Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

literatura

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Outros mundos possíveis

Reflexões sobre a ficção científica de Ursula K. Le Guin. Por Raquel Parrine e Cecília Rosas

 

 

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Ser uma mulher no clube do bolinha da ficção científica deve ser difícil. Por outro lado, não tem como imaginar o talento cósmico de Ursula K. Le Guin passar por algum lugar sem ser reconhecido. Ela ganhou tantos prêmios Locus (o Oscar da ficção científica) quanto a Meryl Streep foi indicada ao Oscar (o prêmio Locus do cinema) – tantos que talvez deveriam ser chamados prêmios Le Guin.

Pronuncia-se lê gwim, se você está se perguntando. Le Guin nasceu em 1929 nos Estados Unidos, filha dos antropólogos Alfred L. Kroeber e Theodora Kroeber. As preocupações que aparecem na sua obra passam muito longe do feijão com arroz da ficção científica: ela transita livremente por temas tão variados como gênero, exílio, transculturação, solidão existencial, distância antropológica, alteridade, anarquismo e taoísmo.

Depois de uma longa carreira colecionando todos (sério, todos) os prêmios de ficção científica, em 2014 ela recebeu a medalha pelo conjunto da obra da National Book Awards – uma espécie de reconhecimento do mundo da literatura “séria”. E o mais legal é que, no discurso de aceite, ela reafirma o valor da ficção científica como gênero de resistência e que, depois de tanto tempo ganhando prêmios de ficção científica e infanto-juvenil, não era nada mal ser considerada lado a lado de grandes autores, os ditos “realistas”. Para além de questões de legitimação por prêmios, associações etc., é uma defesa do lugar da ficção, um questionamento do cânone:


“Como vocês sabem, livro não é só uma mercadoria. A ideia de lucro frequentemente entra em conflito com os objetivos da arte. Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inevitável. O direito divino dos reis também parecia. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte, e várias delas na nossa arte – a arte das palavras.”

 

 

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É interessante perceber como ela é capaz de se colocar, mesmo em momentos de grande consagração, contra certos discursos hegemônicos. Mesmo receptora de tantos prêmios, mostra que tem uma relação diferente com eles.  Ela não estava falando dela mesma, mas da ficção científica como um todo. E essa é uma velha discussão, para nós, fãs de Le Guin. Ela não defende a ficção científica como o Celso Portioli vende Jequiti, quer dizer, claramente não é para próprio benefício, porque, ao contrário do Celso Portioli e do Príncipe Charles, ela já é rainha.

 

Sou dessas

 

Como os fãs de Monty Python são divididos entre os fiéis da cabaça e os fiéis da sandália, ou melhor, os que preferem A vida de Brian e os que preferem Em busca do cálice sagrado, os leitores de le Guin estão divididos em: os que curtem a trilogia de Terramar e os que curtem o ciclo Hainish.

 

 

Ciclo de Terramar

 

Clássico caso de trilogia com cinco livros, começou a ser escrita em 1968. As três obras originais contavam com os livros O mago de Terramar, As tumbas de Atuan e A praia mais longínqua. Era a história de um garoto chamado Ged, que entra numa escola de magia. Isso soa estranhamente familiar… Pois é, seria um primo do Harry Potter, ou do Livros da Magia, se não tivesse sido escrito em 1968; ou seja, tecnicamente foi ela quem inventou esse negócio de escola de magia.

Mas, então, por que você, leitora de Harry Potter, que recebeu um spoiler histórico involuntário, deveria cavucar um monte de sebo e ler a trilogia de Terramar? Primeiro, pela ambiguidade. Até o meio do livro, você não sabe se Ged é bom ou mau: quer dizer, a pessoa pode achar que é do bem, mas na verdade é do mal, que nem o Luciano Huck. Ele faz de magia negra, e isso tem consequências terríveis na escola. Segundo, a escola de magia é muito mais interessante que Hogwarts. Le Guin se inspira na experiência que teve na infância, o pai trabalhando com o último descendente de uma população ameríndia norte-americana, tornando essa escola um lugar privilegiado de contato com a magia da natureza, da essência das coisas e da criação do universo. Ao contrário de Hogwarts, que também é divertida, mas raramente adiciona algo ao conceito de magia que advém dessa tradição europeia hegemônica: magos da luz e da sombra, o poder do amor, a adivinhação, monstros da floresta, anões e gigantes e o bem que deve vencer o mal. Parece uma distinção discreta, colocada desse jeito, mas não deixamos de pensar que foi esse conceito de mágico e magia que levou à fogueira as bruxas de Salém e que conduziu os autos de fé da Inquisição. Será que Le Guin não traz uma discussão fundamental para a renovação do gênero fantasia, desvinculando-no de uma aliança fascista que data de quase mil anos?

