Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

caravana climática

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Não são eles, somos nós

Relatos do Peru. Por Juliana Bittencourt, de Lima

Publicado em 16/06/2015

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A estreita relação entre governos e grupos econômicos, desvanecida e colorida com a cor de algum partido com fachada progressista e/ou desenvolvimentista, arrasa a América Latina na medida em que o compromisso com o neoliberalismo e o extrativismo faz com que seja necessário garantir os investimentos das grandes corporações, seu lucro e sua propriedade privada. Para isto, modificam-se leis, invertem-se os papéis de usurpados e usurpadores e se criminalizam os protestos sociais, fenômeno que ocorre em muitos países da América Latina, incluindo o Brasil.

 

O governo de Ollanta Humala no Peru gerou grandes expectativas durante a sua campanha. No entanto, não só não provocou nenhuma ruptura com os interesses de grandes corporações e empresários como deixou de cumprir promessas de resolução dos conflitos socioambientais que se estendem pelo país. Além disso, em dezembro do ano passado tratou de implementar uma lei que regulariza o trabalho de jovens de 18 a 24 anos, conhecida como lei Pulpin (uma marca de suco para crianças), que na verdade é a proposta de criação de um novo regime laboral com o objetivo de precarizar o trabalho dos jovens e beneficiar os empregadores com a justificativa de inserí-lxs no mercado formal de trabalho. Esta foi a forma encontrada de tentar baratear os custos com a mão de obra e de forçar os jovens a aceitar a exploração do seu trabalho. A juventude peruana tomou as ruas e foi violentamente reprimida, tanto através da agressão física dos manifestantes quanto pela tentativa de desqualificação dxs jovens feita pela mídia e o amedrontamento pela presença ofensiva dos corpos policiais.

 

Os governos que sucederam o terrorismo de estado de Fujimori não deixaram de favorecer os grupos econômicos e continuaram a política de criminalização dos protestos sociais, como foi o caso do governo de Alejandro Toledo e, aumentado, o de Alan García, pela proximidade deste último com aqueles grupos. Esta politica é descrita por Mirtha Vásques Chuquilín no livro Criminalización de la protesta social: un análisis a la luz del caso Conga de Cajamarca [Criminalização do protesto social: uma análise à luz do caso Conga de Cajamarca]. Chuquilín afirma que esse fenômeno se dá pela excessiva penalização de delitos associados aos protestos. A repressão violenta, desproporcional e arbitrária é um indicador dessa política, que consiste não somente na utilização da força pública mas também de outros mecanismos, como o sistema jurídico, através do uso de leis que criminalizam os ativistas sociais, e também por intermédio dos meios de comunicação que caracterizam de forma negativa os protestos e ressaltam os efeitos negativos das mobilizações. Chuquilín ressalta que atualmente as empresas também são responsáveis por difundir a ideia de que todo protesto é uma ameaça à segurança pública, argumento utilizado para disfarçar os interesses privados que estão por trás de tais políticas.

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Com o aumento dos conflitos sociais no país, foi realizada nos últimos anos uma série de modificações nas normas jurídicas  a fim de  aumentar as atribuições dos policiais durante os conflitos e permitir a impunidade dos que atuam arbitrariamente. Um exemplo é a modificação no código penal mediante o decreto legislativo 982 de julho de 2010, que declara que aqueles que provocam lesões e mortes “no cumprimento do seu dever e uso de suas armas de forma regular” não poderão ser responsabilizados. Segundo a Oficina Nacional de Diálogo e Sustentabilidade, existem atualmente 85 conflitos, concentrando-se em Cajamarca, Apurímac e Arequipa. Eles acontecem principalmente em relação a megaprojetos que ameaçam e contaminam o território de várias comunidades.

 

Este processo de criminalização dos protestos sociais procura fazer com que os conflitos deixem de representar demandas legítimas da população e passem a entrar na mesma categoria de crimes associados ao terrorismo e ao narcotráfico. De acordo com Chuquilín, a chegada da globalização, a consolidação do neoliberalismo e as políticas econômicas baseadas no extrativismo justificam estas práticas. Em paralelo à exploração industrial dos recursos naturais na América Latina, experimentou-se o aumento da criminalização dos protestos sociais, já que o Estado neste modelo de desenvolvimento é o principal promotor do mercado externo e procura dissuadir todxs os que o ameacem.

