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acadêmicxs, machismo, número 30, quebrada, sujeito periférico, Tiaraju D’Andrea
Periferia, substantivo feminino
O conceito de sujeito periférico. Por Tiaraju D’Andrea
Pra começar
Nasci em 1980 e sempre morei em um bairro periférico da zona leste de São Paulo. Minha mãe criou sozinha a mim, um irmão e uma irmã. Ela cuidava dos filhos e da filha, da casa, e trabalhava à noite como enfermeira em um hospital público; aos fins de semana, eu ia pra casa de meu pai. Tive uma infância pobre e errante, sem-teto e muitas vezes morando na casa dos outros; tive um avô alcoólatra que quebrava móveis em casa; uma tia esquizofrênica e um monte de problemas financeiros. Cresci fazendo samba e hoje um dos meus ofícios é a música. Desde muito jovem milito em movimentos sociais de esquerda. Ao redor dos vinte anos, trabalhei por um tempo como semi-escravo em uma famosa rede de lanchonetes. Enfrentando uma série de percalços, me formei em ciências sociais na USP. Em seguida fiz um mestrado e um doutorado. Vale esclarecer que sou branco, homem e heterossexual. É a partir deste ponto de vista e carregando esta trajetória que escrevo este texto.
O conceito sujeito periferico
Gostaria de, neste texto, apresentar brevemente o conceito sujeito periférico, com o qual trabalhei em meu doutorado. Podemos afirmar que o conceito sujeito periférico quer dar conta de um fenômeno social caracterizado pelo(a) morador(a) da periferia, quase sempre jovem, mas não só, que passa a fazer um uso político do termo periferia, assumindo-o com orgulho, lutando contra os estigmas que recaem sobre ele, e, por meio de uma série de ações, incidindo sobre as condições de vida na própria periferia. Cabe reforçar que não é só no campo da arte e da cultura que atua um sujeito periférico. No entanto, a produção artística da periferia foi o setor social que mais contribuiu para essa afirmação, sintetizando e dando vazão a pelo menos três grandes processos sociais que incidiram na formação dessa maneira de pensar e de agir sobre o mundo. São eles: a questão urbana propriamente dita; uma experiência comum compartilhada e; uma necessidade histórica de rompimento de mediações. Passemos a abordar melhor cada um desses três.
São Paulo é uma cidade desigual e segregadora. Uma série de indicadores sociais comprovam como a pobreza aumenta quanto mais afastado se está da região sudoeste da cidade, a mais rica. A distância da moradia com relação à região sudoeste incide diretamente nas possibilidades e oportunidades que as pessoas terão em suas vidas, devido à marcada desigualdade que existe na distribuição de recursos. Na região sudoeste está a maior oferta de empregos, o maior número de equipamentos culturais e também de universidades. Não é à toa que as sedes das grandes empresas de comunicação também se concentram nessa região, visto que é onde pisam os pés que a cabeça pensa o mundo.
Essa desigual distribuição dos recursos e dos equipamentos obriga moradoras e moradores da periferia a gastarem grande parte do seu tempo em deslocamentos urbanos. A maioria desses deslocamentos é realizado em transportes públicos, caros e de má qualidade. Assim sendo, a questão urbana, com suas distâncias e seus deslocamentos, é uma das experiências que irão moldar o sujeito periférico.
Um segundo processo social que formaria este sujeito periférico seria o de uma experiência social e histórica comum e compartilhada. Para este argumento, nos baseamos nas proposições do historiador inglês E.P Thompson, para quem a classe se faz por meio de experiências comuns e se forma em sua prática. Isto posto, o sujeito periférico se reconheceria enquanto tal por uma série de formas de agir e de ver o mundo mais ou menos próximas, derivadas da vivência em um ambiente social particular, qual seja, a periferia. Esta possibilidade de enxergar o outro ou a outra como alguém que possui características sociais e históricas comuns daria sentido e sentimento de pertença a uma coletividade. Obviamente, esta experiência social e histórica comum e compartilhada está constituída de valores. Estes valores podem ser virtuosos, como a solidariedade, ou não, como o machismo que se perpetua. Adiante no texto voltaremos a tratar desta questão.
