Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

literatura

, , ,

Os guardas dormem na fronteira

Uma seleção de poemas da escritora Júlia de Carvalho Hansen

Se a poesia serve pra algo, pode ser pra muitas coisas. Às vezes ela é um inutensílio, o avesso da utilidade – e, sendo assim, paradoxalmente é algo muito útil. Nesses casos, quando nos olhamos no espelho e cremos ver um rosto conhecido, a poesia quebra-o, embaça-o, ou nos dá um novo rosto, ao qual não nos acostumaremos. Então, ler um poema é encarar o vazio e ter a impressão de ouvi-lo dizendo: “Eu sou você”.

Os poemas de Júlia de Carvalho Hansen, que publicamos nesta edição de Geni, zeram e adubam a identidade, mostram a fixidez assustada dos retratos 3×4 embaçando-se “ao menor contato de respiração humana”. Não há fronteira que resista ao sono, aos Alpes submersos que ninguém habita. E não há quem não seja, ao mesmo tempo, “vítima e conquistadora”, pois todxs temos, na contracapa, um coração selvagem pela metade.

Júlia nos lembra dos peixes, que vivem uma vida sem lógica sentimental, e nos faz perguntar: como é viver em “uma casa em que se tirassem as paredes e o ar caísse sobre nós”? Como é estar na “noite onde os nomes não se registram nos radares”?

Que esse vazio pleno fermente, e que o que ainda não veio se faça de face. Eu te convido a ser, também, estrangeirx em qualquer parte. E a aproveitar este novo ano, bêbado.

Marcos Visnadi

*

Os poemas seguintes foram retirados dos livros Cantos de estima (São Paulo, Selo de Estimas e Gramas, 2009) e alforria blues ou Poemas do destino do mar (Belo Horizonte/Lisboa, Edições Chão da Feira, 2013), e são assinalados com as iniciais de cada livro – respectivamente, CDE e PDDM. A versão aqui apresentada de “o espelho imantado” foi publicada em edição artesanal dos Cantos de estima, feita no projeto “12 exemplares”.

Após os poemas, Flavio Tris, que vai lançar seu primeiro disco ainda neste mês de junho, canta sua versão de “Os guardas dormem na fronteira”, gravada especialmente para a Geni.

IMG_8849

 

esta paisagem

Ou é tudo uma sequência de imediatos
todo dia de manhã ao espelho
me tiram num 3×4

e estão enfileirando porta-retratos
que se embaçam ao menor contato
de respiração humana.

(CDE)

*

amor
(fragmento)

vim andando de longe, pensando, pensando
é para os rochedos entre o mar que o amor se vai
quando acaba?
ou é na vida sem lógica sentimental dos peixes?
uma casa em que se tirassem as paredes e o ar caísse
sobre nós?

(CDE)

*

os guardas dormem na fronteira

De repente manifesto
a gente

vai se voltar a um outro escalão:
montanha, névoa, marulho, o metrô que é o nosso trovão

então você acha que os cantos estão mudando de lugar
mas é a gente que vê os homens constrangidos da cidade

e tenta: enseada sobre asfalto, esta manhã,
porque tudo que é, é o nosso

estou no ponto pro Jardim da Glória, lendo a realidade
cientistas descobrem Alpes submersos na Austrália

na contracapa um coração selvagem pela metade
o cheiro de perto do sal um potro de pulmões novos

e o mar, ah oceano cavalgadura,
absolutamente estrangeiro a mim nesse interior sem tamanho

eu juro que esse túnel não acaba
estão nos levando a um lugar de verdade.

(CDE)

*

o espelho imantado

te pus dormindo sobre o rio
trajando o negro de sempre
tua imagem boia fica comigo
e o rio era largo vermelho e dourado

perpendicular à cama que durmo
o fim da tarde iluminando
pelo colarinho sua camisa me forçava
a ser o vestido que eu usava rente à janela
pensando que irias nele me querer
e bem

aqui perdi a metáfora
como em outros tempos mulheres perdiam estolas
perdi a matéria
neste espelho
minha carne
se perdeu

posso discutir com meia dúzia de amigas
o vácuo a estratégia da beleza
posso até fotografar-nos posando disso
mas não sei se é você que me visita
ou é essa luz e meia que me enfeitiça?

que sentido faria um amor tão longe
de me visitar agora? nessa hora?
que é?
pombos-correios embratel emails
quanta dissipação, meu deus,
milhares de partículas no ar denso desse verão,
dores de cabeça caroços que incham corcundas húngaras contadas na televisão,
vem a mim me dar essa
loucura? miragem, teus olhos
por trás de mim falam
por dentro daqui me olham

neste incômodo na Hungria
de todos os espelhos deste infinito apartamento de Budapeste
quantas amostras emolduradas desde 1808
miraram sem se ver?
não sabem a voz que ouço da imagem de vidro
talvez pela primeira vez
este espelho fale português
essa língua cheia de dúvida
em conjugar amar ou amando
de quem?

