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Feminismo amazônico
Bate-papo com o coletivo Vacas Profanas. Por Paloma Franca Amorim
Publicado em 14/06/2015
O coletivo Vacas Profanas nasceu a partir de um encontro de mulheres amazônidas dispostas a repensar as formas de atuação política do feminismo na região. Os encontros começaram a ocorrer em 2013 e ao longo desses dois anos foi conformado um coletivo feminista ativo, em rede de solidariedade e apoio político às mulheres (principalmente) da região norte do país.
Para apresentar um pouco das ações das companheiras do Vaca Profanas propus um bate-papo virtual amoroso com algumas integrantes que muito solicitamente lançaram-se nas perguntas para refletirmos juntas o que significa ser uma mulher feminista da Amazônia, região periférica do país. O que significa ser uma Vaca Profana em meio a tantos latifúndios, tanto desmatamento, tantas represas e, por outro lado, tanta terra, tanto rio, tantas lutas e tantas lendas.
Luana Weyl nos diz que conheceu o feminismo na universidade e foi bastante transformador no âmbito pessoal na medida em que ela sempre se percebeu como uma menina “muito masculina, não gostava das coisas que eram associadas às mulheres ” (à esfera doméstica). Segundo Luana, o feminismo fez com que ela pudesse resgatar o seu “lado feminino”, não aquele sistematizado pelas leis heteropatriarcais, mas aquele que anuncia seus valores na própria experiência de si:
“O feminismo foi o que me fez resgatar o meu lado ‘feminino’, digamos assim, ao contrário do que se pensa, que quando viramos feministas viramos mulheres-macho. O feminismo foi que me fez mais menina… hehe. Acho que menina de uma forma diferente também do que o machismo quer/espera/induz porque é o resgate/a construção de uma feminilidade com um fim em si mesma, e não com a finalidade de agradar o macho… Acredito ser este o motivo da perseguição que o movimento sofre a nível midiático e tals.”
Já Luah Sampaio, outra integrante do coletivo Vacas Profanas, apresenta sua vivência com o feminismo a partir do período em que foi comunicadora e articuladora cultural do Núcleo de Comunicação do GEMPAC – Grupo de Mulheres Prostitutas do Pará, entre os anos de 2011 e 2014.
“Ali eu comecei a sentir de fato o que me imprensava e a todas nós: essa cultura patriarcal machista. Em comunhão com isso, sempre me instiguei na luta desta Amazona (a Amazônia), icamiaba guerreira e seus povos – contra todo o horror e desrespeito que deus ‘money’ intensifica sistematicamente contra as raízes e as teias.”
Minha primeira pergunta para as Vacas foi a respeito das ações do coletivo nas ruas da cidade de Belém, posto que o coletivo tem uma relação muito forte com os espaços públicos da cidade. Indago às mulheres como é percebido esse diálogo entre a teoria feminista tradicional – que muitas vezes não se relaciona especificamente com os contextos diversificados da sociedade brasileira – e a prática de uma cultura feminista em Belém e na Amazônia.
Luana nos diz: “A teoria feminista é muito ampla, né? Mas, bem, eu tô lendo Simone de Beauvoir agora e ela descreve mitos de diversas culturas sobre a “mulher”. Fazendo uma correlação simples e superficial, eu acho que as Vacas tão numa linha muito boa de disputar os significados simbólicos do feminino, ressignificando mitos, o que me interessa muito. Por que será que não existem vacas-bumbá? Há muitas teorias, mas agora estamos vivendo na prática essa história!”
Já Luah nos fala sobre o poder de nossos ritos e símbolos amazônicos marcadores de nossa cultura regional: “Acredito na força desse rio, desse mito-verdade, coisa além, assim como o sinto, no corpo, como a reação feminista (reação do corpo) mesma força que se acha na rua, nas muié dessa cidade, que são muitas e diferentes e fortes. Prática-teoria andante! Sim, são incrivelmente importantes as horas a fio lendo, falando, trocando, no grupo emcazacomazamiga, nos espaços de legitimação da universidade (por também serem espaços de trocas). Mas, no momento sinto a potência pulsante de um cortejo com música, som e grito! Acho que praticar feminismo é buscar esses laços de afeto, horizontais e tradicionais, como método, como estratégia de luta e combate, que sinto que tem outra velocidade, outro som e cor.”
