caravana climática
Aldo Santiago López, América Latina, Cajamarca, Conga, criminalização, extrativismo, Juliana Bittencourt, lei Pulpin, Mariana Leme, Máxima Acuña Chaupe, Mirtha Vásques Chuquilín, número 23, Peru, Yanacocha
Não são eles, somos nós
Relatos do Peru. Por Juliana Bittencourt, de Lima
Publicado em 16/06/2015
A estreita relação entre governos e grupos econômicos, desvanecida e colorida com a cor de algum partido com fachada progressista e/ou desenvolvimentista, arrasa a América Latina na medida em que o compromisso com o neoliberalismo e o extrativismo faz com que seja necessário garantir os investimentos das grandes corporações, seu lucro e sua propriedade privada. Para isto, modificam-se leis, invertem-se os papéis de usurpados e usurpadores e se criminalizam os protestos sociais, fenômeno que ocorre em muitos países da América Latina, incluindo o Brasil.
O governo de Ollanta Humala no Peru gerou grandes expectativas durante a sua campanha. No entanto, não só não provocou nenhuma ruptura com os interesses de grandes corporações e empresários como deixou de cumprir promessas de resolução dos conflitos socioambientais que se estendem pelo país. Além disso, em dezembro do ano passado tratou de implementar uma lei que regulariza o trabalho de jovens de 18 a 24 anos, conhecida como lei Pulpin (uma marca de suco para crianças), que na verdade é a proposta de criação de um novo regime laboral com o objetivo de precarizar o trabalho dos jovens e beneficiar os empregadores com a justificativa de inserí-lxs no mercado formal de trabalho. Esta foi a forma encontrada de tentar baratear os custos com a mão de obra e de forçar os jovens a aceitar a exploração do seu trabalho. A juventude peruana tomou as ruas e foi violentamente reprimida, tanto através da agressão física dos manifestantes quanto pela tentativa de desqualificação dxs jovens feita pela mídia e o amedrontamento pela presença ofensiva dos corpos policiais.
Os governos que sucederam o terrorismo de estado de Fujimori não deixaram de favorecer os grupos econômicos e continuaram a política de criminalização dos protestos sociais, como foi o caso do governo de Alejandro Toledo e, aumentado, o de Alan García, pela proximidade deste último com aqueles grupos. Esta politica é descrita por Mirtha Vásques Chuquilín no livro Criminalización de la protesta social: un análisis a la luz del caso Conga de Cajamarca [Criminalização do protesto social: uma análise à luz do caso Conga de Cajamarca]. Chuquilín afirma que esse fenômeno se dá pela excessiva penalização de delitos associados aos protestos. A repressão violenta, desproporcional e arbitrária é um indicador dessa política, que consiste não somente na utilização da força pública mas também de outros mecanismos, como o sistema jurídico, através do uso de leis que criminalizam os ativistas sociais, e também por intermédio dos meios de comunicação que caracterizam de forma negativa os protestos e ressaltam os efeitos negativos das mobilizações. Chuquilín ressalta que atualmente as empresas também são responsáveis por difundir a ideia de que todo protesto é uma ameaça à segurança pública, argumento utilizado para disfarçar os interesses privados que estão por trás de tais políticas.
Com o aumento dos conflitos sociais no país, foi realizada nos últimos anos uma série de modificações nas normas jurídicas a fim de aumentar as atribuições dos policiais durante os conflitos e permitir a impunidade dos que atuam arbitrariamente. Um exemplo é a modificação no código penal mediante o decreto legislativo 982 de julho de 2010, que declara que aqueles que provocam lesões e mortes “no cumprimento do seu dever e uso de suas armas de forma regular” não poderão ser responsabilizados. Segundo a Oficina Nacional de Diálogo e Sustentabilidade, existem atualmente 85 conflitos, concentrando-se em Cajamarca, Apurímac e Arequipa. Eles acontecem principalmente em relação a megaprojetos que ameaçam e contaminam o território de várias comunidades.
Este processo de criminalização dos protestos sociais procura fazer com que os conflitos deixem de representar demandas legítimas da população e passem a entrar na mesma categoria de crimes associados ao terrorismo e ao narcotráfico. De acordo com Chuquilín, a chegada da globalização, a consolidação do neoliberalismo e as políticas econômicas baseadas no extrativismo justificam estas práticas. Em paralelo à exploração industrial dos recursos naturais na América Latina, experimentou-se o aumento da criminalização dos protestos sociais, já que o Estado neste modelo de desenvolvimento é o principal promotor do mercado externo e procura dissuadir todxs os que o ameacem.