Além disso, Ged, que é o protagonista dos primeiros três livros, dá espaço para a personagem feminina, Tenar, nos últimos dois romances. Tehanu, o nome da estrela e Um vento diferente foram escritos 20 anos depois da trilogia inicial, num movimento que parece uma retratação ao aspecto masculino dominante. Assim, Tenar recusa o papel que lhe fora designado para viver uma vida tranquila. Sua inteligência, compaixão e determinação fazem a maior diferença no mundo dandesco de magos e príncipes apaixonados por si mesmos. Essa mudança de perspectiva do masculino ao feminino corresponde a uma mudança do externo para o interno, do aventuresco para o doméstico, que pode ser crítica. Mas parece propor que também o raciocínio, a intuição e a humildade são heroicos.

Mais uma razão para perder horas na internet buscando torrent dos livros: a questão racial. Já percebeu que, na maior parte da ficção científica e fantasia, a pessoa viaja pra outro mundo e, sem surpresa, constata que todo mundo lá também é branco? Em Marte, em Vênus, num planeta que ainda não existe, num buraco negro, na Terra Média. Só é negro quem é do mal ou figurante.Tem até vilão que, para todos os efeitos, é negro, é dublado por um ator negro (o grande James Earl Jones), mas quando se redime, mostra um lado humano e finalmente tira a máscara, é branco. Ei-lo:

 

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Todos homens, todos brancos

 

Talvez tudo tenha começado no começo. Admitido como precursor de basicamente qualquer universo de fantasia, O senhor dos anéis foi escrito entre 1937 e 1949. Seu mundo, a Terra Média, e suas criaturas do bem são ameaçados por uma força do mal, comandada pelo lorde negro Sauron. Sua trilogia de três livros conta, então, como ocorre a resistência e o sucesso do bem contra o mal.

Ao olharmos rapidamente um mapa da Terra Média, podemos ver que as forças disruptivas da alegria e harmonia do reino vêm do leste, de Mordor. O exército do bem é composto de homens, elfos, anões e hobbits que são assim:

 

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E as forças do mal são compostas por Sauron, que é basicamente um olho a laser, e umas criaturas fétidas e horrendas, aparentemente clonadas, que nascem de uns ovos na terra (?!), os orcs e os uruk-hai. Eles são assim:

 

 

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Como podemos ver, a obra de Tolkien não tem intenção de esconder sua inspiração na ordem de poder que rege o nosso mundo. Assim, a ameaça que vem do leste, os monstros negros, as linhagens antigas das famílias homens, elfos e anões, os heróis de cabelo platinado, tudo isso claramente reproduz a ideia eurocêntrica do que é belo e bom versus o estrangeiro ameaçador e não civilizado. Só que, na obra de Tolkien, isso tem uma razão de ser. Porque podemos pensar que o SdA é uma narrativa que dá conta da experiência do autor como soldado na primeira guerra mundial. É interessante que os protagonistas, especialmente o Frodo, não são como os heróis do cinema americano, capazes de desviar de todas as balas e de se recuperar de todos os ferimentos. A batalha na Terra Média muda o caráter dos inofensivos hobbits para sempre, como a guerra de verdade faz. Se pensamos assim, analogamente, essa visão preto no branco do que é bom e do que é mal faz parte de uma lógica nacional desesperada que precisa mandar suas crianças para a guerra. Dessa forma, faz sentido que o Peter Jackson, produtor e diretor da adaptação de SdA para o cinema, tenha escolhido representar os humanos que traíram o movimento e resolveram seguir as forças do mal desse jeito.

