Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Diálogos e silêncios

Relato sobre as reuniões de uma associação para pais de LGBTs na cidade do Porto, em Portugal. Por Lauren Zeytounlian

O constante diálogo

(Carlos Drummond de Andrade)

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
o semelhante
o diferente
o indiferente
o oposto
o adversário
o surdo-mudo
o possesso
o irracional
o vegetal
o mineral
o inominado

Diálogo consigo mesmo
com a noite
os astros
os mortos
as ideias
o sonho
o passado
o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
e
tua melhor palavra
ou
teu melhor silêncio
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

O poema de Drummond fala sobre o que este texto fala. Falamos sobre diversos diálogos, diálogos com o ser amado, o semelhante, o diferente, o vegetal, o mineral – o gay, a lésbica, o filho, a filha, o homossexual. Falamos sobre categorias com as quais dialogamos e sobre a organização do mundo e do Eu. Busco, sobretudo, dialogar com aquele que não foi ignorado por Drummond: o inominado. É um diálogo consigo mesmo, com o passado, com os mortos, com as ideias. O poeta termina com um imperativo: “Escolhe teu diálogo/ e/ tua melhor palavra/ ou/ teu melhor silêncio/ Mesmo no silêncio e com o silêncio/ dialogamos”.

Escolhi minhas melhores palavras para falar sobre o silêncio e o segredo, sobre a valorização do contar, sobre algumas palavras e o peso delas. Sobre o diálogo com o ser amado – com a mãe, o pai, o filho, a filha, o gay, a lésbica, o inominado –, talvez por ser inominável. O presente texto tem como questão fundamental as relações familiares, mais especificamente entre mães, pais e filhxs, quando se descobre que estes possuem uma expressão não normativa da sexualidade. A clássica pergunta: quantas meninas contam para os pais que gostam de meninas? A necessidade de contar faz com que eu as nomeie como não normativas no contexto desta reflexão.

A discussão que será apresentada foi formulada a partir de questões que me inquietaram ao fazer observação participante em reuniões de uma associação para pais de LGBTs situada na cidade do Porto, em Portugal, durante o primeiro semestre de 2011.

As questões que me rondaram durante as reuniões, devido à importância que a elas via atribuída, foram basicamente em duas direções: o contar, o “saber” um dia que um dos seus filhos é gay ou lésbica, e a “revelação”, como “fundamental no processo da sua [desses filhos e filhas] construção como pessoa”, além de “uma manifestação de confiança” (frases retiradas do manifesto da associação. Não o cito na íntegra para resguardar a identidade dessa associação que tão bem me recebeu). Há não apenas uma centralidade do “assumir-se”, mas também um significado atribuído à “revelação” e, consequentemente, àquele que é tido como o seu oposto, o segredo.

Optei por fazer aqui um texto que tem como base as observações – em vez das discussões teóricas – e o dividi em duas partes: os diálogos e os silêncios. Diálogos e silêncios, categorias aparentemente binárias e opostas (assim como heterossexualidade/homossexualidade, homem/mulher), as quais o presente artigo põe em questão, interrogando se se deve pensá-las de tal forma, tomando-as de forma relacional, ao ter como pressuposto que “mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos”.

Diálogos

Na criação da associação – sua fundadora é uma psicóloga portuguesa, mãe de uma adolescente que, na ocasião da pesquisa, tinha 16 anos e era apaixonada por outra adolescente, sua namorada – foi escrito um manifesto. Nele há claramente uma referência a pais de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, os quais integrariam a associação. Ao confrontá-lo com as observações da reunião, vemos como esse discurso é muito mais complexo do que parece em um primeiro momento.

