Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

geni na pista

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Baldio

Fomos compartilhar experiências com o coletivo Baldio, em Belo Horizonte. Por Marcos Visnadi

 

 

 

O trabalho coletivo, quando transformado no substantivo “coletivo”, é um mistério, um problema e uma alegria.

 

É um mistério como pessoas diferentes, às vezes vindas de realidades diferentes e, quase sempre, com perspectivas de trabalho diferentes, conseguem realizar algo juntas. Algo que não pertence a nenhuma delas, em particular, mas que também não é só do mundo, embora sempre seja, porque sempre que a gente põe a cara no sol é no mundo que pomos a cara. O trabalho tem a cara de todas as pessoas que o fizeram, em suas ações e omissões, coletivamente.

Isso costumar virar um problema. Ou vários. Afinal, quando a gente se mete numa coisa assim, está propensa a trombões, desencontros e a anular continuamente o nosso eu, esse todo bobo, mais bobo do que todo, avaliado pelas outras pessoas e que sempre precisa se colocar quando queremos nos retirar, ou ficar quieto quando queremos gritar mais alto que todo mundo.

Mas aí vem a terceira parte, que, quando acontece, é o motivo, afinal, de todo trabalho desse tipo: a alegria. Na Geni, a alegria tem sido os encontros que o nosso trabalho proporciona, inclusive com a gente mesma, e ver a revista sair mensalmente, há quase dois anos, sempre surpreendente e, ufa, poucas vezes a surpresa é ruim.

 

 

Babadeira

 

Fui falar sobre essa experiência, que é a minha, na exposição Baldio, que aconteceu no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, de 19 de fevereiro a 7 de abril deste ano. Uma exposição que não expunha nada, mas que, na verdade, expunha tudo. Em vez de fazer uma mostra de arte estática, o coletivo Baldio resolveu usar o espaço do Sesc para armar a redação de um jornal, que ao fim foi lançado dia 8 de abril e que está circulando por aí.

A Geni foi chamada para falar sobre sua experiência como revista autogerida, independente, militante e babadeira. A gente vive recebendo convites legais, mas esse foi um dos primeiros destinados especificamente a que contássemos sobre o nosso processo para que um grupo vivendo processo semelhante pudesse aprender com nossa experiência.

Descobrir que tínhamos uma experiência que valia a pena compartilhar foi a primeira coisa boa do convite. Contribuir de fato para o Baldio foi a segunda. O jornal que o coletivo estava fazendo tinha como tema a cidade, e, segundo nos disseram, a fala da Geni foi decisiva para que o recorte de gênero fosse considerado decisivo na experiência de cidade que o Baldio realizou.

Abaixo, publicamos a transcrição de uma parte do debate que foi publicada no jornal do Baldio. É um registro não só do trabalho desse coletivo, mas também do nosso coletivo. E quem sabe não será útil pra outros? Esperamos que sim.

 

Agradecemos muitíssimo o pessoal do Baldio: Frederico Filippi, Júlia de Carvalho Hansen, Laura Berbert, Mateus Acioli, Reuben da Cunha Rocha e Ricardo Reis. Para ver alguns registros do trabalho que fizeram, entre no site ou na página do Facebook do grupo.

 

E continuemos coletivizando!

 

 

marcos

 

 

Transcrição da parte final do debate realizado dia 28 de fevereiro no Sesc Palladium, em Belo Horizonte

 

 

Marcos: Temos três questões em aberto e que podem ser problemas compartilhados por outras revistas. A primeira: o público. Para quem a revista é endereçada? A ideia era não fazer uma revista acadêmica nem voltada para a militância, mas para um público geral. Mas, quando você fala em “geral”, corre o risco de falar pra você mesmo, e a gente acabou assumindo, sem ter uma solução: é pra gente mesmo. Cuido do Facebook da Geni, que tem agora 25 mil curtidas e a maioria é gente branca, universitária, mulher, entre 20 e 40 anos, que é meio o fenótipo da maioria de nós. Os temas são também uma forma de sair da caixinha e falar com outras pessoas. Nas duas edições sobre negritude [número 5 e número 17], por exemplo, a quantidade de pessoas negras acessando a revista foi maior. O tema da visibilidade lésbica também mudou as caras. Assim como espero que a edição sobre velhice alcance pessoas que de outra forma não se interessariam pela revista.

 

Nosso slogan, “dá pra qualquer um/a”, também foi uma questão. Qualquer um inclui o pastor evangélico que envie um artigo dizendo que mulher não tem que trabalhar? Pra esse “qualquer um” a gente não dá. A prioridade são grupos sem espaço na mídia tradicional. A Geni [http://revistageni.org/06/jgennyival/] que dá pra qualquer um não dá pro bispo nem pro prefeito, ela dá pros miseráveis, pros quaisquer uns.