A dinâmica racial-social-política parece ecoar as relações de poder da nossa realidade. Os brancos estão lutando pelo trono enquanto os negros lutam pela liberdade da senzala. Para que imaginar um mundo todo novo se, no fundo, ele é igual ao seu? Ou melhor, se o prazer de ler essas fantasias é curtir as possibilidades de criação de universos, culturas, paisagens totalmente novas, por que o mundo ficcional não é capaz de superar os preconceitos históricos herdados pelo nosso mundo? Será que a ficção, como força criativa, não é poderosa o suficiente para nos transportar a um mundo que seja realmente diferente do nosso?

E agora, talvez o pior alienígena que já existiu:

 

 

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Como é possível que um alienígena, nascido no planeta Kripton, seja branco dos olhos azuis? De todas as formas incríveis e extraordinárias que um alienígena poderia ter, ele parece qualquer mocinho de qualquer filme estadunidense. Não tem nem o mínimo: a orelha pontuda do Spock, nem a noção especial de moda, como a Princesa Leia. Ou seja,  mesmo comparado com outros alienígenas brancos, ele chama a atenção. Disfarçado ou ao natural, Clark Kent parece um cartão postal do poder e soberania daqueles que as detêm, na vida real.

 

 

…de volta a Terramar

 

Ursula Le Guin se mostra, mais uma vez, consciente dessas questões. No prólogo a seu livro de contos The Fisherman of the Inland Sea, ela questiona estereótipos da ficção científica, como a alta tecnologia e o senso de previsão do futuro, e chega à conclusão de que a diferença que esse gênero traz é basicamente uma visão de ficção mais “espessa” que outros tipos de literatura. Pensando no Super-homem, dá para ver que essa consciência de que o sci-fi liberta a literatura da necessidade de realismo é fundamental na obra dela. Assim, ela propõe uma mudança nessa tradição de fantasia/sci fi que não consegue (ou não quer) superar as dinâmicas de poder encrustadas nas sociedades de onde são geradas.

Por isso é tão importante que, em Terramar, a galera racialmente pareça com os nativos americanos. Em alguns países, são meio orientais-chineses e os brancos são uma ridícula minoria. Ursula disse que se inspirou na configuração étnica do mundo hoje e na ideia de que os genes caucasianos, como são recessivos, teriam menos possibilidade de dominar num futuro inter-racial.

Assim, deve ter sido um verdadeiro choque descobrir que a sua combativa obra tenha sido adaptada pelo Sci Fi Channel desse jeito:

 

 

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Percebeu alguma coisa estranha? Quem é esse cara branco leitinho com pera no primeiro plano da imagem? Sim, é o Ged. Ursula ficou possessa com essa adaptação e rodou a baiana na internet, dizendo que foi contratada como consultora criativa do negócio, não sendo no entanto consultada nenhuma vez, principalmente no que dizia respeito à origem étnica dos personagens.

 

 

Ciclo Hainish

 

Se o universo de Terramar é um lugar mais parecido com a Terra Média, ou seja, mais voltado para a fantasia, o ciclo Hainish é mais ficção científica. Os livros são: Os despossuídos (1974), Floresta é o nome do mundo (1976), Mundo de Rocannon (1966), Planeta do exílio (1966), Cidade das Ilusões (1967), A mão esquerda da escuridão (1969) e The Telling (2000, que aparentemente não tem tradução para o português).

 

 

A mão esquerda da escuridão


Único livro de Ursula atualmente editado no Brasil, é extremamente indicado para quem se interessa em ler uma ficção científica política que testa os limites de uma ideologia, ou ensaia uma possibilidade. Esses são os sci-fi menos famosos, porque não têm cena de luta, não tem pistola supersônica nem sabre de luz, dando um resultado estético feio para a televisão.

 

Não… dá… para… parar… de… ver..

Não… dá… para… parar… de… ver..

 

A mão esquerda  talvez seja seu maior livro. O prefácio já começa matador e revela a profundidade da reflexão da obra. Agora pensando melhor, parece muito o prefácio de O retrato de Dorian Gray, em que se resumem, em frases de efeito, os temas do livro.