 

A criminalização é uma politica estendida na América Latina, em relação aos grupos e pessoas que resistem à indústria extrativa (mineração, petróleo, gás, monoculturas, represas, hidrelétricas), que impacta diretamente os territórios das comunidades indígenas e campesinas. Não são eles, os grupos econômicos, políticos e sindicais atrelados aos interesses dos empresários que vão evidenciar e confrontar tais estatégias, além de promover a articulação entre as resistências. Somos nós. Neste processo novas figuras emergem e se consolidam como símbolo. Máxima Acuña Chaupe é uma delas.

 

Máxima

Máxima se transformou em um símbolo da luta contra o extrativismo na América Latina. Em 1994, sua família comprou um terreno chamado “Tragadero Grande”, parte da comunidade campesina de Sorocucho, e foi reconhecida como parte daquela comunidade. Em 1996, a empresa Minas Conga assinou um contrato de compra e venda com a comunidade de uma área que não incluía Tragadero Grande. A família permaneceu no local. Em 2001, a empresa transferiu sua propriedade à empresa Minera Yanacocha (maior mina de ouro da América Latina e a segunda do mundo), cujos acionistas são os mesmo de Minas Conga. De acordo com o projeto de exploracão da região, a Lagoa Azul, situada próxima à propriedade da família Chaupe, seria utilizada para depositar resíduos.

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Apesar de possuir o título de propriedade, foram muitas as tentativas de Yanacocha de desalojar a família, utilizando seguranças privados e agentes da policia. Na segunda tentativa, os funcionários destruíram as casas e levaram comida, roupas e outros bens. Ante o ocorrido, a  família denunciou Yanacocha por usurpação. Na terceira tentativa, utilizaram uma escavadeira. A filha de Máxima, Gilda Chaupe, colocou-se diante da máquina para impedir o seu passo. Foi golpeada e desmaiou. Tanto a família quanto os policiais pensaram que ela estava morta. Máxima enfrentou a polícia e também foi agredida. Apesar do registro das agressões, a promotoria arquivou sua denúncia e a polícia afirmou que foi a família quem agrediu os policiais. Yanacocha decidiu fazer a denúncia de usurpação contra Máxima. A acusação foi aceita e terminou em um longo processo judicial. Máxima perdeu nas duas primeiras instâncias e somente na terceira, no dia 17 de dezembro de 2014, foi absolvida. Ainda assim, a família não terminou de responder os muitos processos colocados pela empresa. Em uma clara e difícil inversão, os argumentos que Máxima poderia utilizar contra a empresa e a polícia foram utilizados contra ela, por mais inverossímil que possa parecer. O estado a ataca com o seu sistema judiciário, bastante parcial e não crível.

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A defesa das lagoas da região que serão afetadas pela empresa é feita pela família Chaupe em conjunto com organizações de base que, por sua vez, a apoiaram na construção de uma casa comunitária no seu terreno.  As manifestações de solidariedade e alguns reconhecimentos dados a Máxima por sua luta ajudaram a amplificar a sua voz e a visibilizar o desenlace dos processos a que sua família teve que responder. Máxima se transformou em um simbolo de defesa da água juntamente com xs cajamarquinxs, que se apresentam como protetorxs das lagoas e organizam as rondas campesinas para sua proteção.

 

A 20ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP20), levada a cabo por representantes de países, empresas e organismos financeiros internacionais, em dezembro de 2014, em Lima, longe de pensar nas possíveis mudanças estruturais no sistema capitalista, necessárias para solucionar ou atingir as causas e problemáticas relacionadas às mudanças climáticas, dedicou-se a criar uma nova economia global que garanta a continuidade do capitalismo, sua reinvenção em meio às catástrofes socioambientais em nova fase de acumulação. Em paralelo, ocorreu a Cumbre de los Pueblos, que deveria ser o espaço alternativo às negociações da COP20, destinado aos movimentos sociais e demais organizações. A Cumbre, fórum supostamente dos povos, transformou-se infelizmente em uma pequena disputa de poder por grupos e setores já consolidados dos movimentos sociais, que não fizeram mais do que um lobby para si mesmos. Neste cenário deformado, destinado a canalizar e amenizar as forças e manifestações mais contestadoras, aconteceu a Segunda Marcha pela Água. Nesta marcha, que saiu de Celendin, na provincia de Cajamarca, e chegou a Lima, estavam as guardiãs das lagoas, as mulheres que se juntaram em uma brigada contra o extrativismo, e também Máxima, com uma muda de amaranto. A chegada da marcha foi marcante e nela irrompeu algo ainda maior, que se fez visível nos altares construídos com diversas sementes, velas, flores e incensos toda a ancestralidade era presentificada na sua máxima expressão reivindicativa. A resistência é viva e atravessa séculos.