O terceiro processo social seria o fato de o(a)s morador(a)s da periferia terem iniciado um ciclo histórico de não aceitação de intermediários para dizer o que são ou como devem pensar. Esses intermediários podem ser as pesquisas acadêmicas formuladas por pessoas oriundas da classe média; as novelas e os filmes, hábeis em criar caricaturas; o mundo da publicidade e seus enquadramentos; a elite preconceituosa que segrega e criminaliza; certos setores da esquerda (fundamentalmente aqueles permeados pela pequena burguesia), que insistem em impor como a periferia deve agir politicamente sem viverem de fato o seu cotidiano. Assim sendo, os sujeitos periféricos são aqueles e aquelas que tomaram a palavra para falar de si mesmos na esfera pública. A partir de sua posição na estrutura econômica e de sua condição geográfica e social, tornaram-se sujeitos (no duplo processo de donos e donas de seus destinos e de suas falas e de assujeitados e assujeitadas por uma dada condição).
Por fim, assumir-se como periférico foi uma maneira de criar um grande guarda-chuva onde entravam uma série de condições: negro(a) e branco(a) pobre; trabalhador(a) e desempregad(a); religioso(a) e ateu; mulher e homem; homossexual e heterossexual. Este grande guarda-chuva que abriga uma série de experiências, unificando-as, cria-se em contraposição a uma outra posição social: aquela dos boys e patricinhas, dos brancos ricos, da elite. No entanto, dentro desse grande guarda-chuva unificador dos periféricos e periféricas, existem também desigualdades internas. Neste território social e geográfico, não é o mesmo ser branco(a) e ser negro(a); não é o mesmo ser trabalhador(a) e ser desempregado(a); não é o mesmo ser homem e ser mulher. Não é o mesmo ser heterossexual e ser homossexual. Se internamente à periferia há desigualdades, com evidentes hierarquias, cabe lembrar que a periferia também é o pólo inferiorizado numa dada relação urbana e social. Assim sendo, periferia seria um substantivo feminino.
No tópico abaixo, relatarei duas maneiras como minha tese foi recebida, com o intuito de demonstrar como distintas posições sociais redundaram em distintos olhares.
Questões de “branco/homem/USP” e questões de “negra/mulher/periférica”
Defendi meu doutorado em abril de 2013. Uma semana depois da banca o aprovar, apresentei a tese em um importante seminário aberto que ocorre na USP. Sala lotada, polêmicas, discussões, cabeça a mil por hora. Das muitas perguntas e questionamentos feitos ao trabalho naquela noite, duas particularmente me chamaram a atenção. A primeira foi a de uma mulher negra, questionando o título da tese e indagando se seria possível uma versão feminina do referido título. Logo adiante, neste texto, voltarei com mais profundidade à questão da companheira.
Por enquanto, gostaria de me deter a uma segunda questão colocada naquele debate, uma crítica formulada por um grupo que aqui denominarei ironicamente de “jovens uspianos” (todos homens brancos, cabe ressaltar). Estes jovens são bem formados, com carreira intelectual promissora, com muita bagagem de leitura e alguma militância. A crítica deles afirmava que na tese “faltava” a figura do trabalhador.
Após aquela apresentação na USP, dediquei boa parte dos anos de 2013 e 2014 a apresentar os resultados da pesquisa em coletivos e movimentos sociais da periferia de São Paulo. Lá fui eu, com um resumo em vinte quadros de power point, apresentar o trampo nas quebradas. Rodei zona norte, zona sul, oeste, centro e, obviamente, minha zona leste. Foram mais de trinta debates. Oriundo de escola pública e tendo usufruído do dinheiro público investido em uma universidade pública, não foi mais que obrigação da minha parte apresentar os resultados da pesquisa aos principais interessados sobre a mesma: as moradoras e os moradores da periferia.
