relato
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Transfobia em um estabelecimento do CREAS
O longo caminho que uma travesti percorre para ser atendida por um serviço da assistência social. Por Alexandre Espósito, acompanhado do artigo “Família, proteção social e capitalismo” de Lia Urbini
Não faz muito tempo que assumi um trabalho de iniciação científica que iria trazer muitas denúncias sobre a forma de tratamento a andarilhos e trecheiros. Durante um congresso, uma professora da área de Educação me disse que a pesquisa deveria sair do meio acadêmico e ter suas questões publicadas em espaços mais divulgados. Pois bem, trago um relato do que vivenciei em uma Unidade de Atendimento ao Migrante (UAM), vinculada ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). O trabalho da UAM consiste em fornecer passagens circulares a locais próximos do destino desejado para itinerantes poderem retornar ou ir aonde precisam.
Esse relato expõe a trajetória de uma travesti em busca de passagens e seu desentendimento com o funcionário do estabelecimento. Tal escrita serve para mostrar como a liberação de passagens, às vezes, depende do critério subjetivo do funcionário. Revela, também, um grupo de pessoas excluídas socialmente, com um tipo de atividade ainda não muito estudado.
O meretrício errante
O orientador do projeto leva o novo bolsista para apresentar-lhe aos funcionários da UAM. O tempo está nublado e a rodoviária da cidade encontra-se calma, em plena segunda-feira. Mas há sentimentos que fazem com que algumas pessoas não estejam tão tranquilas assim. Entre essas, há a incerteza de onde o próprio corpo estará no dia seguinte e o desespero por recordar memórias indesejáveis.
Dentro da UAM, uma travesti explica ao funcionário que não tem dinheiro para viajar. Em outros casos, com outras pessoas, basta pedir a passagem para uma cidade próxima do destino desejado, que esta lhe é concedida. Não com ela.
O velho orientador e o novo bolsista entram na recepção e cumprimentam o funcionário, enquanto este conversa com a travesti. Ela, com um semblante cansado, aparenta ter um pouco mais de trinta anos. Tem a tez morena, com manchas mais escurecidas pela face. Usa peruca preta por cima do cabelo curto tingido de louro. Veste roupas desgastadas, uma blusa um pouco translúcida que mostra o sutiã preto e sapatos que expõem os seus pés inchados.
Quer uma passagem para visitar sua mãe.
O funcionário discute com ela, apontando para o nome do local, afirmando que prestam serviços a pessoas que se enquadram em situação de rua e sem nenhuma quantia monetária consigo. Ela revida dizendo que não tem casa, estando assim em situação de rua, e afirma também não ter dinheiro algum. Logo, o funcionário pede para ela aguardar na sala de espera.
De modo informal, o orientador e o bolsista começam a conversar com ela. Há revelações incríveis e necessárias a serem relatadas. Não possui residência e em cada cidade que chega, conhece apenas as casas de prostituição que lhe dão abrigo temporário e em troca, é explorada. Logo vai embora para outra cidade, repetir o ciclo. Este é seu meio de sobrevivência. Fugiu de casa na adolescência por seu pai não a aceitar, levando agora a vida numa espécie de meretrício errante. Conta que durante o tempo que passou em Assis, se prostituiu na rodovia que margeia a cidade, em um ponto conhecido como local de travestis que fazem programas com viajantes e moradores. Disse, ainda, que naquela noite havia dormido no terreno de uma instituição de assistência a crianças órfãs que fica à margem dessa rodovia. Neste momento, quer apenas visitar a mãe, sem saber o que virá depois. Mas, e se não liberarem a passagem, como vai sair de Assis? Os músculos da face se enrijecem, os lábios se contraem. Com os olhos quase cerrados, ela chora.
Ao final da visita, o funcionário diz de modo humorado ao bolsista que ele se dará bem por ali e que o movimento é mais ou menos aquele. Afirma que a travesti, mesmo não tendo dinheiro e levando uma vida itinerante, não é usuária, mas que daria a passagem no fim das contas. Essa é uma grande controvérsia: em outro dia qualquer, um empregado da cidade vizinha havia brigado com o patrão e esquecido sua carteira. Este homem apenas pediu e ganhou a passagem sem nenhuma objeção.
