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E se as fotos da Verônica não tivessem vazado na internet?
Mobilização nas redes levantou questionamentos sobre violações de direitos humanos. Por Lucas Bulgarelli, Mariana Valente e Natália Neris
Meados de Abril de 2015. Matérias sobre a prisão da modelo Verônica Bolina tomam a mídia no espaço quase habitual destinado aos grupos sociais subalternizados: “os casos de polícia”. O que poderia ser mais episódio de agressão a ser investigado pelas instâncias do Estado, longe dos olhos da opinião pública e, sobretudo, daquelas e daqueles que compartilham desta distribuição desigual da violência, tomaria mais alguns dias na imprensa nacional e internacional.
Se por um lado, a divulgação das fotos de Verônica seminua, sem peruca e gravemente ferida numa delegacia em São Paulo, sob a custódia do Estado, expôs sem consentimento sua intimidade, por outro, o horror traduzido pelas imagens acabou por aglutinar movimentos e indivíduos em torno da história. A divulgação nas redes sociais viria a contribuir para a permanência da notícia, além de consolidar a Internet enquanto lócus privilegiado para propagação de discursos que produziam novas verdades e circunstâncias.
O que teria acontecido se as fotos da Verônica não tivessem caído na Internet?
Corpos perigosos
As imagens de Verônica sob custódia, reproduzidas pela mídia e na internet, para além de revelar os abusos de poder cometidos nas dependências da delegacia por agentes do Estado que supostamente seriam responsáveis pela vida e integridade das e dos detidos, escancaram tanto na forma como no conteúdo o seu próprio intento – a violência transfóbica corporificada, sobretudo, no rosto da modelo.
Uma busca no Google com as expressões “transgender” e “attack” desvelam e causam impacto a um olhar pouco acostumado com uma realidade já bastante conhecida por travestis e mulheres trans: uma sucessão de imagens com rostos agredidos e desconfigurados. Eles trazem à tona uma violência particular, que por meio de discursos moralizantes, destroem qualquer marca de experiência ou identidade fora do padrão hetero e cissexual. Aqui reside o caráter imediato das imagens: era necessário destruir o rosto de Verônica, destituí-la de identidade, vingar sua posição enquanto travesti, seus atos corporais subversivos, por meio do desconfiguramento de seu corpo.
A necessidade imposta de adequação dos nossos corpos é evidenciada por Judith Butler com a ideia de “matriz heterossexual”, de forma que, para a nossa sociedade, os corpos têm coerência e fazem sentido na medida em que exista um sexo estável que se expresse através de um gênero também estável. Verônica incomoda, portanto, ao existir.
Nesses termos, a violência estabelecida na relação entre sistema penal, instituição policial e sociedade, ao definir quem é sujeito de direitos e “bom cidadão”, opera determinadas especificidades quando se trata de uma travesti negra.
Exibe-se uma pessoa destituída de traços faciais, trajando roupas masculinas e sem peruca, referindo-se a ela com termos pejorativos e adjetivos masculinos ou por um nome que não a identifica socialmente (como veremos adiante). Utiliza-se ainda de declarações concedidas por agentes policiais, posteriormente desmentidas, que afirmariam ter Verônica se masturbado – emblemática remissão à genitália que não nos deixa esquecer da impiedosa naturalização dos corpos – e mantido a orelha de um carcereiro por mais de uma hora em sua própria boca. Os discursos amplamente divulgados produzidos por determinados agentes do Estado e reproduzidos por inúmeros veículos de imprensa têm por finalidade não apenas a punição de Verônica pela sua existência, mas a sua transformação em um monstro, corporal e imageticamente.
Estas imagens, portanto, revelam uma violência de outra ordem, simbólica, esta cometida não apenas pelos agentes do Estado, mas por toda uma sociedade que preserva e faz valer esta matriz heterossexual. Não à toa, diversas opiniões reproduzidas nas mídias sociais, se referiam à Verônica como alguém que merecia ser punida e aos atos de transfobia institucional como uma justa ação disciplinatória.
Ao tratar da história da sociedade moderna, Michel Foucault a define por meio de uma perversão explosiva e fragmentada que produz e fixa o despropósito sexual. “É uma sociedade perversa, não a despeito de seu puritanismo ou como reação à sua hipocrisia: é perversa real e diretamente.” Em diversos comentários no Facebook, Verônica é retratada como “perversa”. O poder que a nossa sociedade exerce sobre nossos corpos e escolhas, garantido pelo monopólio estatal da força e legitimado por um ressonante anseio social que preza pela vingança, estabelece a todo momento o que é normal e, assim, determina as perversões. É aqui onde Verônica se situa: não como perversa, mas julgada e disciplinada por uma sociedade perversa.