Foram debates apaixonados, intensos e acalorados. Pude trocar ideias com muita gente. Muitos elogios e muitas críticas foram feitas. No entanto, chamou-me a atenção que nessas andanças periféricas, em nenhum momento, o(a)s trabalhadore(a)s-moradore(a)s da periferia fizeram uma crítica que adjudicasse uma “falta” do(a) trabalhador(a) na tese. Para mim, foi no mínimo paradoxal que essa crítica tenha sido oriunda de um setor social, os “jovens uspianos”, cuja relação com o mundo do trabalho é bem mais suave e tranquila. Realidade bem diferente das periféricas e dos periféricos que, em suas vivências cotidianas de moradoras e moradores de bairros populares e em suas experiências de vida, sabem que habitar determinados espaços geográficos e sociais da urbe só ocorre por pertencerem à classe trabalhadora. Classe esta que se define por uma determinada inserção na estrutura produtiva do capitalismo e que toma forma por meio de uma vivência social compartilhada e de um dar-se conta de sua posição no mundo, seja no ambiente de trabalho, seja no local de moradia.
Ficou evidente que havia a preocupação de um determinado setor social, “os jovens uspianos”, de invalidar a tese por meio de um argumento crítico que não se sustentava. Tal argumento poderia ser oriundo de uma impossibilidade de percepção, dada a posição social por meio da qual enxergam o mundo, ou de uma pura e simples posição política, que, no fundo, visava invalidar os processos sociais que ora ocorrem na periferia, de modo a continuar tratando os moradores e as moradoras da quebrada como subalternos, como uma espécie de reserva moral a ser tutelada, ou mesmo como um exército militante de reserva, a ser acionado (desesperadamente) apenas nos momentos em que a luta de classes se acirra.
Questões, questionamentos, buscas
Voltando à questão colocada por uma mulher negra, sobre se seria possível uma versão feminina do título da tese (esta sim uma questão pertinente), confesso que não tive resposta naquele momento e continuo não tendo. Por mais que o conteúdo do conceito sujeito periférico considere preponderante a luta das mulheres e dos negros e negras (isso está explícito na tese), é fato que o conceito enquanto nomeação segue masculinizando algo que pretende representar mulheres e homens periférico(a)s.
De partida, temos, ao menos, dois problemas: o vocábulo sujeito não consegue reter dentro de si os dois gêneros e muito menos possibilidades que escapem ao binarismo masculino/feminino. O segundo problema é que, ao tentar feminizar o vocábulo sujeito, temos a palavra sujeita, que possui outro significado do que seu homólogo masculino, ou seja, o conceito “sujeita periférica” não possui o mesmo sentido que “sujeito periférico”.
Após algumas pesquisas sobre a definição do vocábulo sujeito, apresentamos na tese que essa palavra carrega em si um duplo significado. Esse duplo significado está intrínseco ao conceito que se formulou. Um primeiro significado é oriundo do latim subjectus, que quer dizer “posto debaixo”. A partir desse significado em latim, extraímos a acepção da palavra sujeito na qual esta quer dizer “assujeitado às condições”. Neste caso, à condição de morador(a) da periferia, que impregna o indivíduo de uma certa forma de olhar o mundo. Nesta acepção, a versão feminina, ou seja, sujeita, possui o mesmo significado que a versão masculina, como “assujeitada às condições”.
Um segundo significado do vocábulo sujeito é oriundo da filosofia. Neste caso, a palavra tem o significado de “conhecedor/fazedor/agente” (neste caso, “sujeito” está em oposição a “objeto”). Para o nosso conceito, esta acepção explica o agente que, conhecedor de sua realidade, age para transformá-la. No entanto, ao feminizar esta acepção, observamos que a palavra “sujeita” não tem o sentido de “conhecedora/fazedora/agente”.
