primeira pessoa
EUA, LGBT, número 0, universidade
Pegando jacaré
Na Universidade da Flórida, as diferenciadas não têm medo de crocodilo e fazem projeto de integração dxs calourxs levando em conta a diversidade de orientação sexual e identidade de gênero. Por Elton Furlanetto
Quando decidi que eu viria para a Universidade da Flórida (UF), em Gainesville, para fazer parte do meu doutorado – em um programa que é chamado carinhosa (e até oficialmente) de doutorado sanduíche – não esperava ter nem metade das experiências que tive. Todo mundo fala que morar num outro país é algo que muda sua vida para sempre. Concordo. É outra língua, outra cultura, o gosto da comida é diferente, e até as doenças que você nunca pegava em solo brasileiro vêm te assolar (sai pra lá bronquite e conjuntivite!). Porém, o mais interessante ocorre quando você escapa um pouco desse lugar-comum dos fatos culturais e se vê envolvido numa situação inusitada, que seria impossível de prever.
Nos primeiros dias após eu chegar, explorando as ruas do campus, observando aqueles prédios típicos de tijolinhos dos campi estadunidenses, vi um cartaz anunciando alguma coisa sobre bullying e homofobia. Como me interesso por esses assuntos, fui ler o cartaz melhor. Ele trazia um endereço de e-mail e um telefone do Escritório de Assuntos Multiculturais e de Diversidade da UF. Na internet, descobri o endereço e fui até lá, procurar alguém para me informar. Queria poder entender como aquele escritório funcionava e como eu poderia participar das atividades que ofereciam durante minha estada.
A primeira lição
Fui recebido pela Lauren Hannahs, uma garota que me impressionou pela forma profissional como me atendeu, sem ser impessoal. Ela estava impecavelmente vestida com camisa, calça social e gravata. Foi minha primeira lição sobre androginia. Ela me explicou sobre as funções do escritório: dar suporte para a população LGBT da universidade, organizar ou apoiar os diversos eventos relacionados a gênero e sexualidade.
Como expressei o desejo de me envolver, ela me adicionou ao mailing delxs. Por ele, eu soube dos diversos eventos LGBT que aconteceriam no campus e na cidade. Graças a isso, fui a uma projeção de filme no Centro Comunitário do Orgulho do Norte da Flórida (Pride Community Center of North Florida), que não se localizava no campus propriamente dito. Também descobri que haveria reuniões de um grupo chamado New to UF (Novos na Universidade da Flórida).
Semanalmente, esse grupo se reunia para discutir temas como identidade sexual, proteção contra o preconceito, visibilidade na mídia e relacionamentos. Os temas eram propostos e discutidos coletivamente. Qualquer umx poderia sugerir um tópico, que tinha que passar pelo crivo da maioria. Nos primeiros encontros, havia pessoas de várias idades e países, mas, com o passar do tempo, restaram apenas alguns/mas calourxs e eu. Mesmo com esse esvaziamento, no decorrer do semestre, pudemos fortalecer as amizades e discutir coisas bem interessantes. O rapaz que fazia a mediação dos encontros semanais era doutorando em educação pela universidade e propunha debates e atividades. Foi por meio desse grupo, em uma das reuniões, que fomos convidadxs a participar do Pride Mentorship Program (Programa de Orientação do Orgulho).
Orgulho mentorado
Como o semestre começa em setembro, cheguei um pouco antes (em agosto) de uma leva de novxs alunxs. A cidade de Gainesville, onde a UF se localiza, dobra de população com a chegada dxs suas/seus mais de 50 mil alunxs. Sendo uma das maiores universidades do país, classificada entre as dez melhores por alguns institutos de pesquisa, ela é referência para a região e reúne alunxs de diversas nacionalidades e ascendências.
Uma das diferenças mais marcantes que eu encontrei aqui, comparando com a minha graduação, foi a importância que xs estadunidenses dão para os clubes e associações. Não que no Brasil não haja, mas o número aqui parece ser bem superior. Há clube de francês, clube de música, clube de matemática e uma infinidade de outros grupos. Cada um organiza atividades e eventos e qualquer pessoa da universidade pode fazer parte e socializar. Uma dessas organizações estudantis é o PSU (Pride Students Union – Grêmio dos Estudantes do Orgulho), gerido pelxs alunxs que têm interesse nas discussões de gênero e sexualidade. Esse grupo é apoiado pelo Escritório de Assuntos Multiculturais da universidade.