“Se não tivesse vazado, talvez ela estaria morta agora”
Quando as fotos de Verônica começaram a ser circuladas na Internet, uma das inúmeras posições apontou para o abuso na exposição de sua imagem, ainda que as fotos estivessem sendo utilizadas como dispositivo de denúncia. O paradoxo se repete em outros casos. Em outubro de 2013, uma polêmica sobre um vídeo mostrando uma decapitação do México fez com que o Facebook declarasse que permitiria a circulação do chamado “conteúdo gráfico”, desde que viesse na forma de “condenação, e não glorificação”. Ou seja, a empresa passaria a julgar se imagens violentas estariam sendo utilizadas como forma de denúncia a violações de direitos humanos, caso em que seriam legítimas – ainda que, a depender do conteúdo, um aviso pudesse ser mostrado. Em abril de 2015, os padrões de comunidade do Facebook declaram:
Há muito tempo que o Facebook é um local onde as pessoas compartilham suas experiências e chamam a atenção para problemas importantes. Às vezes, essas experiências e problemas envolvem violência e imagens gráficas de interesse público, como o abuso dos direitos humanos ou atos de terrorismo. Em muitas ocasiões, as pessoas compartilham esse tipo de conteúdo para condená-lo ou para conscientizar os outros. Removemos imagens explícitas quando elas são compartilhadas por prazer sádico ou para celebrar e glorificar a violência.
Essa política diz pouco sobre o controle que uma pessoa pode exercer sobre a sua própria imagem, e sobre as situações em que esse controle deveria ser relaxado. Ainda há muito o que avançarmos no entendimento de gênero e privacidade: a ideia de proteção da privacidade tem, nas lutas por igualdade e emancipação em termos de gênero, um caráter duplo perturbador. Se pensarmos na privacidade que tem sido historicamente imposta às mulheres, no sentido de reclusão à esfera doméstica, ela aparece como algo a ser superado; de outro lado, a privacidade como autonomia, inclusive essencial para a participação nos espaços públicos, diz respeito ao controle que cada um(a) deveria ter sobre seus próprios corpos e informações, tão devassados em contextos discriminatórios de gênero.
O corpo de Verônica devassado nas redes sociais explicitou o modo como outras tantas travestis e mulheres trans são tratadas sob a custódia do Estado brasileiro. “Graças a Deus que vazou tudo isso na Internet. Porque se não tivesse vazado, talvez ela estaria morta agora”, disse a mãe de Verônica. Mais um paradoxo da privacidade em tempos de redes sociais.
Produções discursivas da(s) verdade(s)
Se por um lado, a massiva veiculação das fotos escancara a perda de controle da própria imagem por Verônica, por outro, a publicização do conteúdo permitiu trazer à tona o conjunto de violências cometidas pelo Estado. Ao observar as primeiras matérias sobre o caso na grande mídia – TV Band e os canais na Internet da Rede Globo (G1) e Record (R7), veiculadas entre os dias 13 e 14 de abril, é possível notar que, apesar das imagens de Verônica agredida, o foco das reportagens eram as ações e reações cometidas contra a idosa e o carcereiro, de maneira a produzir uma confusão e uma negação da identidade dela:
O travesti Charleson Alves Francisco conhecido como Verônica mordeu e arrancou parte da orelha de um carcereiro numa delegacia de São Paulo. (…) De acordo com policiais civis o travesti havia sido preso em flagrante por policiais militares por suspeita de agredir uma idosa na Bela Vista, região central de São Paulo (…)
Um preso mordeu e arrancou parte da orelha de um carcereiro em uma delegacia na região central de São Paulo neste domingo (12). (…) Quando mordeu a orelha do agente de segurança, o preso ficou com a parte que arrancou dentro da boca e só liberou depois de cerca uma hora, disseram os agentes.
Se, no dia 14 de abril, a narrativa sobre Verônica ganharia um novo enfoque com a circulação das imagens das agressões na internet, compartilhadas por militantes LGBTs e de Direitos Humanos, com a criação da hasthag #somostodasveronica e da comunidade Somos Todas Verônica, no dia seguinte, as mídias sociais passaram a ser utilizadas também por representantes do Estado,com a viralização de áudios de Verônica coletados pela Coordenadora de Políticas LGBT do Estado de São Paulo, Heloisa Alves. De acordo com a Heloisa, a gravação do depoimento e seu envio aos Conselheiros LGBT para difusão nas redes sociais teria como objetivo restaurar a verdade sobre o caso, uma vez que circulava na Internet a informação de que a Verônica teria sido torturada:
Bom, conselheiros e conselheiras, eu acabei de por o áudio da Verônica falando…O delegado gentilmente permitiu, não é uma praxe, só deixar claro isto, isso não é uma coisa usual, ele permitiu que eu fizesse isso, porque eu acho que é uma comoção geral, todo mundo preocupado com a integridade da Verônica, todos preocupados em saber o que efetivamente aconteceu, então por isto, que nós aqui, em conversa com o delegado, o delegado entendeu que seria necessário de repente colocar a Verônica pra falar, porque eu acho que nada melhor do que ela pra dizer realmente o que aconteceu. Então, a única coisa que eu espero do Conselho Estadual LGBT, de vocês que estão neste WhatsApp, é que vocês divulguem este audio, que vocês informem nas redes sociais e pra todo movimento social, o que de fato aconteceu dito pela própria Verônica (…) Então eu só espero deste conselho, que vocês divulguem este áudio, e restaurem a verdade por favor, tá muito claro, eu acho agora, que não houve tortura, que a Verônica mesmo reconhece que ela entrou nesta briga, que ela está realmente machucada, principalmente no rosto, no corpo nem tanto, mas por uma questão do que ela provocou.(…)
As afirmações contidas no áudio, de que não gostaria de ser usada para fins políticos e de que não teria sido torturada – foram desmentidas por Verônica dias depois, em depoimento ao Ministério Público. De qualquer forma, a tomada do depoimento em áudio, enviada por WhatsApp, mostra que o diálogo do Estado se voltava primordialmente às redes.