Durante a segunda reunião de que participei, a coordenadora do grupo propôs uma atividade às famílias (era uma data próxima ao período da Páscoa). Estas procuraram ovos de chocolate, os quais possuíam, em seu exterior, o trecho de uma frase. Uma vez aberto seu ovo, deveriam, então, procurar alguém que completasse a sua frase, conversar sobre a frase e, em um segundo momento, sentadas em roda, deveriam expor tanto a frase quanto o que haviam conversado sobre ela. Foram formadas seis sentenças:

1. Os filhos não são nossos, são do mundo.
2. Leis mais justas, mas as mudanças devem começar nos indivíduos.
3. Digo ao filho que não deve revelar sua orientação/identidade ou que deve fazê-lo?
4. Sinto necessidade de falar do meu filho/filha transexual, mas tenho medo do preconceito dos outros.
5. A orientação sexual é apenas uma característica da pessoa.
6. Educamos para que eles sejam bons cidadãos e honestos consigo próprios.

Durante o debate sobre a frase 5, uma mãe disse sobre sua filha e a namorada: “Eu não as vejo como homossexuais, elas são tão pessoas”.

Nesse sentido, penso: quem são os homossexuais no contexto dessa associação, em que todos se conhecem pelo nome? Talvez o homossexual não esteja lá. Desse modo, se a priori esses pais se encontram porque são “pais e mães que um dia souberam que um dos seus filhos é gay, lésbica, bissexual ou transgênero” (trecho do manifesto), a questão se complexifica no momento em que a orientação sexual é colocada como apenas uma caracterítica da pessoa, mas ainda uma característica fundamental. Afinal, ela faz esses pais procurarem uma associação e, no caso da coordenadora do grupo, fundar uma associação, administrar um blogue e encaminhar acompanhamentos psicológicos. Há, portanto, uma tensão: o discurso oscila entre a dificuldade de aceitação de um filho gay ou de uma filha lésbica e a afirmação de que a “orientação sexual é apenas mais uma caracterítica” destes.

É muito dificil, portanto, pensar a questão da identidade e da orientação sexual apenas pela via da sua implicação política e/ou normativa, retirando-a do contexto familiar – e inclusive da associação em questão. Trata-se de pais e mães para os quais os filhos viraram gays ou lésbicas? Ou gays e lésbicas que devem ainda ser reconhecidxs como filhxs? Por mais que se perceba o ambiente de amizade e cumplicidade daqueles pais durante o piquenique, tenho dificuldade em acreditar que eles estão ali em um domingo ensolarado em virtude de apenas mais uma característica de seus filhos ou filhas.

Voltemos à fala da mãe. Dita com muita espontaneidade, ela me parece, mais do que esclarecedora, suscitadora de algumas questões. Há nessa fala a percepção de um estigma da categoria homossexual. Percebemos como, mesmo vinda de uma pessoa militante – como é o caso dessa mãe –, a palavra “homossexual” não a faz pensar em sua filha e a namorada, pois elas “são tão pessoas”. Nesse momento me pergunto: será que essa mãe se identifica como heterossexual? Será que ela não acha essa categoria redutora dela como pessoa?

O processo de naturalização gay também é conhecido como um movimento de publicização gay e lésbica – processo em que não podemos deixar de citar a mídia, o cinema, a produção acadêmica – que não é consensualmente entendido como negativo. Richardson (2004), por exemplo, mostra como, apesar das críticas a essa publicização, decorrentes da normalização, esse processo pode produzir o que a autora chama de “identidades heterossexuais autoconscientes”, tanto no nível individual quanto no coletivo. O que permeia essa observação é a questão colocada pela autora: “Se hoje ser gay é normal, o que é ser heterossexual?”.

A fala da mãe foi recebida muito bem naquela sala. Uma das minhas hipóteses é que talvez muitos desses pais estejam lá porque não conseguem entender que seus filhos são homossexuais. Se isso é a expressão de uma cultura homofóbica ou a percepção do caráter limitador da categoria homossexual, gay ou lésbica, acho que não se faz necessário escolher. Apenas julgo interessante perceber essa tensão e pensar que talvez essas duas hipóteses – que aparentemente estão em pontos extremos – se encontrem, que talvez se espelhem, justamente por expressar a tensão entre a crítica e a afirmação da diferença em termos de identidades sexuais.