Seguindo o exemplo de diversos outros programas de orientação dos Estados Unidos, como o Big Brothers Big Sisters, o PSU desenvolveu um programa baseado na identificação LGBT dxs alunxs. Várias outras universidades daqui e do Canadá possuem iniciativas parecidas – por exemplo, Towson University, Georgia Regents University e California State University. Basta procurar no Google e diversas instituições descrevem seus programas. Segundo Jack Mizell, diretor de outro programa, o PMP, trata-se de “um programa para qualquer umx que é novx na universidade. O processo serve para colocar você em contato com uma pessoa cuja tarefa é ajudá-lx a encontrar seu espaço e se dar bem”, principalmente no que diz respeito à sexualidade, assumir-se e relacionar-se.
Xs interessados deveriam enviar um e-mail e recebiam um questionário bem específico sobre seus gostos e preferências – das políticas às artísticas. X alunx tinha certificada sua confidencialidade e deveria responder tais perguntas de forma honesta e completa. A pessoa estaria então se inscrevendo para ser uma mentee. Na falta de uma palavra no português que traduza essa posição, de alguém que recebe a ajuda de umx mentorx (poderíamos usar orientando, bicho, calouro, até a chique prótegé – mas todas fogem dessa conotação específica que temos aqui), vamos usar o neologismo “mentoradx”. O questionário seria analisado pelxs diretorxs do programa, juntamente com os perfis dxs mentorxs (mentors). Para ocupar essa posição, xs alunxs interessados precisavam passar por um rápido treinamento. Alex Randall, 21 anos, que foi minha mentora e estuda a situação das mulheres no Líbano, explica que “havia uma pessoa do Centro de Aconselhamento e Bem-Estar da universidade mediando, e ela oferecia casos para discutirmos sobre como estabelecer o relacionamento com xs mentoradxs, ou o que fazer se soubéssemos que elxs estavam pensando em suicídio, por exemplo”.
Nadando com os crocodilos
Antes da revelação de quem seriam xs mentorxs e mentoradxs, xs dirigentes do grupo realizaram um dia de atividades ao ar livre, no qual cerca de 50 pessoas puderam se apresentar e interagir. Por que esse encontro? Nas palavras de Meghan King, uma dxs diretorxs da segunda turma, estudante de matemática, o objetivo do que elxs chamavam de “retiro” era “dar às/aos diretorxs e às/aos participantes uma chance de se juntarem e descobrirem quem são. Não queremos associar as pessoas nos baseando apenas em formulários”. Ela acrescenta que a atividade seria uma chance de passar um dia legal no lago Walburg, praticando esportes e atividades. Lembro-me que fizemos canoagem, jogamos vôlei e até nadamos – mesmo sabendo que, na Flórida, qualquer lago tem crocodilos!
A partir dessa interação e dos questionários, xs alunxs foram organizados em pares. A função dxs mentorxs era dar assistência de diversas naturezas: burocrática, prática, acadêmica e interpessoal. Isso acontece, segundo Mizell, por meio de “reuniões semanais e individuais com x sua/seu mentorx”. Os detalhes – como periodicidade, local etc. – seriam decididos em comum acordo.
Um dia após o retiro, xs mentorxs ficaram sabendo por quem seriam responsáveis. Elxs teriam uma semana para, de forma velada e divertida, seguir o seu par e dar presentes, tirar fotos durante as aulas e postar em perfis fakes criados por elxs no Facebook. No final de semana seguinte, haveria a Parada do Orgulho Gay de Gainesville. Antes da marcha (por cinco quarteirões, feita por aproximadamente 150 pessoas e observada por um número similar) xs mentorxs se revelariam e todxs caminhariam juntxs.
Tal acontecimento foi enriquecedor e divertido. Minha mentora era muito inteligente e tínhamos diversos gostos em comum. Ela me ajudou a lidar com as diferenças culturais, ensinou uma série de gírias gays e sempre estava disposta a me ouvir nos meus momentos de crise e saudade de casa.
Conversando com os diversos participantes, obtive relatos diversos sobre as experiências vividas. Apesar de a minha ter sido bastante positiva, houve algumas críticas ao programa.
