mais nada a perder, e meu ódio é grande, muito grande a esses homens! Mas fiz uma promessa, uma promessa para uma mulher velha de aprender a ler, a escrever, a falar, para sair da miséria, sair do ódio. E vou cumprir essa promessa. Não odiar ninguém, nunca, a cabeça nas estrelas, sempre. Promessa para uma mulher que não era bonita, nem rica, nem nada, mas que me ajudou, cuidou de mim.

 

A promessa

 

Situar-se no meio do horror. Munido de quais valores? De quais limites e ações? Os pactos consigo, para não se deixar diluir, como o sal na água… Mas se nossas mesas familiares, nossas rotinas de trabalho, nossos encontros fortuitos em espaços privatizados estão cheios dos discursos que anunciam nossa extinção, qual nosso último fôlego para encampar uma disputa justa e vigorosa?

 

Cena 9 – ler escrever contar falar

NAZIRA (avó de Nawal) – Nawal, tem coisas que a gente tem vontade de dizer no momento da morte. Coisas que a gente gostaria de dizer às pessoas que a gente amou, que nos amaram… para ajudá-las uma última vez… armá-las para a felicidade! Não caia, Nawal, não diga sim. Diga não, recusa! Mas para poder recusar é preciso saber falar. Então se arma de coragem e trabalha duro! Escuta o que uma mulher velha que vai morrer tem pra te dizer: aprende a ler, aprende a escrever, aprende a contar, aprende a falar, aprende. É tua única chance de não se parecer conosco.

Nós todas, as mulheres de nossa família, estamos presas numa teia de ódio há tanto tempo: eu tive ódio da tua mãe e sua mãe teve ódio de mim e de você, você está com ódio da tua mãe. Você também vai deixar ódio pra tua filha como herança. Então aprende, e vai embora. Pega a tua juventude e toda a felicidade possível e deixa essa aldeia de ódio. Aprende a ler, a escrever, a contar, a falar, aprende.

SAWDA – Então o que a gente faz?

NAWAL – Vamos bater. Mas vamos bater num lugar. Um único. E vamos machucar.

SAWDA – No que você está pensando?

NAWAL – Estou pensando em Chad. No último dia, antes de você ir embora, vou atirar duas balas. Uma por você, uma por mim. Uma pelos refugiados, outra pelas pessoas do meu país. Uma pela burrice dele, uma pelo exército que nos invade. Duas balas gêmeas. Não uma, nem três. Duas.

SAWDA – Não aceito. Não cabe a você fazer isso.

NAWAL – Por que vamos fazer tudo isso? Para nos vingar? Não. Porque queremos ainda amar com paixão. (…) Recita esse poema cada vez que tiver saudade de mim, e quando você estiver precisando de coragem, recita o alfabeto. E eu, quando precisar de coragem, vou cantar, vou cantar, Sawda, como você me ensinou. E minha voz será tua voz e tua voz será minha voz. Assim, vamos ficar juntas. Nada é mais bonito do que estarmos juntos.

 

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Duas balas gêmeas. Um alvo.

Recusar-se a tomar o passado como ultrapassado.

Recusar-se a tomar o presente como superação.

Um consolo impiedoso – cena 25 – amizades.
 

Leia outros textos de Luiz Pimentel e da coluna No Meio.

 

Ilustração: Emilia Santos.

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