 

Uma das nossas principais preocupações é buscar travestis pra entrevistar, que são talvez a classe de pessoas mais cruelmente representada na mídia tradicional. Nas reportagens, buscamos mais opiniões de mulheres que de homens. São escolhas políticas que a gente espera que sirvam pra dar voz, mas também estabelecer uma ponte com as Genis da vida, com as quais nos identificamos e que são uma população muito variada.

Outra questão é a linguagem. Chamar as travestis pelo feminino é uma coisa grande, porque não acontece na mídia tradicional. Embora algumas se refiram a si no masculino, tem uma convenção no movimento político organizado de que o tratamento correto é o feminino. Houve uma entrevistada que se referia a si das duas formas e disse que pra ela tanto fazia. Mantivemos a fala dela, mas no editorial respeitamos o paradigma político. Também usamos o “x” pra borrar a designação de gênero. designamos nossxs leitorxs. Um jargão de internet que resolve o problema material de incluir todo mundo. Falar de sexualidade significa incluir pessoas que não se identificam em nenhum dos pontos do binarismo homem/mulher. Mas isso foi sendo relativizado, há pessoas não binárias que não gostam do uso do “x”, não existe essa convenção política; e a palavra escrita assim não é lida pelos softwares de navegação para pessoas cegas. Algo em que só pensamos através do contato, que vira embate, pois falamos de um lugar de privilégio, de quem não é uma pessoa cega. Então se a gente não estiver aberto pra recuar e dar espaço pra outra pessoa a gente vai atropelar, pois temos o privilégio de estar num site, por exemplo, feito só por pessoas que veem.

 

Flávia: Vocês chegam nas travestis?

 

M: Muito pouco. É uma discussão que a gente tem agora, a gente teve duas colunistas travestis que renderam duas colunas cada uma [Janaína Lima e Amanda Palha]. Não foi pra frente a coluna de nenhuma delas. Elas pararam de escrever. Agora apareceu outra querendo escrever. É uma travesti de Campinas, é prostituta e chegou na Geni porque conheci uma menina que estuda prostituição na faculdade de ciências sociais. Ela conheceu essa travesti, que é uma pessoa que tem acesso a internet e tudo, mas que não é o nosso público. Não tem nada a ver com a gente, apesar de ter a nossa idade. Mas é uma vida tão outra, são pessoas que estão tão alijadas de tudo que a gente começou a pensar que, se pá, pra incluir travestis como vozes na primeira pessoa, não basta só fazer como com as outras pessoas: “Ah, chegaí”. Porque elas têm tanta coisa na cabeça. Essa, que talvez tenha uma coluna agora, está muito empenhada em escrever a biografia dela e a gente está oferecendo esse espaço pra ela, de ter uma coluna em que ela conte a vida dela. Não basta só a porta aberta, não basta só o convite, então a gente está pensando como fazer pra incluir de fato. (…) A gente quer muito se articular com outras pessoas, com outros grupos, mesmo grupo político organizado, mas tem barreiras de linguagem, barreiras ideológicas, tem que abrir mão de privilégio, abrir mão de conforto e, ao mesmo tempo, só abrir mão não é o bastante porque tem que ter ponto de conexão, tem que achar o ponto de conexão.

 

(…)

 

