Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

música

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Proezas sônicas e pioneirismo

Os laboratórios de Delia Derbyshire e Wendy Carlos: fuçadeiras, inventoras, cientistas e revolucionárias da música. Por Maíra Mendes Galvão

 

 

 

A música popular tem rosto de homem. Se fala da história da música no masculino, assim como de muitas histórias consideradas neutras, universais. Ouve-se por aí falar nos grandes guitarristas, nos gênios produtores e arranjadores, nos grandes talentos que revolucionaram a música. A grande, a genial, a icônica, a maga são só algumas das alcunhas vedadas às tão invisibilizadas mulheres musicistas.

No início dos anos 1960, duas mulheres em diferentes continentes faziam papel de desbravadoras de um novo paradigma musical para além do analógico. Delia Derbyshire (1935-2001) e Wendy Carlos (1939−), na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente, testavam a maleabilidade da estrutura do som e destrancavam novos processos e caminhos em performance e composição musical.

A narrativa é conhecida: mulher embrenha-se por plagas convencionalmente masculinas e enfrenta obstáculos, provações, preconceitos, invisibilidade. É uma história que pode e deve ser contada quantas vezes for preciso – e é certamente o caso das duas.

Delia demorou para ser aceita na área de áudio, explicitamente por ser mulher – embora seja hoje reconhecida na Inglaterra –, e Wendy viveu as turbulências de descobrir sua transgeneridade, além das dificuldades de passar pelo processo de transição já depois de seu trabalho ser reconhecido, o que a expôs a uma cultura transfóbica que, até hoje, ainda a vê muitas vezes como “um homem, no fundo” ou como um caso “picante”.

 

Tecnologia de gênero

 

eletro1

 

“Depois de me formar, fui procurar aconselhamento profissional. Disse que me interessava por som, música e acústica, e então me recomendaram uma carreira no ramo de aparelhos auditivos ou ecobatimetria. Então tentei um emprego na gravadora Decca. O chefe estava no estádio assistindo a uma partida de críquete no dia da minha entrevista. O vice-diretor me disse que eles não contratavam mulheres no estúdio.”

Delia Derbyshire

 

Nosso entendimento ocidental insiste em falar de ser x primeirx como uma espécie de vantagem ou marca de superioridade, embora constantemente seja míope à presença das minorias nos primórdios do conhecimento desenvolvido pelo ser humano, em qualquer área. É crucial que figuras pioneiras e precursoras (e não sei mais quantos prefixos recursivos empregar) como Delia e Wendy sejam francamente reconhecidas dentro e fora do âmbito da música eletrônica e – mais além – que engrossem o coro da representatividade em áreas insistentemente consignadas ao homem cis- e heterossexual (música; eletrônica; música eletrônica; qualquer coisa que envolve muita técnica).

O pioneirismo das duas na música eletrônica não é patente só por suas composições e execuções, mas também por ambas terem sido fuçadeiras, inventoras, cientistas, por terem se envolvido com o conteúdo e a técnica – e o instrumento.

 

Dinossauras eletrônicas

 

Delia Derbyshire começou a trabalhar no BBC Radiophonic Workshop em 1962. Ali, estabeleceu sua posição como uma espécie de cientista maluca do áudio: em um momento pré-sintetizador (já existiam, mas isso é outra longa história: eram ainda parcos), o material sonoro era gerado por osciladores e outros equipamentos ou existia em forma de fitas magnéticas com registros de sons produzidos mecanicamente, como se fazia tradicionalmente em sonoplastia.

Enquanto Wendy Carlos efetivamente tocava seus instrumentos de trabalho (já dispunha de sintetizadores e controladores), Delia usava os sinais de áudio ou sons gravados em suas composições como matéria plástica: ela processava o sinal de áudio ou a gravação (que tinha como meio a fita magnética) usando vários filtros quantas vezes fosse preciso, e então construía uma peça musical sobrepondo e juntando esses sons por meio de técnicas braçais: cortando e colando fita e fazendo overdubs (gravando um som “sobre” o outro) à exaustão.

Wendy, que talvez tenha um viés de compositora e musicista mais claro, também pôs as mãos diretamente na matéria que forma sua música: ela trabalhou em conjunto com Robert Moog, um dos criadores do sintetizador, colaborando com a constante reformulação das ferramentas, dos controles e das possibilidades dessa nova família de instrumentos. Ela foi uma das primeiras usuárias do vocoder (efeito que simula a voz e que depois foi muito usado em sci-fi para criar vozes alienígenas), que ajudou a criar como parte de sua busca por novas possibilidades sonoras.