A partir de então, novas versões têm sido produzidas. O que teria ocasionado os episódios de violência? Quais são as versões ocultadas dos fatos ocorridos com Verônica? Nota-se, ainda, uma narrativa comum em comentários nas mídias sociais que entendia a mobilização em torno do caso como uma tentativa de torná-la uma heroína, inocentá-la ou santificá-la. Assim pode-se compreender a criação das páginas Somos todos a velhinha que foi espancada por Veronica e Somos todos o carcereiro que teve a orelha arrancada por Veronica, nos dias 15 e 16 de abril, respectivamente.
O valor da militância virtual
A mobilização em torno do caso, para além de evidenciar o uso das mídias sociais como instrumento de intervenção social e de disputa de ideias, também acaba por abalar algumas das assunções comuns que se tem feito sobre a militância que é exercida na Internet. Existe uma pressuposição difusa de que o ativismo online vale menos que o ativismo presencial, ou, na linguagem de ativistas de Internet, away from keyboard (longe dos teclados). O motivo principal é aquele que se agrega em torno da ideia de “ativismo de sofá”: likes (“curtir”) não mudam o mundo, é fácil demais soltar uma opinião na Internet ou assinar uma petição, na Internet todo mundo é corajoso.
O ativismo de Internet, para seus críticos, não exigiria comprometimento, por não envolver dificuldades – dificuldades que, nessa crítica, parecem então ser essenciais para qualquer ativismo. Tais críticas são fundamentadas pela ideia de que as pessoas estariam deixando de ir às ruas para ficar somente na Internet, dando voltas em torno daqueles com quem concordam – em suas filter bubbles. Aliás, a grande quantidade de manifestações que vêm ocorrendo no Brasil desde 2013 parece por si colocar essa assunção em xeque.
Para além da reconhecida importância das manifestações de rua (como de fato aconteceu, no Ato Chega de Transfobia! Justiça para Veronica Bolina do dia 24 de abril), importa observar que a existência de uma mobilização online, ao produzir narrativas e aglutinar diversos militantes e simpatizantes, teve êxito ao garantir o apelo necessário à garantia da integridade de Verônica. Não é pouco, embora também não resolva as outras tantas agressões invisíveis que ocorrem diariamente.
De acordo com Vanessa Vieira, defensora do Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública que tem acompanhado o caso, a mobilização na internet contribuiu positivamente para que órgãos estatais de investigação como o Ministério Público e a Corregedoria da Policia fossem pressionados a trabalhar na apuração das violações ocorridas contra Verônica. O caso vem sendo acompanhado também por outras instâncias do Estado como o Centro de Cidadania LGBT de São Paulo e pelos Núcleos Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito e de Situação Carcerária da Defensoria Pública.
E se o caso Verônica não tivesse caído na internet? Das possíveis realidades que se vislumbram, há uma facilmente (re)conhecida pela sua constância em tantos outros relatos de agressões transfóbicas, marcados pela privação da dignidade, pela indiferença e pela sujeição a uma condição marginal de cidadã(o). As possibilidades que surgem desta pergunta não apenas evidenciam posições sociais e historicamente desiguais reservadas às chamadas “minorias sociais”, como escancaram os mecanismos que perpetuam as regras de normalidade do corpo e do sujeito por meio da vigilância e da punição. Os inúmeros comentários enviados para a página criada por Marli, mãe de Verônica, nos lembram sobretudo que existir, com direito a um rosto e a uma identidade, parece antes de uma escolha, um privilégio.
“Mãe que defende filho bandido,eh bandido tbm ou so ta qrendo aparecer??”
“Essa senhora clama tanto por respeito, amor….princípios estes, que com certeza ela não passou ou ensinou ao seu filho! Ahhh hipocrisia dos infernos!!! Lei do retorno existe sim! Aqui se faz, aqui se paga!”
“Tem gente que ainda tem coragem de defender esse animal. Olha aí o que ele fez com a senhora de 72 anos. Achei é pouco o que fizeram com ele.”
“Eu quero mais que ela apodreça onde ela está, la sim é o lugar dela… #somostodosdonalaura….”
“Deveria ter apanhado mais e de um civil normal, assim como esse monstro de tetas fez! Verônica é sim um mostro! Quero saber é da travesti que salvou a dona Laura, antes que ela fosse morta. LGBT que se preze luta por dignidade, não defende quem é homicida! Somos todos humanos, nem um pouco verônica.”
Lucas Bulgarelli, Mariana Valente e Natália Neris fazem parte do InternetLab – Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Ilustração: Mariana Leme