Isto posto, chegamos a um impasse, no qual o conceito sujeita periférica teria apenas o sentido de “sujeição”. Pergunta-se: seria mero acaso? Ou devemos assumir que, como afirma o pensador russo Mikhail Bakhtin, a linguagem expressa a ideologia de uma sociedade?
Poderíamos solucionar a questão intitulando este(a)s agentes como sujeit@s periféric@s, dessa maneira, com arroba. Outra solução seria a inserção do “x”, que transformaria o conceito em sujeitxs periféricxs. Também haveria a possibilidade de inserção do “e”, transformando o conceito em sujeites perifériques. Estas três soluções poderiam universalizar o conceito para ambos os gêneros e dar conta da fluidez das identidades. No entanto, no debate sobre diversidade sexual e gênero esta solução não é unânime. Segundo algumas autoras, esta solução poderia apagar as diferenças, que deveriam ser realçadas para serem combatidas, quando estas se apresentarem enquanto desigualdade.
Sem resposta neste momento, sigo na busca pelo aprimoramento do conceito e tenho como parceiras nesta busca pesquisadoras feministas, também habitantes da periferia.
Mulher da periferia
Das marcadas diferenças sociais que se expressam no território urbano, é sobre a mulher periférica que recai a maior opressão, sobretudo a mulher negra periférica. Enfim, periferia é substantivo feminino, e a carne mais barata do mercado segue sendo a carne da mulher, negra, pobre e periférica. É a mulher encoxada no busão e no metrô nos intermináveis trajetos; é a mulher que é obrigada a andar com medo por ruas escuras dos bairros populares, ao chegar tarde em casa do trabalho, da faculdade, do rolê ou da reunião política. É a mulher obrigada a cumprir a tripla jornada cotidiana, de trabalho, casa e cuidados com as crianças, muitas vezes sem contar com a ajuda do companheiro.
Neste ponto, cabe ressaltar o papel da maternidade entre as mulheres da periferia, que, sob as condições mais difíceis, criam filhos e filhas. Na luta cotidiana pela própria sobrevivência e pela sobrevivência da família, rompem com machismos e opressões. Em paralelo, cabe ressaltar o papel da gravidez na adolescência entre jovens das classes populares. Ao passar da posição de menina à posição de mãe, estas jovens buscam afirmar-se socialmente em um mundo que constantemente as reprime e as invizibiliza.
Mãe, filho, pai?
A figura da “mãe” na vivência periférica é um capítulo extenso, seja pelo fato de muitas delas serem figuras importantes e provedoras, e que dão unidade a complexas formações familiares; seja pela afirmação social ansiada pela adolescente-mãe; seja pela importância da mãe para os homens (fundamentalmente os jovens) periféricos. Na recorrente ausência de um pai, a mãe é provedora e protetora, e, para além disso, em uma certa construção simbólica (que não pode ser generalizada a toda a periferia, mas que certamente é bastante presente), é a única mulher em que se pode confiar. Em minha tese de doutorado, realizei uma discussão acerca da obra do grupo de rap Racionais MCs, tratando-a como a narrativa legitimada do que seja viver na periferia. Homens do seu tempo e do seu espaço, e mesmo sendo verdadeiros intelectuais orgânicos da periferia (e a quem o pensamento periférico deve muito), os rompantes de machismo nas letras dos Racionais são evidentes. Em livro sobre o assunto, intitulado A Frátria Órfã, a psicanalista Maria Rita Kehl aborda a questão. Baseada na obra dos Racionais, a psicanalista afirma que as mulheres são uma ameaça à irmandade masculina, jogando homens contra homens, irmãos contra irmãos. Neste quadro, somente a figura feminina representada pela mãe se salvaria, pois esta (observada a partir de uma representação que a cataloga como assexuada) protegeria a todos. No entanto, como diz o título do livro, muitas vezes a frátria está órfã, sem pai, sem mãe, ou, e aqui sou eu quem escrevo, sem um discurso orientador de suas práticas e de suas perspectivas políticas, o que também seria uma espécie de orfandade.
