Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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DAMA DE ESPADA | Muito prazer, eu existo!!!

As travestis são um grupo de pessoas numa linha tênue: a da falência do binarismo de gênero. Por Janaina Lima


Quando fui gerada, ainda na barriga de mamãe, começou uma disputa por minha identidade: umas/uns diziam “será menininho”; outrxs, “será menininha”. Como ainda não tínhamos acesso ao ultrassom, as pessoas partiam a lançar possibilidades a partir de suas crenças, do tipo: “Olha a barriga pontuda”; “Vejam: caiu um garfo, será isso; caiu uma colher, será aquilo”; “Olha o formato da barriga”; “Olha, chuta como um jogar de futebol!!!”.

Só que, ao nascer, esqueceram suas crendices e olharam logo no meio das pernas: sim, nasci de parto natural, em casa, portanto várias pessoas esperavam para ver aquela criatura sair da barriga e vir ao mundo dos machos e fêmeas. E aquelas pessoas, que diziam tudo saber, viram meu escroto e comemoraram: é macho!

A partir daí começaram as especulações do que eu seria, mas com a certeza de que eu era um homem e, assim, teria grandes vantagens dentro da sociedade.

E foi assim que vim ao mundo com grandes perspectivas sobre minha identidade, mas também com várias limitações, porque, segundo o manual do binarismo de gênero – que até hoje não encontrei o maldito que escreveu! –, homem pode isso e não pode aquilo.

Mas aí, conforme fui crescendo, percebi que era diferente das demais crianças ao meu redor. Os meninos não me queriam em suas rodinhas porque diziam que eu era diferente deles, e o mesmo acontecia com as meninas, que não me reconheciam. Eles, porém, me apresentaram diversas identidades para que eu pudesse escolher uma, dentre elas: bichinha, boiola, baitola, fresco, viadinho, mariquinha, entre outras. Só sei que, por fim, quando atingi a adolescência, me passaram uma nova identidade: afirmaram que eu era GAY. E lá fui eu procurar os gays, para compreender o que de fato eu era. E eis que, para minha surpresa, os gays disseram que eu me comportava muito diferente deles e que era melhor eu procurar outra turma.

E lá fui eu tentar achar que turma era essa que eles diziam parecer comigo, porque, embora tivesse pênis, não me comportava como o macho provedor e poderoso da sociedade.

Eis que conheço um grupo de pessoas que estão em uma linha muito tênue: recusam o papel de macho, mas não aceitam o papel da fêmea submissa; estou falando desses seres que eu identifico como “a falência do binarismo de gênero”, conhecidas popularmente como TRAVESTIS.

Calma aí, não estou falando do travesti do dicionário, nem de uma pessoa louca por sexo; estou falando de uma figura emblemática, que coloca em questão o macho e a fêmea de nossa sociedade, que traz diversas interrogações acerca do que é ser feminino e masculino em nossas vivências.

Você conhece alguma travesti ao seu redor e que ainda não tenha passado pelo processo de higienização da sociedade? Porque, se ela passar e for corrompida, deixará de ser travesti e passará a ser uma transexual – com definição no CID 10 (Código Internacional de Doenças) porque algumas acreditam que, se assumindo assim, passam a ter o mínimo de cidadania garantida, o que é uma grande mentira pregada em nossa sociedade, porque ser homem ou mulher (transexual em nossa sociedade seria uma pessoa que nasceu em um corpo errado, mas se encaixa perfeitamente em um dos dois) não é garantia de cidadania. Se eu, você ou qualquer um que não tenha seus direitos respeitados quiser ter alguma garantia, terá que deixar o lado pouco confortável de vítima e partir para a luta, questionando as imposições de uma sociedade machista, sexista e misógina, impostas por um passado imperialista.

Muito prazer, eu existo e estou aqui para ajudar na transformação de uma sociedade mais justa e igualitária nos direitos das pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Janaina Lima é nascida no Nordeste e criada no Sudeste do Brasil. Ativista do movimento nacional de travestis e do Grupo Identidade, de Campinas (SP), não abre mão de questionar a forma como o binarismo de gênero oprime aquelxs que ousam transpassar o limite das imposições.

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