perfil
aids, EUA, Gui Mohallem, hiv, igreja católica, número 18, Perfil, Sisters of Perpetual Indulgence
Irmãs da Perpétua Indulgência
Conheça as freiras barbadas que exorcizaram o papa e cuidaram das vítimas da aids no auge da epidemia nos Estados Unidos. Por Gui Mohallem
Foi no domingo de Páscoa de 1979 a primeira vez que um grupo de três homens vestiu roupas de freira e resolveu dar uma volta no bairro do Castro, em São Francisco.
Com medo da reação das pessoas, um deles carregava uma arma embaixo do hábito. Fazia poucos meses que o conselheiro municipal Harvey Milk, primeiro gay assumido eleito para um cargo público nos Estados Unidos, tinha sido assassinado.
Pouco tempo depois, durante a primeira conferência espiritual dos Radical Faeries, o grupo se batizou de Sisters of Perpetual Indulgence (“irmãs da perpétua indulgência”), ganhou novos participantes e definiu que sua missão seria promulgar a alegria universal e expiar a culpa estigmatizada.
O visual provocativo de um homem barbado usando um hábito de freira pode levar a crer que se trata de um deboche ao catolicismo. As Sisters garantem que não: “Eu fiz um voto de servir minha comunidade, pelos muitos que precisam de ajuda. Não é muito diferente do voto feito pelas irmãs católicas”.
Quando a mágica começou a se espalhar para outras regiões, não tão receptivas como São Francisco, algumas irmãs começaram a usar uma base branca no rosto e óculos escuros, para proteger a identidade e evitar retaliações. Embora não seja obrigatória, a maquiagem colorida sobre a base branca virou tradição na ordem, sendo hoje um importante rito de passagem para as postulantes se tornarem noviças.
A ordem conta hoje com mais de 500 pessoas em 11 países, em quatro continentes, sendo Uruguai e Colômbia os representantes da América do Sul. Além de homens gays, bi e heterossexuais, trans e cis, integram a irmandade, desde 1986, mulheres de todos os espectros das sexualidades e identidades de gênero. A participação dessas mulheres nas ações do grupo trouxe uma quebra de paradigmas na comunidade LGBT. Os bares de fetiche de Berlim, por exemplo, onde a ordem tem um trabalho importante de educação para sexo seguro e de prevenção ao comportamento de risco, quiseram impedir a entrada de Sisters nascidas mulheres. As irmãs não quiseram negociar: ou tudo ou nada. Foi tudo!
Historicamente, as irmãs têm estado na vanguarda na luta contra o HIV/aids desde as fases mais preliminares da epidemia. Como missionárias, o trabalho das irmãs alcança várias partes do mundo, mesmo onde elas não têm ordens iniciadas, como a China.
BBC Manchester 1991 from Sisters of Perpetual Indulgence on Vimeo.
Abraços e trepadas
Em 1982, antes mesmo da sigla aids ter sido adotada, elas foram responsáveis pela primeira publicação educativa para sexo seguro, distribuída gratuitamente, com uma abordagem positiva em relação ao sexo.
Na época, muito pouco se sabia sobre a doença, e a própria ideia de sexo seguro era vista com desconfiança – como uma forma de reprimir uma liberdade sexual recentemente adquirida. O que se sabia era que as pessoas estavam morrendo de um tipo raro de câncer de pele (o sarcoma de Kaposi) e um tipo violento de pneumonia (PCP). Apenas se suspeitava de que a transmissão fosse sexual, já que a doença atingia sobretudo homens gays de grandes centros urbanos, como São Francisco e Nova Iorque.
O folheto falava da importância de ser honesto. “Se você sabe – ou ao menos suspeita – que possa ter uma doença sexualmente transmissível, não coloque as outras pessoas em risco participando de atividades sexuais. Espere até SABER que pode gozar tranquilo.”
Entre outras coisas, também ressaltava a importância da higiene pessoal, do xixi após o gozo, do perigo da xuca espalhar algum problema localizado, da importância de trocar contatos com os parceiros sexuais para que as pessoas pudessem se comunicar sobre eventuais infecções. Nesse mesmo folheto, a camisinha era uma das opções de proteção: “Caso você tenha dor ou qualquer coisa suspeita no seu pau e mesmo assim precise trepar, use camisinha. Não passe o que você tiver para seu parceiro”.
Esse folheto foi feito com a ajuda do enfermeiro Bobbi Campbell, também conhecido como Sister Florence Nightmare. Infectado em 1981, foi a primeira vítima da aids a sair do armário e falar publicamente sobre o assunto. Foi capa da revista estadunidense Newsweek, onde saiu abraçado ao namorado (chamado de “amigo” pela publicação), e ficou conhecido como Aids Poster Boy (algo como “garoto-propaganda da aids”). A fama não o poupou do estigma que sofriam os gays e os portadores do vírus. Para uma entrevista na emissora de TV americana CBS, ele teve de ficar dentro de uma cabine de vidro, para que os técnicos não precisassem tocar nele para posicionar os microfones.
Essa questão do toque era muito sensível na época. Sister Roma, uma das mais famosas irmãs de São Francisco, lembra emocionada que, em 1987, as pessoas chegavam a elas pedindo um abraço. O medo e a ignorância eram tão grandes nessa época que ninguém tocava quem estivesse doente.