Machismo popular e machismo burguês
Nesta rede de irmandade e proteção masculina, visível em alguns espaços periféricos, assim como as mulheres podem ser uma ameaça, a orientação sexual não hegemônica também o é. Desse modo, a homossexualidade masculina tem dificuldade de se expor em um ambiente onde a virilidade é quase sempre um valor. A homossexualidade feminina tampouco é bem vista. Ser um homem sensível, porém heterossexual, também é escapar do normativo.
Das muitas diferenças entre formações sociais mais comunitárias e formações sociais mais individualistas, está a eterna dialética entre a liberdade e a segurança. Em grandes traços, em bairros periféricos, instituições como família, vizinhança e redes de solidariedade fazem-se indispensáveis para a sobrevivência material dos indivíduos. Neste ambiente de inescapável necessidade e dependência, as pessoas se ajudam mais e, consequentemente, o controle é maior. Certamente, este controle incide sobre as economias afetivas, e fundamentalmente sobre as mulheres. No polo oposto (entendendo que existem variados matizes entre um polo e outro), o individualismo burguês, baseado na possibilidade da auto-suficiência material, tende a prescindir da ajuda mútua. Neste ambiente, diminuem-se as necessidades de redes de solidariedade e de autoproteção, e, de certo modo, usufrui-se com mais autonomia de liberdade de escolha e privacidade no âmbito afetivo, ao menos nos setores mais progressistas da burguesia. Cabe ressaltar, no entanto, que o mundo de modos e mediações propalado pela burguesia tende muitas vezes a sutilizar seu machismo, enquanto o machismo dos bairros populares é mais escancarado.
Ainda assim, neste ponto do texto gostaria de fazer uma inflexão, para não reproduzirmos o argumento de que o machismo cavernícola é uma exclusividade periférica. Certa vez, ao assistir uma belíssima obra teatral que denunciava a violência contra as mulheres e o machismo, perguntei a diretora por que todas as canções utilizadas como exemplo eram sambas. A diretora, cabeça pensante da classe teatral progressista paulistana, não soube responder. Inteligente que é, possivelmente tenha apenas se deixado levar pelo senso comum, que facilmente busca o samba, o rap e o funk na prateleira da enunciação do criticável, como se estes gêneros musicais fossem os únicos a serem machistas (não à toa são gêneros populares). Pergunto: acaso o machismo não está presente nas obras canônicas que emolduraram o pensamento burguês das sociedades ocidentais contemporâneas? O machismo não está nos libretos das óperas? O machismo não está presente na Bossa Nova?
Pergunto: a rede de proteção e irmandade entre homens (todos pertencentes à elite econômica brasileira) não teria se expressado nos discursos asquerosos dos congressistas dos partidos de direita, no dia da votação do impeachment de uma mulher que representa uma ameaça: Dilma Rousseff? O fato da presidente ser mulher não provocou uma ferocidade muito maior no discursos enunciados por políticos, por empresários e pela mídia burguesa? Se fosse um homem o alvo de ataques (Fernando Collor, por exemplo), preponderaria o espetáculo sexista que temos presenciado? Era ou não machista a ironia da frase “tchau querida”? Foi impressão, ou todas as vezes que uma deputada falava ao microfone, os deputados presentes expressavam desdém e escárnio? O que dizer da homofobia contra Jean Willys?
A opressão sobre as mulheres, o machismo, o patriarcalismo (assim como o racismo) são processos sociais anteriores ao capitalismo. Todavia, coadunam-se a este modo de produção, que se expressa na divisão da sociedade em classes sociais e em uma marcada divisão social do trabalho. Desse modo, não vamos esperar a revolução socialista para combater o machismo, o racismo e seus correlatos. Há muito a se fazer. Todos os combates se entrelaçam e se realizam desde agora, contra formações sociais que silenciam, oprimem, exploram e reprimem a classe trabalhadora, as negras e negros, as mulheres, os periféricos e as periféricas, os homossexuais e as homossexuais. Bebemos na fonte de lutadoras e lutadores que empreenderam esta batalha no passado e semeamos estas experiências às gerações vindouras. E que no hoje, no aqui e no agora das relações concretas, mulheres periféricas e homens periféricos sejam livres para usufruírem de suas orientações e de suas escolhas sobre como querem viver suas vidas sexuais, afetivas e amorosas.