Isso mostra algumas questões: qual o critério, afinal, para ceder as passagens? Será que o funcionário agiu com preconceito contra a usuária do serviço por ela ser travesti? Ela está em um meretrício errante, não tem habitação fixa, não tem renda. Por que não seria considerada usuária do CREAS/UAM, estando nessas condições?
Ela se prostitui para sobreviver, quando chega à cidade, fica alguns dias na casa de alguém que a explora. Foi rejeitada pelo pai e agora quer apenas tentar visitar a mãe. Enquanto algumas pessoas recebem passagens sem nenhum obstáculo, outras carregam um estigma de serem hostilizadas em nome de uma moralidade.
Este caso revela, também, a existência de pessoas invisíveis aos olhos institucionais e que sobrevivem da prostituição de modo não fixo, de cidade em cidade, sem rumo ou local para estacionar. Tentando fugir da exploração de cafetões a cada local em que passam. Esta condição poderia ser chamada de meretrício errante ou prostituição nômade, mas tal prática ainda é um tanto ignorada e pouco estudada. Quem se encontra no meretrício errante são pessoas em situação de rua e com características que as fazem serem excluídas duplamente. Neste caso relatado, a identidade de gênero.
Alexandre Espósito é estudante de Psicologia na Unesp de Assis.
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Família, Proteção Social e capitalismo
A individualização de problemas sociais e suas consequências. Por Lia Urbini, agradecendo as conversas com Marjori Machado
Em novembro de 2013, recebemos o texto de Alexandre Espósito, estudante de psicologia da UNESP de Assis, relatando um caso de transfobia em um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS)*. O material nos interessou por diversos aspectos, e optamos então por publicá-lo nesta edição da Geni sobre família, permeado por alguns comentários que o contextualizam nas discussões gerais da revista.
Trata-se de uma descrição do obstáculo que uma travesti encontra para poder utilizar, da mesma forma que outrxs usuárixs, um serviço público e bastante básico da esfera da assistência social que, no discurso, é garantido por lei para todxs que dele precisarem.
Um instantâneo de um momento trivial, mas também decisivo, de um cotidiano marginalizado, que evidencia a abrangência e as diversas aparências da homo-lesbo-transfobia nos serviços estatais. Mas há mais questões envolvidas e, para tratá-las, parece importante deixar ao menos uma nota a respeito da diferença entre assistencialismo e assistência social e as relações que podem ser feitas com o debate sobre família, Estado e direito.
Direito ou caridade? Dificuldades a partir das relações paternalistas
A política de assistência social muitas vezes é vista como “caridade”, e isso prejudica seriamente o caráter de direito dos serviços assegurados. Tais serviços passam a existir via políticas públicas que surgem depois de longas batalhas pelo reconhecimento da legitimidade de determinadas reivindicações “sociais”. Mas quando esse histórico de lutas é invisibilizado, torna-se mais fácil associar as atividades da assistência social ao assistencialismo. Em função disso, uma primeira dimensão a ser analisada é a tarefa da concessão de recursos e benefícios, o que demanda entender um pouco da organização da Assistência Social.
As ações da política de assistência social são organizadas em moldes parecidos aos do SUS, por um Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Isso significa que existem diretrizes nacionais gerais que devem ser especificadas de acordo com as necessidades de cada município, e para planejar em esfera municipal os planos de ação de assistência social, existem os Conselhos Municipais de Assistência Social.
Os Conselhos são “instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil”**(metade governo, metade sociedade civil). Ali se delineiam (ou deveriam ser delineados) os critérios para a concessão de benefícios, e, na prática, o que acontece em muitos casos é que, na ausência desses critérios bem definidos, há arbítrio na forma com que os serviços são ofertados.
Prisma da Assistência
Do ponto de vista dxs técnicxs que atuam na política da Assistência, essxs próprixs trabalhadorxs podem naturalizar sua rotina e se apropriar dos poderes de funcionárixs do Estado para associar seus preconceitos pessoais aos critérios para atendimento à usuárixs. Do ponto de vista dx usuárix, que talvez não tenha participado diretamente dos movimentos que garantem os direitos aos quais elx recorre, também pode enxergar o que recebe como “bondade”, uma ajuda “que vem de graça”. E do ponto de vista dxs que não são incluídxs na parcela da população que recebe ou procura a Assistência, esta pode ser vista como um ônus ao Estado – mantenedora de relações de dependência – ou também, na melhor das hipóteses, como um mal necessário para que o sistema capitalista continue operando com seu caos administrado, onde xs menos ajustadxs e inseridxs no mundo do consumo e produção de mercadorias possam não atrapalhar xs mais ajustadxs e incluídxs em seu desfrute.
