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TUTTOMONDO | A primeira vez
Relutei muito em escrever aqui sobre a minha experiência com o HIV. Faz um ano e um mês que recebi o diagnóstico, e nesse tempo a minha vida mudou drasticamente – ao mesmo tempo que nem mudou tanto assim. Quem me vê não tem como saber. A aids, você sabe, é sorrateira. O vírus se instala no seu corpo e você pode ficar anos vivendo normalmente até que os primeiros sintomas apareçam. E é um vírus democrático, no sentido mais tosco que essa palavra assume hoje: qualquer um pode tê-lo. Você sabe: diferente das pessoas, o HIV não tem preconceitos.
Não sei como nem de quem peguei o vírus. Mas o meu diagnóstico foi bem precoce. Fazia o teste anualmente e fico muito feliz, por mais difícil que seja, de ter descoberto isso logo no começo, entre um resultado negativo em 2011 e um positivo em 2012. Nesse tempo, não transei nenhuma vez sem camisinha – ou melhor, sexo com penetração, sempre com camisinha; sexo oral, sempre sem. Pode ser que tenha pegado o vírus no sexo oral. Pode ser que algo tenha escorrido no sexo anal, uma camisinha estourada que eu não vi, ou que feridas tenham entrado em contato sem perceber, ou que a saliva transmita em 0,0000001% dos casos. Tampouco descarto a hipótese de inoculação durante uma abdução alienígena. Francamente, pouco importa. Isso só é importante na medida em que me mostra (e espero que mostre pra você também) que somos todxs vulneráveis.
A gente está vivendo agora um período esquisito do HIV. A epidemia, alguns/mas acreditam, está no fim. Outrxs acham que ela está controlada. Na verdade, só no Brasil mais de 10 mil pessoas morrem de aids por ano, e isso não é evidência de controle, muito pelo contrário. No centro de São Paulo, mais de 30% das pessoas são soropositivas, talvez a maior concentração da América Latina. E, se no Sudeste a aids parece ter se estabilizado (ainda que em números alarmantes), no interior do país os casos só aumentam. Como não conhecemos o futuro, acho que seria mais prudente pensar e se preparar: a epidemia pode estar apenas começando.
Ainda assim, diferente do que ocorria nos anos 80 e 90, um diagnóstico de HIV hoje não equivale a uma certidão de óbito. Os remédios (um avanço da ciência, sim, mas que só ocorreu graças à militância ferrenha de milhares de pessoas, é bom lembrar) te dão mais que sobrevida – te dão vida “normal”. Depois a gente fala mais sobre o que é esse “normal”. Mas o fato é que médicos já dizem calmamente a seus pacientes: a aids é hoje uma doença crônica, como a diabetes.
Isso dá uma sensação de tranquilidade que se junta à sensação de desespero que o horizonte da doença ainda traz. Quando a gente lembra de pessoas com aids, as que mais aparecem na memória e no Google são as que morreram na primeira fase da peste. E é por isso que resolvi escrever a minha história aqui.
Dá medo se expor assim. Contar seu nome, sobrenome, admitir que o seu corpo produz líquidos variados, que você é finito, classificável, analisável. E que você tem uma vida cotidiana e banal, tão única e tão igual quanto a de qualquer pessoa. Eu bem preferia não escrever isto, me concentrar nos outros textos da Geni, esta revista que a gente resolveu fazer na raça, só com a força da peruca. Ou então ir pro parque ficar de papo pro ar, brincar com meu cachorro, cuidar da minha vida.
Mas isto aqui também é cuidar da minha vida. E da dos meus amigos, tanto os que eu já tenho quanto os que ainda não conheço. O Act Up, dos Estados Unidos – um dos grupos mais importantes do movimento de aids, grande responsável pelos avanços da ciência acima mencionados –, cunhou a fórmula perfeita pra esses nossos tempos e pra nossa vida desinteressante, mas tão ameaçada: “Silêncio = Morte”.
Espero que a Geni tenha uma vida longa como a minha, e até mais. Enquanto eu puder, vou escrever aqui sobre como é ser aidético hoje. Escrever é pôr um véu sobre os olhos e andar tateando – a gente nunca sabe que palavra levará à outra, qual palavra puxa qual. Do mesmo jeito que a gente não sabe como será o amanhã, se vai haver amanhã. Escrever = Viver. Então vamos pra vida.