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Silêncios

Outra questão relacionada à identidade é a do segredo e da indefinição. Para tratar disso, apresento dois trechos das minhas anotações sobre o segundo encontro, feitas a posteriori, em 8 de maio de 2011:

A mãe que chamou a minha atenção no primeiro encontro não estava nessa reunião. Dessa vez, foi em uma senhora, que deve ter por volta de 60 anos, que se fixou o meu olhar. Ela era a única pessoa ali, além de mim, que foi completamente sozinha; sem filhxs, nem marido, nem ninguém. Ela era extremamente falante e, quando se apresentou, apresentou seus queridxs que ali não estavam, pois moravam em Lisboa: sua filha, que, em suas palavras, é ‘uma ativista de muitas causas e se diz pansexual’, e seu filho, que é mais novo, estudante de medicina e gay. Ela disse, durante a dinâmica proposta, que seu filho só contou para ela que era gay ‘quando já havia resolvido o problema sozinho’. Ou seja, ela apenas foi informada por ele que era gay. O problema, em seu discurso, é a autopercepção e a autoaceitação de seu filho como gay.”

Outra mãe que falou de forma aberta sobre sua experiência foi a coordenadora do grupo. Sua filha, uma jovem lésbica, não estava presente. A despeito disso, a mãe nem ao menos a apresentou: todos, pelo menos no nível do discurso, pareciam conhecer sua filha, assim como a namorada dela. O seu marido já havia mostrado, em uma câmera digital, fotos de ambas, inclusive para mim, durante o piquenique. A mãe disse explicitamente que tinha muito orgulho de sua filha e do amor – palavra usada por ela – entre sua filha e a namorada. Ela salientou que as jovens não se intimidam com preconceito e que, mesmo em um restaurante, jantando com a família, a todo momento estão de mãos dadas. Essas demonstrações de carinho, tão abertas, inclusive em encontros de família, muito a alegravam, pois, segundo ela, ‘coisas perversas acontecem nos bastidores da vida social’.”

Em ambos os trechos, apesar de contextos diferentes, é trazida a questão – ou melhor, a percepção de um problema ou de coisas perversas – no âmbito da indefinição e do segredo. No entanto, se na primeira fala o problema é individual – de autoidentificação e autoaceitação da homossexualidade, resolvido pelo filho sozinho –, na segunda fala o problema é social, especificamente relacionado às coisas que acontecem nos bastidores sociais.

Em ambas as falas, identificamos o que Sedgwick (2007) chama de tensão entre os dois pares de oposição que, desde o final do século 19 nos Estados Unidos e na Europa, marcam a vida de gays e lésbicas, mesmo no pós-Stonewall: a relação entre segredo/revelação e público/privado. A escritora traz a discussão de Foucault e o modo como o autor mostra – no primeiro volume de A história da sexualidade – como se deu, de forma processual, porém acelerada, a partir do século 18, uma aproximação entre “sexo” e “conhecimento”, desde então indissociáveis. Nesse contexto, a figura do armário estaria plenamente carregada da tensão mal resolvida, heterossexista, entre o segredo e a revelação, o público e o privado. Nas falas das mães, por sua vez, a “saída do armário” de seu filho e filha, representariam, respectivamente, a resolução positiva – afinal, ele “resolveu o problema” e lhe comunicou – de uma questão identitária e de autoaceitação em que a explicitação, inclusive para fora do âmbito da família, da relação da filha da coordenadora com a namorada, ou seja, também uma “saída do armário”, protegeria ambas das “coisas perversas que acontecem nos bastidores da vida social”.

Falar e calar

Para Brandão (2010), a importância atribuída ao reconhecimento de um desejo homoerótico – tanto ao autorreconhecimento como ao “assumir-se” – é expressão de uma sociedade que pensa a heterossexualidade como compulsória e, portanto, estigmatiza os comportamentos que fogem à norma. Afinal, quantos heterossexuais se assumem como tais?

Nesses termos, a importância atribuída ao “sair do armário”, tanto em termos identitários quanto no campo das relações, é expressão da heteronormatividade. Mallon (2000) identifica a frase “você é assumido para a sua família?” como uma “(…) questão quase inevitável no processo de conhecimento de outra pessoa gay ou lésbica”. Clarke (2005), em seu estudo sobre livros de autoajuda para gays, lésbicas, amigos e família, conclui que esses livros, assim como a literatura LGBTT psicológica, enfatizam o “assumir-se” como o grande evento. A autora salienta que essa compreensão do evento – mais do que isso, a própria percepção de um “evento” – foca-se na dimensão individual e pessoal – no contexto dessa pesquisa, familiar – de um processo e de práticas envolvidas em um contexto social e político, que é, sobretudo, relacional.