 

“Falo sobre os deuses, mas sou ateia. Porém, sou artista também e, portanto, mentirosa. Não confie em nada do que digo. Estou dizendo a verdade. A única verdade que consigo entender ou expressar define-se, logicamente, como uma mentira. Define-se, psicologicamente, como um símbolo. Define-se, esteticamente, como uma metáfora”. (2014, p. 10)

 

Nesse trecho, Le Guin parece dialogar com uma discussão antiga que busca definir o conceito de arte. Se não é a busca pelo belo como o Romantismo provou, com suas figuras monstruosas e com sua investigação do lado sombrio do homem (vide Victor Hugo, o Prefácio de Cromwell)   o que seria? A filósofa francesa Danièle Cohn sugere que seja uma busca estética pelo valor profundo da verdade.

É singelo como essa ideia faz Ursula concordar com seu protagonista, Genly Ai, que inicia o livro desta forma:

 

“Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação. O fato mais concreto pode fraquejar ou triunfar no estilo da narrativa: como a joia orgânica singular de nossos mares, cujo brilho aumenta quando determinada mulher a usa e, se usada por outra, torna-se opaca e perde o valor. Fatos não são mais sólidos, coerentes, perfeitos e reais do que pérolas. Mas ambos são sensíveis.” (2014, 13)

 

Muito pós-estruturalista esse Genly Ai, que considera a verdade do texto e não do evento. Isso é extremamente significativo quando a Ursula insiste que “escrev[e] ficção científica, e ficção científica não trata do futuro” (p. 10), porque “O futuro, em ficção, é uma metáfora” (p. 11). Metáfora de quê, ela pergunta, e a resposta é que a verdade é uma questão de imaginação (p. 12). Trocando em miúdos, a questão é a seguinte: a ficção é uma forma de investigação da realidade por meio da imaginação.

Em outro lugar, ela diz ainda que “imagens e metáforas usadas por um escritor sério são imagens e metáforas das nossas vidas, formas legitimamente novelísticas e simbólicas de dizer o que não pode ser dito de outra forma sobre nós, nosso ser e escolhas, aqui e agora. O que a ficção científica faz é aumentar o aqui e agora” (LE GUIN, 2011). Se a ficção científica é vista, pela escritora, como uma metáfora do presente, você deve estar pensando que este argumento refuta totalmente o que dissemos sobre o Superman. Mas é exatamente o contrário e podemos provar.

 

 

Invenção e sexualidade

 

Genly Ai, o protagonista do romance e razoavelmente seu maior narrador, é um homem (sim, humano, não alienígena) negro do planeta Terra enviado ao planeta Gethen para convencer seus soberanos a unirem-se à Liga dos Mundos (uma espécie de ONU intergalática). Para ele, sua vivência naquele planeta é uma experiência muito difícil de exílio e incompreensão. A todo o momento, o fato de ele ser alienígena, ou seja o Outro, e de estar em um planeta que, para ele, é alienígena, representa uma fonte constante de consciência e constrangimento. Principalmente porque, aprendemos cedo no livro, Gethen é um planeta de seres andróginos assexuados. Eles têm ciclos de 30 dias (como o da menstruação), cujo ápice (chamado “kemmer”) os leva a desenvolver um dos sexos por alguns dias a fim de ter relações sexuais com outrem(s).

 

“Quando um indivíduo encontra um parceiro no kemmer, a secreção hormonal recebe novo estímulo (principalmente pelo toque… secreção? cheiro?), até que, num dos parceiros, ocorra a predominância hormonal masculina ou feminina. Os órgãos genitais crescem ou encolhem, conforme o caso, as preliminares se intensificam e o outro parceiro, provocado pela mudança, assume o papel sexual oposto (Sem exceção? Se há exceções, resultando em parceiros kemmers de mesmo sexo, são tão raras que podem ser ignoradas). (…) Indivíduos normais não têm nenhuma predisposição para um dos papéis sexuais no kemmer: não sabem se serão macho ou fêmea, e não têm escolha na questão.” (p. 94)

 

Também achamos meio tacanha essa necessidade de ser homem ou mulher. Por que não os dois? Por que não relações homo? Mas o foco aqui é justamente esse: tentar imaginar um mundo em que não exista, a priori, a dualidade feminino e masculino, porque, do ponto de vista dos genthenianos que podem ser os dois, ela simplesmente não existe. As páginas que seguem são de uma vitalidade impressionante. Le Guin toma a voz de uma antropóloga para refletir a respeito dessa possibilidade e explorar as consequências de um mundo sem disputa ou violência de gênero (porque não há gênero!).