 

Museu de novidades

 

Wendy_carlos

“Você ficaria lembrando a uma pessoa órfã que no passado ela foi rejeitada e ninguém a amava? Deixaria fotos à mostra de vítimas de uma batida de carro para lembrá-las de que, apesar de meses de cirurgia plástica, seus rostos e corpos foram um dia severamente danificados? Considere uma saliência até bem mais modesta: ‘Ele era gago quando era criança.’ ‘Mas mãe, eu não gaguejo mais!’ ‘Agora, não, mas ele gaguejava o tempo todo!’ ‘Por favor, mãe, a gente não precisa falar sobre isso!’ Por favor mesmo.”

Wendy Carlos

 

Os processos e técnicas empregados para manipular áudio digitalmente hoje em dia são uma espécie de metáfora operacional daquilo que Delia e Wendy faziam: o reverb usado no estúdio da BBC já foi um dia feito mecanicamente captando-se um som reproduzido a uma certa distância calculada do microfone dentro de uma sala com reverberação, por exemplo.

O looping era feito simplesmente colando (splicing) as extremidades de uma mesma fita magnética com um som gravado, que depois era reproduzido e regravado continuamente em outra fita. Muitos dos sons sintetizados que circulam hoje em dia (e que é possível encontrar a rodo internet afora) também são interações evoluídas dos sons que se desenvolviam nessa época de exploração do áudio eletrônico.

 

Escuta potente

 

A marca profissional e criativa, ouso dizer, tanto de Delia quanto de Wendy era justamente a capacidade de manipular e enxergar tanto a estrutura do som (matematicamente – as duas tiveram formação acadêmica em ciências exatas antes de passar para a música: Delia em matemática e Wendy em física) quanto sua qualidade estética (empaticamente – as duas eram audiófilas autodeclaradas), tudo isso com ouvido aguçado e execução esmerada.

Os exemplos a seguir vão deixar mais clara a influência das duas, tanto na música contemporânea a elas quanto na música atual, a partir dos anos 1990.

 

DD. Peça experimental, sem título, precursora das pistas.

https://youtube.com/watch?v=szE5D-dPs_Y

 

 

DD. Blue Veils and Golden Sands. A linguagem ilustrativa de Derbyshire ao descrever essa peça, feita para um programa sobre os tuaregues do Saara, mapeia suas operações musicais: “E então os camelos trotaram em direção ao pôr do sol com a minha voz nos cascos e uma lamparina verde nas corcovas”. Ela usou, de fato, uma gravação da própria voz como base para a melodia principal e o tinido de uma cúpula de iluminação industrial percutida como a principal fonte de áudio. “Analisei todas as parciais e frequências do som [o tinido da luminária sem o ataque da percussão], e peguei as 12 mais fortes e reconstruí o som [de cada uma] nos famosos 12 osciladores do Workshop para alcançar esse ruído com chiado”, disse Delia.

https://youtube.com/watch?v=mhIgkR7z3Y4

 

DD. Tema original de Doctor Who (1963). Delia materializou essa partitura de Ron Grainer, que, maravilhado, perguntou-lhe se ele havia mesmo composto aquilo. Ela respondeu: “a maior parte”. Ele tentou registrar Delia como co-compositora, mas a BBC vetou.

 

DD. Ziwzih Ziwzih OO-OO-OO (1968). Essa peça foi sampleada pelo Die Antwoord (em Hey Sexy) e de fato soa como a fonte primordial de onde eles beberam, quase como um resumo um pouco primitivo da sonoridade que eles exploram. O quase lascivo “ooh ooh ohh” foi produzido não pela voz humana, mas sim pelo oscilador apelidado de wobbulator, um Brüel & Kjaer 1022 adquirido pela BBC que produzia esse som uivante.

