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Do espaço limitado à Rede
As maçãs podres do graffiti. Por Ana Clara Marques
Publicado em 11/05/2016
Quando pensamos em espaços de criação, a mulher até tem espaços, mas quando olhamos para estes espaços, percebemos o quanto ele é limitado.
Na história da arte, vemos mulheres nos bastidores, sendo musas ou até mesmo ajudantes de grandes pintores. Esse papel foi se perdurando durante séculos e, atualmente, se olhamos para o graffiti, vemos as mulheres na linha de frente: além de pintar, elas também escrevem, projetam e atuam autonomamente, e isso é fruto de diversas lutas ao longo da historia. A transgressão das mulheres.
A grande questão levantada em meados de 90 em São Paulo, especificamente em Santo André, era a falta da participação das mulheres dentro do graffiti, e a justificativa apresentada pelos homens é que “O muro está aí, a rua é pública: não pinta porque não quer”. Essa frase muitas vezes era proferida e silenciava o debate. Quando nós mulheres nos vemos sozinhas na multidão pensamos em encontrar nossos pares, outras mulheres para comprovar que aquilo que você percebe não é fruto da sua imaginação.
É nesse contexto que eu – Ana Clara Marques -, Fernanda Sunega (Campinas) e Prima Dona (Rio de Janeiro) nos achamos na internet e percebemos que todas as dificuldades e todas as nossas inquietações eram exatamente as mesmas. A justificativa de que a rua é pública dita por homens era na verdade um truísmo para não responsabilizar a ação deles enquanto homens. Isso nos fez refletir que o movimento hip hop não era um planeta a parte em que todas as minorias seriam incluídas, mas esse movimento faz parte de toda essa construção social, construída cotidianamente por pessoas e nele estão algumas contradições do sistema como o machismo.
Diante das dificuldades e da solidão, tentamos agregar mais mulheres para este espaço. Realmente foi uma tarefa difícil, pois estávamos espalhadas pelo Brasil e a ferramenta que nos possibilitou grandes avanços foi a internet. É nesse cenário que nasceu a Rede Graffiteiras BR, uma rede virtual composta por mulheres graffiteiras para trocar ideias, realizar reflexões e construir projetos. Nossas angustias eram partilhadas nessa rede e aprofundando, percebemos uma diversidade de problemas das mulheres que, dependendo da sua classe e etnia, se intensificava. Nesse contexto o feminismo foi se fortificando, e tomando corpo. As questões que eram postas já ultrapassavam a participação das mulheres e começamos a refletir outras demandas como a elitização do graffiti, o racismo e outras questões politicas.
Tomando corpo
A Rede Graffiteiras BR foi tomando corpo e tivemos nosso primeiro encontro presencial, em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial. Além de nos conhecermos e ter sido bárbaro ver mulheres de Recife, Pará, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, também realizamos uma roda de conversa e lá constatamos várias situações violentas que muitas vezes não identificávamos.
Apareceram algumas discordâncias entre nós: algumas mulheres afirmaram que não enxergavam o machismo, mas um ato nos uniu em relação aos avanços que deveriam ser feitos, além do modo como a revista Graffiti colocava a imagem das mulheres.
Era comum abrirmos a revista e entre fotos de graffiti, vermos fotos de mulheres de costas, de saias, mini blusas e roupas chamativas, a revista colocava assim, as mulheres como objetos. Aquilo nos incomodou muito, mas algo nos deixou estarrecida, a Revista Graffiti publicou uma matéria da grafiteira ACB, com sua arte estampada nos muros e junto com a legenda de apresentação da matéria estava escrito “Nem parece mulher pintando”, o que indignou a todas nós, sem exceção.
Nossa primeira ação conjunta além de refletir, escrever projetos, fazer parcerias, ficamos com a missão de escrever uma carta de repúdio à revista, mostrar que nós mulheres podíamos mudar o mundo. Nossa carta foi publicada na revista e já com a resposta do editor da revista, o grafiteiro Binho Ribeiro. Nela ele justificava as imagens das mulheres pelo número de leitores homens e também comparava a revista graffiti com as revistas de surf e skate onde as mulheres ocupavam o lugar de beleza para entreter os homens sexualmente.
A partir disso conquistamos um espaço na revista, um espaço dedicado às grafiteiras. Isso foi um avanço, pois a revista era o único veículo de comunicação especializado e mulheres também eram leitoras. Não ter uma referência feminina num espaço majoritariamente masculino era uma barreira para que as mulheres se inserissem nesse meio.
No ano seguinte, realizamos mais um encontro em Porto Alegre e realizamos mais um encontro no mesmo local pelo projeto Trocando Ideia e o MHHOB – Movimento Hip Hop Organizado Brasileiro. Outros encontros vieram, como em Santo André e São Paulo (SP), Salvador (BA) e uma parceria que realizamos com o Coletivo Ariporiá de Manaus (AM).
Maçã Podre
Nos anos que me dediquei a rede só tinha energia para ela e para o próprio graffiti. Tinha o sonho de fortalecer e criar uma rede nacional junto com Fernanda Sunega e Prima Donna. Após anos de dedicação e alguns desencontros em debates, fomos nos afastando e a rede se dissipou. Ainda não avaliamos e nem paramos para pensar sobre isso.
Em seguida montei um coletivo menor para me dedicar de um modo que não tomasse toda minha vida e que também avançasse na ideia da estética feminista. Com esse intuito nasceu o Grupo Revolucionário de Intervenção Feminista Maçãs Podres. Nesse grupo tínhamos mais autonomia e liberdade buscando escrever, pintar e difundir o feminismo numa linha mais radical. Várias pessoas passaram pelo grupo, mas ele se estendeu durante um tempo com Patrick Monteiro, Élida Regina, Fernanda Sunega, Gabriel Brito e eu.
Toda a nossa produção artística tinha o feminismo como base e sempre com o recorte de classe e raça. Murais com a temática do feminicídio, amor, infância, a questão racial e a divulgação do feminismo, era o nosso mote. Também tinham poesias feministas e muitos artigos e pesquisas que realizamos durante anos. Realizamos Parcerias com a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, Instituto Sou da Paz, ONG Women’s Support Project, coletivos feministas, oficinas em espaços comunitários, escrevemos diversos artigos, poesias, envolvemos em toda a nossa produção feminista revolucionária a temática feminista, numa perspectiva de raça e classe.
Hoje a dedicação está em realizar ações em espaços diversos. No graffiti, não participo mais de grandes eventos, a não ser que tenham uma proximidade com o que acredito.
Estudando sobre esse tema, realizamos um estudo dentro do grupo (eu, Patrick Monteiro e Élida Pereira) sobre a arte feminista. Shulamith Firestone contribuiu na reflexão de que as mulheres seriam o combustível emocional dos homens nas artes. Ao ver a história das artes no contexto amplo, as mulheres eram registradas enquanto musas. Toda relação dos homens com as mulheres gerava criação e em contrapartida, em nós gerava paralisação. A nossa ação sempre foi muito indireta. Enquanto as mulheres gastam sua energia emocional com os homens, os homens roubam a energia das mulheres, criando e impossibilitando as mesmas de projetarem um futuro.
Concluímos que os homens são sempre colocados como protagonistas e inventores das artes criando as regras dos espaços e inclusive determinando o que seria arte e o belo. Isso quer dizer que o que entendemos por arte é pelo olhar masculino, nosso objetivo era criar uma estética feminista. Desconstruir mesmo e ressignificar a produção artística.