Há várias consequências muito loucas, como: você pode ser pai de uma criança e mãe de outra criança; todo mundo tem direito à licença maternidade e não há diferenças salariais entre trabalhos masculinos e femininos; (uma bem engraçada) não existe complexo de Édipo; não existe estupro. Mas, acima disso tudo, em num nível bem mais fundamental, está a ideia de que o mundo não se estrutura de maneira dual, “metade forte, metade fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva”, ou seja, essas categorias não têm razão de existir. Daí o desespero de Genly Ai, que se incomoda com a “intriga afeminada”, e diversas outras características desses seres, que ele vê pertencentes ora a um sexo, ora a outro (“Aparentemente, faltava-lhes a capacidade de mobilização. Agiam como animais, nesse aspecto; ou como mulheres” p. 56).

Acho que qualquer um tem dificuldade de empatia com Genly: muitas vezes, ele parece um idiota machista que se recusa a admitir a diversidade incrível de gentes e naturezas que se encontram ao seu redor. Mas, ao mesmo tempo, é muito difícil condená-lo, porque, como homem cis, ele é considerado um “pervertido” pelo povo ao seu redor, tratado pelo substantivo que se usa para designar animais. “Choque cultural não era nada comparado ao choque biológico que sofri como macho humano em meio a seres que eram, oitenta por cento do tempo, hermafroditas assexuados” (p. 56). É uma questão de alteridade   e aqui estamos pensando com Emmanuel Levinas: se a aproximação com o outro não constitui trauma, é porque o outro foi absorvido pelo mesmo, e a alteridade se desfez. Ai, um homem sozinho num planeta totalmente estranho, vai sempre se sentir “a sós com um estranho, no interior de um palácio escuro, numa cidade estranha cheia de neve, em plena Era Glacial de um mundo alienígena” (p. 28). Que dó.

Tudo isso, quer dizer, essa voz humana que se recusa a entender o outro, essa voz do estrangeiro diante do absurdo, faz parte do experimento humano que Ursula propõe no seu livro. É um laboratório construído com béquers da ficção e com pipetas de metáfora. Ao apresentar esse mundo pelos olhos de Ai, ela simula nossos olhos diante da diversidade sexual humana que muitas vezes também não conseguimos entender ou admitir (#MarcoFeliciano #JairBolsonaro #VivaValeska #RuPaulsDragRace). Não nos leve a mal. Não queremos dizer que a sexualidade humana deveria ser representada por hermafroditas assexuados alienígenas, nem que a gente deveria estender a homens como Jair Bolsonaro a mesma cortesia que oferecemos a Genly Ai. Le Guin diz que a ficção é uma metáfora e a metáfora aqui, estamos propondo, é o encontro com o outro, que é especificamente outro porque não divide as mesmas orientações sexuais, ou expressão de gênero que o Mesmo (no caso, o homem ou a mulher cis).

Dito isso, grandes momentos saem do texto como:

 

“….quando encontrar um getheniano, não se pode e não se deve fazer o que um bissexual naturalmente faz, que é enquadrá-lo no papel de Homem ou Mulher, enquanto adota, para com ele, o papel correspondente, dependendo de suas expectativas com respeito às interações padronizadas ou possíveis entre pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. Todo nosso padrão de interação sociossexual inexiste aqui. Eles não conseguem entrar no jogo. Não veem uns aos outros como homens ou mulheres. É quase impossível nossa imaginação aceitar isso. Qual é a primeira coisa que perguntamos sobre um recém-nascido?” (p. 97-8)

 