Aparece muita gente com dúvida e é uma angústia grande, porque a gente não sabe responder. Essa semana uma menina escreveu na nossa página no Facebook: “Não participo de nenhum grupo feminista, não conheço nada disso, mas vi um comentário na internet, achei horrível e não sei o que fazer”. Bom, né? Internet… é chato… mas não sei também o que fazer. Vai fazer o quê? Vai denunciar? Pra quem? E a questão do aborto é… sei lá, pra mim… talvez todo mundo do coletivo concorde, a gente nunca conversou, mas pra mim, depois das questões das travestis, que eu acho que teriam que ser a prioridade da Geni, o aborto é a segunda. É o que mais aparece quando a gente vai ver que palavras no Google acharam a gente: é sempre “como fazer um aborto”. A primeira vez que a gente se propôs a responder isso foi porque chegou especificamente a frase “preciso abortar me ajudem”. A gente teve uma puta discussão na lista. O que fazer? A gente ajuda como? Dá endereço de clínica? Compartilha cartilha? O que a gente vai fazer que vai ser considerado crime? A gente entrou numas nóias do tipo “e se isso é uma investigação da polícia?”. E pode ser, né? A polícia usa drone pra prender quem planta maconha no terraço de casa, ela pode estar mandando e-mail pra grupos feministas pra ver quem é que está incentivando o aborto. E foi um impasse. Um impasse que a gente não soube responder. O que a gente fez, no outro mês, foi uma matéria sobre um grupo de feministas lésbicas na Argentina que trabalha especificamente com ajuda pra mulheres que querem abortar. Elas têm uma linha de telefone, oferecem todo tipo de informação, têm uma rede de como usar o remédio. Uma amiga minha inclusive abortou assim. Elas ligam pra mulher, conversam horas, falam desde coisas básicas tipo “fica tranquila, não é culpa sua, não tem culpa envolvida” até “olha, toma o remédio assim, espera tanto tempo, se acontecer isso você faz aquilo” e ligam de novo pra saber. E a gente fez uma matéria sobre esse grupo. Inclusive linkando apostila, mas… é um problema. Ao mesmo tempo a gente queria também ter essas informações, até porque pra gente elas são úteis. Mas é tanto problema. Um menino escreveu dizendo “vou correr num parque perto da minha casa e tem um cara que fica lá me esperando e fazendo comentário homofóbico. Que que eu faço?”. E que que ele faz? (…) É um puta trampo, né? Receber a pergunta, digerir, respirar, falar “nossa mas o mundo é uma bosta, né?”. Tá vamo lá, vamos resolver, achar a pessoa que vai conseguir responder, pegar a resposta da pessoa, transformar num texto compreensível, checar se a resposta da pessoa tá certa, porque né? Não vou publicar uma coisa que vai dar mais problema… A gente não consegue fazer tudo. Mas o ideal seria fazer isso, ter esse tipo de curadoria da informação. Que acho que falta e é o papel da imprensa. Tipo “por que tá faltando água?”, “por que não tem água na minha torneira?”, tenho que entender a coisa, tenho que falar tanto “ah, tão desmatando a Amazônia”, quanto falar “teve desvio de verba do governo na companhia de saneamento”, quanto falar, “não deixe o balde destampado porque vai ter proliferação de dengue”. E aí, com uma equipe pequena, a gente não consegue. Mas é uma ideia nossa.

 

(…)

 

M: Eu acho que toda escolha que você faz é política. Ela trabalha com, parte de um lugar, e está indo pra outro. Eu sou cabeçudo, né? Tenho essa ideia meio fixa de militância. Talvez eu enfatize muito um lado da Geni que talvez não seja tanto assim porque, pra isso de retratar os quaisquer uns, a gente tem que necessariamente dar espaço pra primeira pessoa, né? Tem que dar espaço pras pessoas que não publicam em jornais convencionais falarem. Agora, mesmo esses textos passam por esse crivo e aí geralmente não tem problema. (…) Mas essa coisa também de “é um ponto de vista pessoal” e isso estar imune a críticas ou imune a ser uma forma de exercer violência de um jeito negativo… enfim, a gente fez uma edição sobre o HIV pra descobrir que ninguém tá imune a coisa nenhuma. Mesmo os discursos subjetivos, apesar deles terem uma flexibilidade de linguagem maior, se encontra uma barreira, a barreira é que prevalece. No nosso caso. No tipo de trabalho que a gente quer fazer.

 

Laura: Pela sua presença aqui no Baldio, acho que a gente esbarra numas coisas, e a gente não trocou ideia no Baldio ainda, mas que acho que pode ser um assunto pra gente: é a gente tá trabalhando juntos na cidade. E fica me vindo muito a experiência da cidade pra mulher. É uma coisa que a gente não conversou ainda, entre o grupo, que tem homem e tem mulher e a gente tá falando muito da experiência da cidade. Pra mim, quando me coloco no lugar de produzir, sou mulher, não consigo ignorar isso. Tem situações que fazem a gente esbarrar e fico sempre pensando, acho que é um problema (…) queria saber o que você tem a comentar sobre isso.