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Nos tirarão mortos

Apesar dos esforços do governo em sediar um evento internacional, invisilbilizando os conflitos políticos e socioambientais do próprio pais, sucedeu-se uma série de contramarchas de grupos que questionavam a organização da Cumbre e a possível presença de presidentes como Morales e Correa. No final de dezembro  aconteceram as manifestações dos jovens contrários à implementação da reforma trabalhista. Transmitidas ao vivo pela internet e ressignificadas através da ação de muitos coletivos, ativos e articulados em torno de uma Guerrilha Audiovisual, a jornada de marchas foi intensa. Apesar dos gritos e dxs feridxs, da repressão generalizada, Lima se organiza em blocos de ação formados nas distintas zonas da cidade, o que permite uma maior coordenação para os atos e uma melhor estratégia de comunicação. A reforma foi derrotada.

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Desta vitória surgiram manifestações de solidariedade a outras lutas, como um plantão de vigília a Máxima em frente ao escritório da Minera Yanacocha, organizado dia 6 de fevereiro de 2015, três dias depois da invasão do terreno de Máxima por seguranças privados da empresa com o consentimento da polícia local.

 

https://youtube.com/watch?v=k6zLTmQANV4frameborder%3D0allowfullscreen

 

Máxima afirmou que no dia em que a tirarem do seu terreno a tirarão morta. Apesar das inúmeras tentativas de usurpação de terras pela empresa, das incursões ilegais no seu terreno, das agressões físicas e psicológicas, a família segue em Tragadero Grande, entre a colina Cocañes e a Minas Conga. A luta contra o extrativismo na América Latina esbarra na criminalização dos protestos e nos interesses das grandes corporações e dos governos. Ao mesmo tempo, porém, surgem outras estratégias de resistência, de difusão de informação sobre os acontecimentos a partir do relato dos próprios afetados nestes processos.

 

 

Referências

Chuquilín, Mirtha Vásquez. Criminalización de la Protesta en Perú. Un análisis a la luz del caso Conga de Cajamarca. Cajamarca, 2013.

Linha do tempo que explica a história da defesa pela família Chaupe do seu território.

http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/363060/Caso-Familia-Chaupe/

Matéria publicada por Tomate Colectivo, Mal de Ojo e Guerrilla Audiovisual na Agência Subversiones.

http://subversiones.org/archivos/113470

 

Agradeço a Monica Mirós pela apresentação de la bandita e outras historias. A Maya Corminboeuf pela ajuda na cobertura dos eventos, reflexão e construção de possibilidades de articulação. A Jesed, Joel, Alicio, Atoq, Arafat e a todxs que organizaram e participaram do Encuentro de Cine Comunitário Latinoamericano. Ao Bloque Hip Hop que fez soar o cajón da resistência. A todxs que lutam contra os projetos extrativistas no Peru e a todxs xs jovens que tomaram as ruas de Lima e derrubaram o projeto da reforma trabalhista. Salve!

 

Juliana Bittencourt participou da Caravana Climática.

Fotografias: Juliana Bittencourt e Aldo Santiago López

Ilustração: Mariana Leme

 

A Caravana Climática foi uma gira de ação pela América Latina com o objetivo de chegar a Lima, no Peru, para a COP20 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. No caminho, realizamos algumas visitas a comunidades em luta por justiça climática e um projeto de documentação audiovisual que foi publicado, ainda parcialmente, na nossa página [http://caravanaclimatica.org/]. Para a Geni, escrevemos uma série de textos a partir do encontro com associações de mulheres, coletivos e individualidades feministas e outros temas afins.

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