A irmandade não ficou imune à epidemia. Dos 20 participantes que havia na ordem de São Francisco em 1981, restavam apenas seis em 1987.
Contra a Igreja careta e covarde
Muitos decidiram se dedicar à irmandade para dar um sentido maior à própria vida, ameaçada pelo vírus. Um dos fundadores, Sister Vicious, relata que, quando soube que estava infectado, em 1981, decidiu fazer dos poucos anos que lhe restavam algo útil e passou a se dedicar em tempo integral às Sisters. (A bicha está viva e serelepe até hoje!)
Elas fizeram o primeiro evento beneficente para o combate ao HIV e já arrecadaram mais de 1 milhão de dólares em seus sempre divertidos bingos, festas de gala, Halloween para crianças, campanhas de conscientização e outros eventos a céu aberto.
Um dos mais tradicionais eventos promovidos pelas sisters é o Hunky Jesus Contest (algo como Concurso do Jesus Gostosão), que acontece todo ano, no domingo de Páscoa, em São Francisco. Pessoas se vestem de Jesus, nas suas mais variadas adaptações, e se apresentam uma a uma sobre o palco. Ao final, as irmãs elegem, com ajuda do público, o vencedor do ano, que não ganha nada – é só pela bagunça mesmo.
Em 1987, durante a visita a São Francisco de João Paulo II, as irmãs organizaram uma coletiva de imprensa em frente a uma catedral e colaram cartazes enormes pedindo posturas mais responsáveis da Igreja Católica com relação à epidemia. Em seguida, exorcizaram o papa (um boneco dele, é claro) em praça pública como forma de protesto às suas declarações condenando as sexualidades desviantes e o uso da camisinha.
Não é só de sacrilégio que vivem as sisters. Elas também participaram da organização das primeira vigília pela aids, a Aids Candlelight March, uma espécie de passeata em honra dos que se foram na epidemia. As primeiras marchas aconteceram simultaneamente em São Francisco e Nova Iorque em 1983 (por conta da diferença de fuso horário, a de São Francisco aconteceu antes da de Nova Iorque).
Em 1985, já eram mais de 40 cidades no mundo todo. A primeira vez que a marcha acontecia num lugar representava uma declaração: a cidade reconhecia que existiam pessoas com HIV. Isso, apenas, já era um passo enorme, principalmente se considerarmos que foi só nesse ano, após milhares de mortos e inúmeros infectados, que o presidente dos Estados Unidos menciounou a palavra aids pela primeira vez.
Aqui, nosso conhecido Bobbi Campbell, Sister Florence Nightmare, Aids Poster Boy, em um de seus últimos discursos antes de falecer, em 1984:
“Muitas vezes os gays e as lésbicas são retratados como isolados, alienados e sozinhos; ou numa procura patética por sexualidade. Eu não acho que seja verdade. E acho importante que os Estados Unidos entendam que lésbicas e gays não existem fora de contexto. A gente existe no contexto das pessoas que a gente ama e que amam a gente. Eu quero falar pros Estados Unidos que o amor gay é lindo.”
A marcha se espalhou pelo mundo todo e hoje acontece em várias cidades do Brasil simultaneamente. Curiosamente, quem a coordena hoje no Brasil é a Pastoral da Aids, parte de Igreja Católica. Em seus materiais de divulgação, a origem da marcha é devidamente adaptada para valores “cristãos” e sua origem migra de São Francisco para Nova Iorque. A organização também sai do movimento LGBT e vai para as famílias e amigos, deixando a coisa mais asséptica, menos pederasta. Segundo o site da CNBB
“É um movimento internacional que iniciou em 7 de maio 1983. Um grupo formado por mães, parentes e amigos de pessoas que morreram por causa do HIV, organizou, em Nova Iorque, a Primeira Vigília Pelos Mortos da aids.”
É interessante esse movimento da Igreja que tenta desinfetar a história das sexualidades desviantes. Em 1983, ser gay era uma vergonha e muita gente ia morar longe da família (como ainda vai) para poder viver sua sexualidade. Ter aids era uma vergonha maior ainda para a família – pessoas eram expulsas de suas casas, impedidas de alugar moradia. O medo desse desconhecido era enorme. Colocar essa marcha inicial na mão da família é um jogo sujo.
Onde estava a Igreja Católica no começo da epidemia? Justamente criando culpabilidade nas vítimas ao creditar o surgimento da aids a um castigo divino causado pelo “estilo de vida” gay. Se houve solidariedade na organização da marcha, foi a das Irmãs da Perpétua Indulgência; se houve família, esta foi o próprio movimento LGBT que se organizou. “As pessoas que morreram de aids, as que vivem com aids e aquelas que não têm aids e estão lutando para combatê-la, elas são minha família.”
Ainda bem que ainda hoje temos as Sisters para nos acolher e dar conforto espiritual, longe da hipocrisia, da culpa e do ódio, longe da jurisprudência sobre o nosso prazer, a nossa morte e a nossa vida.
Como dizem elas, ao final de cada oração: A-men, A-women, A-trans-whatever.
Leia outros textos de Gui Mohallem e da seção Perfil.