Jenna Davis, estudante de estudos ambientais, e Eric Shneck, estudante de zoologia e fã de Lady Gaga, ambos mentores, tiveram uma impressão positiva do programa. Jenna afirmou que, embora o processo não tenha sido tão intenso, ela aproveitou para “expor um novo aluno à vida em Gainesville e oferecer assistência em qualquer área que ele precisasse, fosse LGBT ou não”. Já Eric disse que o programa o ajudou a se tornar uma pessoa mais acessível socialmente, menos tímida, e o fez conhecer mais pessoas, além de reforçar os laços com as que ele já conhecia. O testemunho mais interessante por parte dxs mentorxs veio de Miguel Labrador, 20 anos. Ele contou que não havia participado do programa quando era calouro, o que fez com que tivesse que aprender tudo sozinho. Essa foi uma das razões que o fizeram querer ser mentor: ajudar outras pessoas a não passar pela mesma situação.
Mas o plano de Miguel não deu muito certo: “Eu estava pronto para fazer qualquer coisa pelo meu mentorado. Eu teria que me tornar essencialmente uma figura paterna, ser uma grande influência na vida dele”. Suas altas expectativas foram frustradas quando, de fato, ao interagir com seu mentorado, percebeu que ele “já tinha as ferramentas necessárias para transitar pelos rigores da vida de calouro na UF. Ele já tinha vivido as agruras, e sozinho as tinha superado, assim como eu”.
Xs mentoradxs, por sua vez, qualificaram a experiência de ter participado do programa com palavras de entusiasmo. Ray Odeh , 19 anos, estudante de horticultura ambiental e fã de RuPaul’s Drag Race, falou em “senso de comunidade”. Fred Franco , 19, estudante de psicologia e escritor, mencionou “segurança e apoio”. Kenia Potosme, 20, amante do surfe e da cor laranja, disse que o mentor dela foi “compreensivo, atento e engenhoso” para guiá-la nas situações difíceis que ela encarou. Matt Wintle, 19, um calmo estudante de economia, dá ênfase ao fato de ter ganhado um amigo. Kenicka Romaine, 19, fã de Rihanna e das tartarugas, sintetiza as diversas opiniões dizendo que “minha mentora me ajudou a estar bem com quem eu sou, me deu uma chance de finalmente me sentir normal”.
No entanto, alguns/mas dxs participantes expressaram críticas com relação ao programa. Michael Misquith, 18, estudante de psicologia e também fã de Lady Gaga, disse que sua personalidade não combinava bem com a de seu mentor. Isso não ocorreu apenas com ele. Afinal, quando se envolve a interação entre pessoas, nunca dá pra ter certeza de qual vai ser o resultado. Ray acrescentou que seu primeiro mentor abandonou o programa e o substituto também, por motivo de saúde. A impressão que eu mesmo tive, e que Kenia, por exemplo, confirma na sua fala, é que, depois de um certo tempo, parecia apenas “mais um clube social.” Havia festas ou convites para eventos em que alguns membros estariam, mas as atividades não davam conta de pessoas que não gostassem de festas.
Por último, diferente do início do programa, em que tivemos uma espécie de ritual para conhecer xs mentorxs, faltou uma delimitação mais clara por parte do programa sobre um fechamento oficial para a orientação. Minha proposta era que houvesse um evento, depois do qual as reuniões não seriam mais obrigatórias, que marcasse um período no qual as amizades, os laços, prevaleceriam, mas sem a formalidade que o programa propunha. Uma das causas da falta de uma cerimônia de finalizações, segundo o diretor Jack Mizell, teria sido que as outras duas diretoras do programa, por motivos acadêmicos e de saúde, acabaram abandonando seus postos e ele, sozinho, não conseguiu articular os eventos e as demandas.
Por que não no Brasil?
Achei esse programa válido porque nunca tinha ouvido sobre nada parecido nas universidades brasileiras. Temos as semanas de calourxs e, em alguns cursos, xs veteranxs “adotam” xs calourxs, mas é a primeira vez que eu vejo isso acontecer partindo da premissa da orientação sexual.
A chegada à universidade normalmente é fundamental para pessoas que estão se descobrindo, que começam a explorar sua sexualidade. Ter pessoas que possam ajudar nos primeiros passos, com dicas, apoio e cuidado parece ser extremamente valioso. Eu não estava começando uma graduação, nem tenho 18 anos, mas com certeza minha adaptação a esse novo ambiente, totalmente estrangeiro para mim, teria sido muito mais complicada sem o programa.
Seria muito interessante se as agremiações e grupos LGBTs das universidades brasileiras tentassem algo parecido. Se a gente aprende a gostar de hambúrguer e batata frita, a ver filmes de humor duvidoso para nossos gostos verde-amarelos, por que não aprendermos também com essa lição de respeito à diversidade?