Essas três perspectivas se originam, além do desconhecimento ou desmerecimento do histórico de lutas, de um outro fato comum: individualizar o caráter social da produção e da distribuição das riquezas. Como diz José Paulo Netto, professor da área e autor de livros como Capitalismo monopolista e serviço social: “em face da questão social, o Estado, intervindo através das políticas sociais, opera com uma ótica de individualização, transformando os problemas sociais em problemas pessoais”. E, coincidentemente, determinados “problemas pessoais” atingem mais mulheres do que homens, mais negrxs do que brancxs, mais LGBTs do que héteros, mais pobres do que ricos.
Traduzindo em situações concretas, podemos dizer que tais processos de individualização nos levam a entender como golpes de sorte ou azar, mérito e demérito individual, eventos que possuem muitos aspectos sociais. Se, por exemplo, uma pessoa é expulsa de casa aos 12, 13 anos, em virtude de sua orientação sexual negada pela família (desavenças familiares são o principal motivo para que 29% das pessoas em situação de rua tenham deixado suas casas, perdendo apenas para o desemprego, com 29,8%, e problemas com drogas, com 35,5%***), é azar dela nascer em tal ambiente e, bom, existem instituições que podem recebê-la. Ela que se acostume com o abrigo ou a instituição que seja, estude e corra atrás das oportunidades, competindo com tantas outras histórias no mercado de trabalho para poder pagar as suas contas e tocar a vida como queira. Afinal, problema todo mundo tem e nem todo mundo nasceu para brilhar.
Interpretações alternativas: desenvolvimento desigual e combinado? Caos administrado?
Por sorte, não há apenas essa maneira de se encarar a Assistência Social. Esta se torna algo outro que não a caridade quando são reconhecidas, por exemplo, as imbricações mútuas entre riqueza e pobreza, e seu caráter socialmente produzido.
Vejamos este trecho de um discurso de Almeida Garret, escritor e político português liberal, proferido na primeira década do século XIX, que continua bastante atual e nos serve para compreender os limites da inclusão social via mercado capitalista.
“Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.”
A ideia geral pode ser resumida na seguinte questão: “quantos pobres são necessários para se fazer um rico?” É uma questão antiga, ainda válida, e levantada não apenas por trotskistas. E a questão se desdobra em seus recortes de raça, gênero, sexualidade. Quantas mulheres oprimidas pelos baixos salários e péssimas condições de vida na faxina são necessárias para a limpeza de uma universidade? Quantos homens negros mal remunerados e treinados para um comportamento “viril” e “ordeiro” são necessários para garantir a segurança particular de um encontro de cúpula governamental?
A partir dessa perspectiva, poderíamos então concluir que a própria Assistência Social cumpriria um papel de mantenedora das relações de dependência entre as classes, mais do que de superação desses antagonismos, criando uma espécie de administração do caos? Não amenizaria conflitos, tornando-os mais possíveis de se conviver? Por outro lado, e o “melhor que nada”? Seria um princípio de realidade ou um princípio de resignação? Ambos?
Nos termos de como acontece hoje, a Assistência Social se reduz muitas vezes à apenas redistribuição de migalhas da apropriação privada de muito trabalho social. Seja como for, os frequentes ataques e boicotes da Assistência à população LGBT, feminina, com sofrimento psíquico ou outros setores minorizados da chamada “sociedade civil”, contribui para acrescentar mais uma barreira para que estes se articulem para falar por si mesmos e reivindicar não apenas os recursos mediados pelo Estado da parte que lhes cabe da riqueza social, mas também seu lugar na produção desta riqueza.
*Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) configura-se como “uma unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.).”
**Orientações para Conselhos da Área de Assistência Social.
***Levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, divulgada em 2008.
Ilustração: Nara Isoda