 

M: É… deixa eu pensar. A coisa da pauta e tal. Acho que a situação de vocês é muito diferente da Geni. A gente teve quatro meses só pra conceber a revista. Tirando isso, a gente tá faz dois anos concebendo ainda. E não tem nada muito pronto, nem muito definido. Agora, a minha experiência de trabalhar num coletivo que tem uma maioria de mulheres e que tem uma minoria de pessoas trans, porque isso é uma questão, acho que aqui não tem nenhuma pessoa trans, isso é uma questão que a gente não percebe. Assim como, sei lá, a Geni é um coletivo que tem uma minoria de negros. Tem quatro meninas negras. De 20 pessoas. Como não atropelar as pessoas que são minoria? E aí eu tenho aprendido muito. Porque a maioria das pessoas na Geni são mulheres, e mulheres que têm experiência com grupos só de mulheres, com grupos feministas, que estão nessa luta de entrar no espaço público, de fazer os seus temas serem tão ou mais válidos do que os outros… a Júlia estava falando de que a maioria das pessoas em Belo Horizonte são mulheres, sabe? Então, isso é o tema da cidade. Não tem como… acho que a maioria das pessoas do Brasil são mulheres. Não considerar isso é reforçar violências. Você tem que tirar isso de baixo e jogar no destaque. Mas é um puta trabalho pra todo mundo. Pra mim, pessoalmente, que sempre fui identificado e me identifiquei como gay. Ou seja, sei o que é estar num ambiente predominantemente hétero, que ou estão cagando na minha cabeça, ou não estão me deixando falar, ou estão relativizando meus problemas nesse assunto específico. E daí eu me vejo fazendo a mesma coisa em grupos que têm mulheres. E aí, com as travestis, isso é mais evidente ainda. Teve uma reunião da Geni que foi uma menina travesti e aí, ela abre a boca, se você está disposto a ouvir, você vê que não, você tem que dar 30 passos pra trás e repensar pressupostos. Pra mim especificamente, que não tenho amigas travestis. Mas é uma briga de foice. Tanto pra quem está se sentindo alijado se colocar e perceber que sim, que é válido, é superválido. Não sei exatamente quais os problemas que vocês estão discutindo, mas é a sua experiência de cidade, se você vai falar de cidade vai falar a partir da sua experiência. E a sua experiência é a mesma da maioria das pessoas em BH, então é muito válida. Ao mesmo tempo, é um desafio, pra quem não tem essa experiência, e aí eu falo como homem, cissexual, que parece hétero, alguns dizem… [risos] “nossa você nem parece…”, um “puta elogio”! Mas, enfim, às vezes eu levo xingo na rua com a minha camiseta cor-de-rosa, sabe? Mas às vezes visto roupa sóbrias, tenho barba e tal, sou lido na cidade como hétero, muitas vezes. E não enfrento resistência. E recuar desse meu privilégio, que é um privilégio andar tranquilo na rua, perceber que isso é um privilégio, eu só percebi depois de apanhar muito das meninas: “ô ô, fica quietinho e escuta um pouquinho aí, que você tem que aprender”. (…) Na Geni isso é assunto o tempo inteiro, não é pacífico, é uma dificuldade de elaboração de linguagem, de escolha de pauta e tal, uma coisa que a gente precisa estar sempre atento e pensando. Mas a gente tem esse problema quando a gente vai pensando os assuntos. O único tema que a gente repetiu foi o mês da consciência negra, em 2013 e 2014, e aí é uma coisa que a gente tem menos repertório. Aí fico pensando que é mais uma coisa de buscar escutar do que de falar, sabe? Mas é um exercício. E mesmo quando a gente fala de transporte público. A gente fez uma matéria quando queriam passar o ônibus cor-de-rosa lá em São Paulo, escutamos os diversos coletivos feministas que estavam atuando diretamente nessa questão, que estavam indo na câmara municipal, e ouvir inclusive o que tinham a dizer os que achavam que era uma proposta válida. A maioria achava que não. Mas tinham alguns que achavam que era. A gente tem que ter esse espaço de escuta. Que eu acho que é o que os meios de comunicação corporativa, patronais, não têm. Porque o jornal tem a linha do patrão.

 

(…)

 

Ricardo: Acho que foi bem benéfico, tanto de pensamento, quanto de pensamento ligado ao próprio Baldio, poder partilhar um outro método, ver como ele funciona, ele também ser um movimento coletivo, maior do que o nosso, o nosso é um pouco menor. Por exemplo, vocês têm esse posicionamento político que eu acho que aqui também tem, ele pode não ser o assunto, mas acho que a partir do momento que você elege o pequeno, as escolhas que se fazem estão nesse caminho. Eu senti que foi bom isso. Parece que vai dando mais chão, pra gente entender quais são as possibilidades, que tipo de jogo que dá pra estabelecer com as coisas, como se pensa a informação, nesse sentido. E eu acho que foi bem positivo ouvir você falando, dividir isso com a gente, foi rico.

 

M: Legal.

 

R: Obrigado.

 

 

 

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[Cartaz do coletivo Baldio]

 

 

 

 

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Ilustração: Emilia Santos

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