vítima e conquistadora
sempre a primeira e a última
no pódio de chegada
a melhor definição de amor
não vale um beijo de namorado

e essa tela fria e tão sem cheiro
tão sem seu beijo tão sem seu jeito
parece uma fila de amputadas mulheres pelo tempo
no recorte do meu corpo
apartada
atravessa tua imagem o leito dos meus olhos aos litros
e muito pisco nublados
e tento meditar como te suicido
se o momento de morte em mim do amor
trará pra sempre a morte do amor ou de mim,
é perigoso

é uma maravilhosa sonolência que te traz em imagem enigmática
mas como um galho pela margem a correnteza estanca
para de rodar o Danúbio, nunca vai limpar o Pinheiros
e o dedo que me atravessa o cabelo
era capaz de ser teu fantasma de pau
tua língua
minha língua
estrangeira de mim em qualquer parte.

(CDE)

*

me dê de presente o teu bis

Quando presa ao ar da vigília
procurar minha insistência desistiu
voltas num ponto da penumbra
e pedes pra que me abra novamente

se o mundo fosse um estabelecimento
havia de pesar destreza na planilha
portas sanfonadas que emperram
ferrugens do sangue de ontem

mas sabes que banho os poetas ao sol
e pelo modo de contagiar os descontentes
ouço: vim dizer que o dia te seja calmo
e não precises retirar prazer das coisas

em dúvida, me recoloco a escrever calados
depois dito no ritmo dos passos:
silencio tudo aquilo que do meu coração não parte.

(CDE)

*

I

Como não sei onde vamos morrer
por baixo de um lençol branco
só vejo nas minhas unhas um pouco sujas
a limpeza áspera das tuas mãos.

Em outra vida talvez fôssemos nômades
estrelas cadentes
ou o coral que levanta das tuas cartas
os meus pontos-finais de areia
a água revolvida e encruzilhada.

À sombra da figueira brava que sobe pelas tuas costas
cresce um blues furioso, uma flor
a quem alguém chama pelo nome do futuro.

Como um deus judeu
de cem mil nomes em segredo
ou um vazio mais pleno do que turvo
o que ainda não veio
se faz de face

sorri, sugerindo o que mostra
e estende a palma aberta
trouxeste o que me falta?

Todo meu corpo está calmo
olho ao outro como se visitasse um aquário
entre as anêmonas do vir a ser
a vida sem lógica sentimental dos peixes.

As pontas dos meus dedos rangem umas sobre as outras
e só percebo esta denúncia.

(PDDM)

*

V

Ver até passar
                         a ideia de que não consegues
                                                  deixar

a ideia de conseguir uma ideia que leve, enleve
vai nos reduzir o tédio, as vidas minúsculas, as letras maiúsculas,
as escolhas de sermos as ideias de deixarmos os cavalos
com elas, pastando, pastando a identificação

não encontro       nesse 3×4       nada que seja meu
só encontro as ideias do que gostaria que fosse eu
e quando digo, melhor sem ideias, melhor sem eu
isto ainda é orgulho, lento
                                        orgulho.

A tracejar todos os horizontes, de todos
de dívidas imaginárias das ideias, comigo de comigo
comigo de com ele, contigo e consigo

consigo finalmente um homem sem ideias e então
ele me sela, ele me revigora ele é meu
vento de viração              alazão do azul               parti

                                        ção,                                                 meu pigmento
                                                                              de seda,

(PDDM)

*

XI

Temes a noite onde os nomes não se registram nos radares
e as palavras como joelhos afastados pela mão de outro
são caixas-pretas boiando no mais marinho dos oceanos.

Um avião cruza os ares em direção a um batizado.
É o seu eco que cola as sílabas umas às outras
rejuntes de significado, amálgamas do esquecimento.

Se só pensas em assentar as mais corretas maneiras
de permanecer, feito cal, espalhado pelas espáduas
trêmulo cimentado teu coração, um canteiro de plantio
para as alfaces – soníferas e insípidas – do cotidiano.
De ti, só poderei aceitar atrelar-me, como um mexilhão.

Agora sou na tua rocha. E de mim se aproxima outro,
que os passageiros não alcançarão. Age antes de querer
com todos os olhos de quem nunca tinha tocado bivalves
sem enciclopédia ou Discovery Channel
feito um miúdo se maravilha, ama as pérolas,
sabe bem mastigá-las com os dentes até parti-las.

Como eu, um dia, também contigo, tentei.

(PDDM)

*

XXI

O céu que nos prometa um ano bêbado
sem por enquantos
um ano que diz ENTÃO MOSTRA
e sacode feito leitoa as tetas que caem
são nuvens
de uma chuva dramática e sem aprendizagem.
Eterno ser sem se apropriar
da impossibilidade de organizarmos
em formas calmas, permanentes, necessárias
tanto você como também eu
ou nós podemos pular e estaremos no alto
através dele, este céu que nos promete
Sou eu o messias e anuncio
mais uma rodada de anos
bêbados.

(PDDM)

*

, , ,