A criminalização é uma politica estendida na América Latina, em relação aos grupos e pessoas que resistem à indústria extrativa (mineração, petróleo, gás, monoculturas, represas, hidrelétricas), que impacta diretamente os territórios das comunidades indígenas e campesinas. Não são eles, os grupos econômicos, políticos e sindicais atrelados aos interesses dos empresários que vão evidenciar e confrontar tais estatégias, além de promover a articulação entre as resistências. Somos nós. Neste processo novas figuras emergem e se consolidam como símbolo. Máxima Acuña Chaupe é uma delas.
Máxima
Máxima se transformou em um símbolo da luta contra o extrativismo na América Latina. Em 1994, sua família comprou um terreno chamado “Tragadero Grande”, parte da comunidade campesina de Sorocucho, e foi reconhecida como parte daquela comunidade. Em 1996, a empresa Minas Conga assinou um contrato de compra e venda com a comunidade de uma área que não incluía Tragadero Grande. A família permaneceu no local. Em 2001, a empresa transferiu sua propriedade à empresa Minera Yanacocha (maior mina de ouro da América Latina e a segunda do mundo), cujos acionistas são os mesmo de Minas Conga. De acordo com o projeto de exploracão da região, a Lagoa Azul, situada próxima à propriedade da família Chaupe, seria utilizada para depositar resíduos.
Apesar de possuir o título de propriedade, foram muitas as tentativas de Yanacocha de desalojar a família, utilizando seguranças privados e agentes da policia. Na segunda tentativa, os funcionários destruíram as casas e levaram comida, roupas e outros bens. Ante o ocorrido, a família denunciou Yanacocha por usurpação. Na terceira tentativa, utilizaram uma escavadeira. A filha de Máxima, Gilda Chaupe, colocou-se diante da máquina para impedir o seu passo. Foi golpeada e desmaiou. Tanto a família quanto os policiais pensaram que ela estava morta. Máxima enfrentou a polícia e também foi agredida. Apesar do registro das agressões, a promotoria arquivou sua denúncia e a polícia afirmou que foi a família quem agrediu os policiais. Yanacocha decidiu fazer a denúncia de usurpação contra Máxima. A acusação foi aceita e terminou em um longo processo judicial. Máxima perdeu nas duas primeiras instâncias e somente na terceira, no dia 17 de dezembro de 2014, foi absolvida. Ainda assim, a família não terminou de responder os muitos processos colocados pela empresa. Em uma clara e difícil inversão, os argumentos que Máxima poderia utilizar contra a empresa e a polícia foram utilizados contra ela, por mais inverossímil que possa parecer. O estado a ataca com o seu sistema judiciário, bastante parcial e não crível.
A defesa das lagoas da região que serão afetadas pela empresa é feita pela família Chaupe em conjunto com organizações de base que, por sua vez, a apoiaram na construção de uma casa comunitária no seu terreno. As manifestações de solidariedade e alguns reconhecimentos dados a Máxima por sua luta ajudaram a amplificar a sua voz e a visibilizar o desenlace dos processos a que sua família teve que responder. Máxima se transformou em um simbolo de defesa da água juntamente com xs cajamarquinxs, que se apresentam como protetorxs das lagoas e organizam as rondas campesinas para sua proteção.