Quando pensamos que essa sociedade humana futurista teórica parece ser muito leitinho com pera (tudo seria muito diferente se fosse a Bianca del Rio a antropóloga), começamos a finalmente entender do que se trata. Não há deslimites entre as determinações de gênero, ou seja, não há drags ou trans ou pessoas com dois “sexos”, porque não existe gênero. Outra vez, nosso desejo de ver alienígenas gays e lésbicas é frustrado, porque esse povo, na verdade, é quase completamente assexuado. Na verdade, é um esforço de resistência do cérebro a ainda perpetuar as relações de poder, de identidade e de gênero que existem no nosso mundo. Um exercício que absolutamente não acontece em ficções como Star Wars, Senhor dos Aneis, ou Game of Thrones.

Seguimos:

 

“…[o primeiro agente], se for enviado para cá, deve ser avisado de que, a menos que seja muito seguro de si ou senil, sofrerá um golpe em seu orgulho. Um homem deseja que sua virilidade seja reconhecida, uma mulher deseja que sua feminilidade seja apreciada, por mais indiretos que sejam esse reconhecimento ou essa apreciação. Em Inverno, isso não vai existir. Julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa” (p. 98).

 

Esperamos que a gente nunca chegue numa situação em que viraremos alienígenas hermafroditas assexuados, mas talvez Ursula esteja apontando para um futuro possível, em que os gêneros não determinem mais relações de poder e que possamos finalmente curtir uns aos outros nessa “experiência espantosa” de sermos seres humanos.

Voltando à Le Guin, isso tem a ver com um dos textos mais comentados dela, Introduction of myself [Apresentação de mim mesma].

 

“Sou um homem. Você pode achar que cometi um erro bobo de gênero, ou que estou tentando enganar você, porque meu nome termina em a, eu tenho três sutiãs, fiquei grávida cinco vezes, e outras coisas assim que você deve ter notado, detalhes pequenos. Mas os detalhes não são importantes… Eu antecedo em décadas a invenção das mulheres. (…) A mulher foi inventada muitas vezes em vários lugares diferentes, mas parece que, por muito tempo, a ideia de ‘mulher’ não vingou. Modelos como a Austen e a Brontë eram complicados demais, e as pessoas riam da Sufragette, e a Woolf era muito avançada para a época. (…) É o que eu sou, um ‘ele’ genérico, como o de ‘Se alguém precisa de um aborto, ele vai ter que ir para outro estado’, ou ‘Um escritor sabe o que é mais vantajoso para ele’.  Sou eu, o escritor, ele. Eu sou um homem. Talvez não um homem de primeira qualidade. Estou perfeitamente disposta a admitir que eu talvez seja um homem de segunda, ou uma imitação, um homem de mentirinha.”

 

Superada a estranheza inicial, vemos que ela está falando sobre escrever desde a perspectiva ingênua de uma neutralidade   que sempre é, desde a Ilustração, masculina. No texto, ela não tem opção, porque, no tempo dela, ainda não havia um lugar social para a mulher como sujeito, que possa exercer suas potencialidades criativas e políticas. Enquanto isso, ela teve que escrever como um arremedo de homem, a fim de encontrar um lugar de onde pudesse falar. O texto termina num tom positivo:

 

“Se eu não sou boa em fingir que sou homem e não sou boa em fingir que sou jovem, posso muito bem começar a fingir que sou uma mulher velha. Não sei bem se já inventaram a mulher velha, mas vale a pena tentar.”


Na verdade, é uma pergunta. É possível se escrever como uma mulher idosa? O lugar do escritor pode ser um lugar de fala feminina? Se voltarmos às nossas primeiras questões, podemos reformular essas ideias de outra forma. Será que o universo dominado por sabres de luz, orcs fedorentos, mulheres de segundo plano pode receber um texto sensível como o da Ursula Le Guin? Ou será que a vulnerabilidade inerente da honestidade dos seus questionamentos  – comparados com a força da imbecilidade fascista da batalha do bem contra o mal  – está fadada a ser reeditada com a sutileza de uma propaganda de produto de limpeza?

 

Tradução: “Mulheres do futuro vão fazer da Lua um lugar mais limpo para se viver”.

 

 

 

 

 

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Ilustração: Emilia Santos

 

 

 

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