 

DD. Pot au feu (1968). Peça larger than life, ouvindo retrospectivamente: uma precursora de toda a música eletrônica que veio depois: ambient, avant-garde, krautrock, synthpop, IDM, glitch…

 

DD. Love without sound (1969) – White Noise (DD + David Vorhaus). Um trip-hop pré-Bristol que é o hit desse álbum de parceria de Delia com Vorhaus, chamado An Electric Storm. É o exemplo mais convencionalmente estruturado. Delia, além dessa parceria, também teve brevemente outra “banda” – ou algo como um coletivo –, Unit Delta Plus, com Brian Hodgson e Peter Zinovieff, que se apresentava em happenings e pequenos festivais de música experimental em Londres. Muitas figuras célebres visitaram o estúdio de Zinovieff, incluindo Paul McCartney, Karlheinz Stockhausen e o Pink Floyd.

https://youtube.com/watch?v=K6pTdzt7BiI

 

WC. Eden, de Digital Moonscapes (1984). Nesse álbum, Wendy explora um novo glossário de sons sintetizados que ela passou anos criando a partir das estruturas matemáticas sonoras de sons analógicos. Nenhum dos sons que aparecem nas composições desse álbum foi gerado analogicamente. Não teve microfone algum envolvido. Para Wendy, o objetivo final da sintetização de timbres seria produzir sons tão congeniais quanto aqueles produzidos mecanicamente, porém com qualidades estéticas e auditivas distintas dos sons já familiares.

 

WC. Love theme de Tron (1982). Nessa peça, Wendy usa os sintetizadores para ornamentar a harmonia e o tema e para criar alguns “desvios” sonoros que deixam a audição mais instigante. A forma da peça é próxima à da sonata (apresentação/desenvolvimento/recapitulação – só que com uma introdução à apresentação do tema), o que espelha o próprio conteúdo do filme: o analógico (realidade material/som mecânico) embrenha-se no digital (realidade virtual/som sintetizado).

https://youtube.com/watch?v=MxH3Xrxeey4

 

WC. Timesteps, de Laranja Mecânica (1971). Segundo Wendy, ela já havia composto uns 3 minutos dessa peça quando ganhou uma cópia do livro. Por isso, se refere a ela como uma composição paralela de grande afinidade com o texto. Uma amiga viu em uma nota no jornal que Kubrick havia começado a pré-produção do filme e Wendy, junto com Rachel Elkind, sua grande amiga (sim, platônica) e produtora, preparou uma fita para enviar a ele. Nessa fita foi também outra peça; uma versão eletrônica do coral da Nona sinfonia de Beethoven executada com a ajuda de um mecanismo que refletia o espectro sonoro de um som preexistente, que viria a ser a base do vocoder. Vozes foram replicadas em sinais eletrônicos (“refletindo” os harmônicos, os ritmos e a dinâmica da voz para reproduzir o timbre, a cadência e as variações de volume) nessa versão do coral. As duas peças entraram na trilha do filme, junto com outras versões e composições executadas por Wendy.

 

WC. Switched-on Bach – Excerto (1974). Foi o primeiro álbum clássico a vender 500.000 cópias e o primeiro álbum a ser executado inteiramente com sintetizadores. Sua popularidade também puxou o sucesso dos aparelhos Moog, que começaram a ser cada vez mais usados. Wendy, juntamente com Benjamin Folkman e Rachel Elkind, trabalhou exaustivamente procurando os timbres certos para cada uma das muitas vozes (equivalentes a um instrumento musical analógico) e montando as peças usando um gravador de 8 pistas que só permitia gravação em uma pista de cada vez,  tarefa hercúlea considerando a complexidade harmônica do material. A realização dessas peças de Bach usando o Moog foi uma oportunidade para que Wendy e Robert Moog colaborassem para aperfeiçoar o sintetizador. Uma das melhorias cruciais que Wendy ajudou a desenvolver foi justamente a possibilidade de soar duas teclas ao mesmo tempo, tanto para tocar acordes quanto para portamento, que é a transição gradual de uma nota para a outra (o que pede que os sons acionados por cada tecla possam ser contínuos e também se sobrepor).

http://v.youku.com/v_show/id_XMzI3NzMyMTQ0.html

 

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Foto de um dos conjuntos de osciladores que Delia usava no BBC Radiophonic Workshop junto com um controlador de uma oitava (pode-se dizer que é um ancestral do controlador midi!) roteado por meio de tubos de pentodos

 

 

Maíra Mendes Galvão é tradutora, revisora, escritora e hacker de ideias. Se interessa por áudio, eletrônica e música, e acredita que maior representatividade pode um dia dar chance e espaço a muitas “interessadas” para de fato atuar nessas áreas.

Ilustrações de Bianca Muto

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