A 20ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP20), levada a cabo por representantes de países, empresas e organismos financeiros internacionais, em dezembro de 2014, em Lima, longe de pensar nas possíveis mudanças estruturais no sistema capitalista, necessárias para solucionar ou atingir as causas e problemáticas relacionadas às mudanças climáticas, dedicou-se a criar uma nova economia global que garanta a continuidade do capitalismo, sua reinvenção em meio às catástrofes socioambientais em nova fase de acumulação. Em paralelo, ocorreu a Cumbre de los Pueblos, que deveria ser o espaço alternativo às negociações da COP20, destinado aos movimentos sociais e demais organizações. A Cumbre, fórum supostamente dos povos, transformou-se infelizmente em uma pequena disputa de poder por grupos e setores já consolidados dos movimentos sociais, que não fizeram mais do que um lobby para si mesmos. Neste cenário deformado, destinado a canalizar e amenizar as forças e manifestações mais contestadoras, aconteceu a Segunda Marcha pela Água. Nesta marcha, que saiu de Celendin, na provincia de Cajamarca, e chegou a Lima, estavam as guardiãs das lagoas, as mulheres que se juntaram em uma brigada contra o extrativismo, e também Máxima, com uma muda de amaranto. A chegada da marcha foi marcante e nela irrompeu algo ainda maior, que se fez visível nos altares construídos com diversas sementes, velas, flores e incensos – toda a ancestralidade era presentificada na sua máxima expressão reivindicativa. A resistência é viva e atravessa séculos.
Nos tirarão mortos
Apesar dos esforços do governo em sediar um evento internacional, invisilbilizando os conflitos políticos e socioambientais do próprio pais, sucedeu-se uma série de contramarchas de grupos que questionavam a organização da Cumbre e a possível presença de presidentes como Morales e Correa. No final de dezembro aconteceram as manifestações dos jovens contrários à implementação da reforma trabalhista. Transmitidas ao vivo pela internet e ressignificadas através da ação de muitos coletivos, ativos e articulados em torno de uma Guerrilha Audiovisual, a jornada de marchas foi intensa. Apesar dos gritos e dxs feridxs, da repressão generalizada, Lima se organiza em blocos de ação formados nas distintas zonas da cidade, o que permite uma maior coordenação para os atos e uma melhor estratégia de comunicação. A reforma foi derrotada.
Desta vitória surgiram manifestações de solidariedade a outras lutas, como um plantão de vigília a Máxima em frente ao escritório da Minera Yanacocha, organizado dia 6 de fevereiro de 2015, três dias depois da invasão do terreno de Máxima por seguranças privados da empresa com o consentimento da polícia local.
https://youtube.com/watch?v=k6zLTmQANV4frameborder%3D0allowfullscreen
Máxima afirmou que no dia em que a tirarem do seu terreno a tirarão morta. Apesar das inúmeras tentativas de usurpação de terras pela empresa, das incursões ilegais no seu terreno, das agressões físicas e psicológicas, a família segue em Tragadero Grande, entre a colina Cocañes e a Minas Conga. A luta contra o extrativismo na América Latina esbarra na criminalização dos protestos e nos interesses das grandes corporações e dos governos. Ao mesmo tempo, porém, surgem outras estratégias de resistência, de difusão de informação sobre os acontecimentos a partir do relato dos próprios afetados nestes processos.
Referências
Chuquilín, Mirtha Vásquez. Criminalización de la Protesta en Perú. Un análisis a la luz del caso Conga de Cajamarca. Cajamarca, 2013.
Linha do tempo que explica a história da defesa pela família Chaupe do seu território.
http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/363060/Caso-Familia-Chaupe/
Matéria publicada por Tomate Colectivo, Mal de Ojo e Guerrilla Audiovisual na Agência Subversiones.
http://subversiones.org/archivos/113470
Agradeço a Monica Mirós pela apresentação de la bandita e outras historias. A Maya Corminboeuf pela ajuda na cobertura dos eventos, reflexão e construção de possibilidades de articulação. A Jesed, Joel, Alicio, Atoq, Arafat e a todxs que organizaram e participaram do Encuentro de Cine Comunitário Latinoamericano. Ao Bloque Hip Hop que fez soar o cajón da resistência. A todxs que lutam contra os projetos extrativistas no Peru e a todxs xs jovens que tomaram as ruas de Lima e derrubaram o projeto da reforma trabalhista. Salve!
Juliana Bittencourt participou da Caravana Climática.
Fotografias: Juliana Bittencourt e Aldo Santiago López
Ilustração: Mariana Leme
A Caravana Climática foi uma gira de ação pela América Latina com o objetivo de chegar a Lima, no Peru, para a COP20 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. No caminho, realizamos algumas visitas a comunidades em luta por justiça climática e um projeto de documentação audiovisual que foi publicado, ainda parcialmente, na nossa página [http://caravanaclimatica.org/]. Para a Geni, escrevemos uma série de textos a partir do encontro com associações de mulheres, coletivos e individualidades feministas e outros temas afins.