Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Diferenciando a democracia na França

As forças da lei e da desordem agora estão em alerta vermelho na França, onde o status quo foi ameaçado pela lei do matrimônio igualitário. Por Kelly Cogswell 

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Parece-me que sempre que você exige, numa democracia, direitos LGBT, algum babaca declara: “Este é um país livre. Você pode fazer o que quiser, dentro de casa. Por que você tem que impor isso a mim?”. Então eles chamam você de fascista e às vezes terminam a conversa com o seguinte conselho: “Volte pro lugar de onde você veio”. O que parece sem sentido, no começo, mas tem uma certa lógica torpe, já que todo ódio emana da mesma fonte envenenada, e o nosso senso de liberdade está relacionado ao espaço físico que ocupamos.

O mais importante campo de batalha da democracia é sempre público. A liberdade não é liberdade em privado, não importa quantas histórias você já tenha ouvido sobre visionários e místicos que encontram a libertação atrás das portas metálicas de uma cela. Para a maioria de nós, o mundo lá fora não desaparece quando fechamos os olhos. Ele é como um cano que atravessa as paredes do nosso apartamento e segue direto para o interior de nossos cérebros, onde temos de resistir a um perene deságue de ameaças e expressões de desdém que não são nada vazias.

Mesmo após décadas de resistência, eu ocupo menos espaço do que deveria, pois sei muito bem que, sempre que tentamos escapar às nossas prisões pessoais, mesmo que com pseudônimos e identidades falsas, ainda temos de enfrentar a patrulha do pensamento, os milicos não oficiais da ordem existente. Todxs nós já vimos suas vítimas. Da sapatão que não consegue um emprego à trans revistada numa batida policial.

As forças da lei e da desordem agora estão em alerta vermelho na França, onde o status quo foi ameaçado pela lei do matrimônio igualitário. No começo, elxs cuidadosamente projetaram a imagem da feliz família tradicional, enchendo as ruas com mamães sorridentes e criancinhas alegres e frescas de banho – muitas delas transportadas para a cidade grande com dinheiro católico e marchando sob faixas de associações fantasmas –, mas essa máscara começou a cair.

Em face à derrota, as centenas de milhares de pessoas que marcham contra o casamento igualitário assim o fazem, cada vez mais, com propósitos verdadeiramente fascistas. O que pedem? Que a França volte a ser o país de antigamente, onde a Igreja mandava em tudo e todo mundo sabia o seu lugar. Caso você pense que isso são só aquelxs católicxs malditxs, o rabino-chefe da França, Gilles Bernheim, conhecido por usar plágio em seus sermões de direita, mais uma vez se apropriou livremente desses discursos para seu trabalho antigay.

Não só a retórica está ficando violenta. Em uma das marchas mais recentes, membros do partido de oposição decidiram engendrar sua própria Primavera Árabe, uma Printemp français, que não significaria mais liberdade para as pessoas, e sim menos. Em vez da disposição a sacrificar suas próprias vidas no altar da política, mostraram querer apenas se livrar das nossas.

No fim de março, em Saint Etienne, uma mobilização de jovens nacionalistas impediu a deputada socialista Erwann Binet de falar numa reunião em que explicaria a estudantes a lei do matrimônio igualitário. Eles tomaram o espaço, subiram nas mesas e gritaram “A França para os franceses!”, ameaçando quebrar o lugar a pauladas. Um tempo depois, uma conferência parecida na prestigiosa Escola de Ciência Política de Grenoble foi cancelada após mais promessas de violência, inclusive ameaças de morte contra o organizador, Benjamin Rosmini.

Eles se movem em bandos, nos encurralam como a ovelhas. Só na primeira semana de abril, o SOS Homophobie na França recebeu 60 denúncias de agressões a pessoas LGBT. E na boa e velha Gai Paris, também no começo de abril, houve uma agressão particularmente brutal em que vários homens atacaram dois rapazes que andavam juntos de braços dados. Wilfred de Bruijn nem se lembra da agressão, apenas de sair de uma festa e acordar na ambulância, vomitando sangue. De Bruijn postou sua foto no Facebook: “Esta é a cara da homofobia”.

Isso foi no 19º arrondissement, um bairro violento em que a testosterona corre solta e jovens do norte da África formam gangues divididas entre muçulmanos e judeus, mais por conveniência do que por convicção religiosa. Nos fins de semana, com frequência corre sangue. Mas parece que agora nós somos a presa.

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Outro casal foi atacado na mesma noite, no décimo arrondissement. Sylvain, o rapaz que apanhou, felizmente não ficou tão machucado quanto De Brujin. No domingo seguinte, em outro bairro, um grupo de brutamontes mascarados vandalizou um centro cultural que recebia uma importante conferência LGBT. A fachada do centro foi destruída e coberta de cartazes do antigay Manif pour tous (Manifestação por todos), sendo patrocinados pela Printemp français. Isso me fez lembrar de Mel Brooks e sua singela canção de The Producers (Primavera para Hitler), “Springtime for Hitler (and Germany)”, que parece estar ficando popular.

É possível que essas manifestações de ódio morram naturalmente com o tempo. Assim espero. Enquanto isso não acontece, manifestemos o nosso apoio à comunidade LGBT francesa, que se mantém combativa, organizando atos contra a homofobia.

Kelly Cogswell (EUA) é jornalista independente e militante
das Lesbian Avengers. É colunista do jornal Gay City News, de Nova York,
onde este artigo foi primeiro publicado.

Tradução: Clara Lobo e Marcos Visnadi

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