PS: Não poderia terminar este texto sem falar de Luana Barbosa, preta, lésbica, periférica, assassinada pela polícia porque se recusou a ser revistada por homens em uma batida policial. Periferia segue sangrando. Não nos calaremos!!!
Ilustrações: Thiago Fonseca
- O nome completo da tese é: “A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo”. Foi defendida no Departamento de Sociologia da USP, sob orientação da Professora Vera da Silva Telles e está disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-18062013-095304/fr.php.
- Cabe aqui um puxão de orelha. Certa vez, em um movimento social, adverti que uma reunião a ser realizada no centro de São Paulo, começando às 20 horas, excluía de partida as mulheres periféricas de participar. Essas mulheres não iriam sair às 23 hs do centro para chegar a 01 da manhã em suas casas. Com muita discussão, conseguimos convencer a turma pequeno-burguesa (que já mora no centro), que o pressuposto da participação política de todos e todas passava também pelo horário de começo e término da reunião. Afinal, lutamos por democracia não é!!!? Finda a discussão, a reunião seria (e continua sendo), das 18 às 21 hs.
- Apesar da multifatorialidade das causas, é possível observar como situações sociais geram doenças psíquicas. Minha infância pobre me obrigou a viver na casa de meu avô, dado que minha mãe não tinha condições de pagar aluguel. Na casa do meu avô vivia uma tia com “transtornos mentais”, diagnosticada como esquizofrênica. Segundo relatos familiares, minha tia desenvolveu sua esquizofrenia quando tinha ao redor de vinte anos. Corria mais ou menos o ano de 1970. Minha tia era bonita e começou a namorar. Meu avô, “macho pra encardir”, como se autodenominava, era bruto e alcoólatra. Incidiu na relação da minha tia proibindo o incipiente namoro. Minha tia entrou em depressão e não voltou mais. Somada a tragédia da repressão e do machismo do avô, estavam as condições sociais de extrema pobreza daquela família oriunda do nordeste brasileiro e moradora de um longínquo bairro da zona leste. Quando realizei militância política em favelas como a Real Parque e a Paraisópolis, entre os anos 2004 e 2010, sempre notei como nas favelas existem mulheres com doenças “psíquicas ou emocionais”. Sem possibilidades financeiras de buscarem um “tratamento” ou de se fazerem visíveis, perambulam por vielas como “as loucas da favela”. Os casos são muitos, e a discussão invisibilizada. O peso do mundo que recai sobre os ombros das mulheres negras e pobres é por vezes um fardo insuportável cujas únicas fugas possíveis são a loucura, a depressão ou o alcoolismo.
- Dentre vários que abordam o assunto, citarei aqui três documentários que participei e que tratam da relação entre mulheres e pobreza. Em 2004 foi lançado Cinco Mulheres de Paraisópolis dirigido por Cláudia Mesquita e no qual participei como assistente. Disponível em https://filmow.com/5-mulheres-de-paraisopolis-t56899. Em 2007 foi lançado Capacetes Coloridos. O documentário traça um paralelo entre a construção da USP Leste e a de um mutirão autogerido no bairro periférico de Cidade Tiradentes, com ênfase no papel das mulheres trabalhadoras mutirantes. O documentário foi dirigido e produzido por Paula Constante. Nele participei da elaboração da pesquisa e do roteiro, além de ser o responsável pela trilha sonora. Disponível em http://www.capacetescoloridos.net/. Em 2010 foi lançado Moro na Tiradentes, dirigido por Henri Gervaiseau e Claudia Mesquita, e baseado em uma pesquisa sociológica por mim realizada. Disponível em http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/divercidade/numero16/9.html.