Nesse imperativo da fala, do “assumir-se”, há um silêncio. Malley e Tasker (2000) percebem um silêncio ao tratar das diversidades sexuais no âmbito da terapia familiar. As autoras buscam deixar claro que o silêncio diz respeito não ao debate sobre relações sexuais em relacionamentos, mas a tratar o que é comumente chamado de orientação sexual. Na associação portuguesa percebi o contrário: nada se fala sobre atividade sexual e tópicos usualmente relacionados, como doenças sexualmente transmissíveis, mas muito sobre orientação sexual. Sexo como desejo, identidade, e não como prática. A questão da orientação sexual não apenas está presente, mas aparece como o fundamento para aqueles pais estarem ali, assim como suas respectivas filhas e filhos.

A própria noção de orientação, contudo (apesar da sua ampla discussão e da presença até mesmo no manifesto de fundação da associação), é problemática para esses pais. Isso fica explícito na fala da mãe que não consegue perceber sua filha e a namorada como homossexuais, como lésbicas, “porque elas são tão pessoas”. Desse modo, ao mesmo tempo em que essa questão esclarece a mudança apontada tanto por Richardson (2004) quanto por Seidman (2004), em que ser gay e lésbica deixa de ser uma identidade sexual para se tornar uma identidade social, mostra como a passagem de uma percepção para a outra, pelo menos no âmbito das relações familiares, não é uma simples passagem.

Mattison e McWirther (1995) definem três paradigmas com que gays, lésbicas e bissexuais, assim como membros da família, têm que lidar: quebras dos estereótipos de ideias e imagens sobre homossexuais; atitudes anti-homossexuais, como homofobia, repressão e ignorância; e o processo de coming out. Nessa perspectiva, não apenas os jovens homossexuais vivem a “saída do armário” e todas as suas implicações, mas também seus pais. Portanto, uma vez que esses pais não se tornam alheios ao processo, se dá uma configuração em que pessoas heterossexuais sofrem com a homofobia e o heterossexismo. A dificuldade em “assumir-se” para os pais e mães, heterossexuais, parece trazer à luz o estigma de uma categoria desviante em um contexto em que é constante a afirmação de que ser gay é normal.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, Ana Maria (2010). O vaso de pandora? A revelação do homoerotismo à família. Comunicação apresentada nas XIII Jornadas da Associação para o planeamento da Família, 27 a 29 de maio, Faro (Portugal).

CLARKE, Victoria; RÚDÓLFSDÓTTIR, Annadís G. (2005). Love conquers all? An exploration of guidance books for parents, family and friends of lesbians and gay men. In: The Psychology of Women Section Review, vol. 7, no. 2 – Autumn.

MALLEY, Maeve; TASKER, Fiona (1999). Lesbians, gay men and family therapy: a contradiction in terms? In: Journal of Family Therapy, 21, 3-29.

MALLON, Gerald P. (2000). Gay and lesbian adolescents and their families. In: Journal of Gay & Lesbian Social Services, 10 (2), 69-88.

MATTISON, Andrew M.; MCWIRTHER, David P. (1995). Lesbians, Gay Men, and their Families: Some therapeutic issues. In: Clinical Sexuality, 18 (1), 1-15.

RICHARDSON, Diane (2004). Locating Sexualities: From Here to Normality. In: Sexualities, vol. 7 (4): 391-411.

SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. In: Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, junho de 2007. Disponível para consulta em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332007000100003&lng=en&nrm=iso. Acessado em 29 de junho de 2011.

SEIDMAN, Steven (2004). Beyond the Closet: The transformation of gay and lesbian life. Nova York: Routledge.

Lauren Zeytounlian é mestranda em ciências sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Contato: laurenzeytounlian@gmail.com.

Ilustração: Guilherme Leite Cunha.

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