Pergunto então se a mulher amazônica é diferente das outras mulheres e de que forma o feminismo generalizante do sudeste, dos Estados Unidos e da Europa toca as questões das nortistas, e em que medida fica claro que as análises teóricas tradicionais não foram endereçadas à mulher amazônida.
Luana reflete: “Acho que o discurso generalizante falha em achar que tudo caminha para um mesmo sentido e então avalia as mulheres da Amazônia como ainda exploradas, mistificadas e domesticadas, como se estivessem no princípio de uma organização… O que eu acho é que aqui em cima a coisa é forte demais. Aqui tá a floresta, aqui tá a trincheira real… Lá no sudeste chega a Amazônia vendida, explorada, chegam os nossos pedaços, então não tem mais o que disputar. Pra lá, o capitalismo leva seus troféus que aqui também ele exibe com as mineradoras e Belomonte, mas aqui ele ainda está explorando. Pra lá já tão “preservando” ou na verdade, explorando com o turismo que nada mais é do que o consumo do espaço e gera uma série de outras questões-problemas, mas enfim, o material a ser trabalhado para gerar valor/lucro está aqui. Pra lá parece que já tiraram tudo que tinha pra tirar: lá é morto, é museu, pois só sobraram bolsões florestais, enquanto aqui ainda tem gente no mato, muita gente sendo retirada, muita gente tentando voltar, então a briga aqui é mais feia. Aqui tem muita tortura, já vivemos uma ditadura velada, as pessoas são perseguidas, são assassinadas e os responsáveis ficam impunes, então é muito mais fácil matar aqui. Talvez por isso acham que as coisas por aqui tão começando, os movimentos se consolidando e que a mulher amazônida ainda tá começando a se organizar, a se ressignificar. Quando, na real, se ainda estão vivas e pulsantes é sinônimo de muita luta e resistência que o feminismo do sudeste, o feminismo urbano, nem imagina… E por isso não compreende. São as mulheres que são a natureza nesse universo simbólico, então as mulheres amazônidas são a natureza que ainda resiste, são as florestas. Sob esse ponto de vista, o feminismo deveria reconhecer as feministas amazônidas, que talvez prefiram ser chamadas de icamiabas, de vacas, de índias, de guerreiras, de feiticeiras, de curandeiras, e são essas mulheres que têm muito mais a ensinar pra todas nós.”
Inaê Nascimento também deu a sua palavra. Criada em Macapá, atualmente mora em Belém do Pará e vive no trânsito entre as duas cidades.
“Sou a irmã mais velha de três meninas, mãe de uma gata, sou oceanógrafa (fiz mestrado e tudo, mas desisti da vida acadêmica temporariamente rs), integrante de um grupo de circo da cidade chamado Projeto Vertigem. Vegetariana, estudante por conta própria de astrologia e tarô, inclusive sou escorpiana, sou amazônida e uma Vaca.”
Inaê se juntou com as Vacas no primeiro cortejo organizado pelo coletivo. Essa é uma ação direta nas ruas do centro de Belém que redesenha um rito tradicional das festas juninas no norte e nordeste do país: o boi-bumbá.
A história do boi-bumbá segue mais ou menos a mesma linha guia nas diversas regiões em que é encenada: um rico fazendeiro possui um boi muito bonito que sabe dançar. Um trabalhador da fazenda rouba o boi para satisfazer sua mulher que está grávida e sente uma forte vontade de comer a língua do boi. O fazendeiro manda seus empregados procurarem o boi e quando o encontra ele está doente. Os pajés curam a doença do boi e descobrem a real intenção do trabalhador, o fazendeiro o perdoa e celebra a saúde do boi com uma grande festividade.
Esse seria o mito originário do boi-bumbá certamente transformado no decorrer dos séculos uma vez que a relação entre fazendeiro e empregado é apresentada de modo maniqueísta e tendencioso no qual o fazendeiro é o verdadeiro salvador do boi (essa perspectiva contradiz as origens do próprio rito que surgiu no século XVIII como uma forma de crítica social à condição social da população negra e indígena).
O projeto das Vacas nomeado Cordão Vacas Profanas Flor de Mururé ressignifica o mito do boi-bumbá a partir da desconstrução de seus ritos fundamentais. No Flor de Mururé o protagonismo é das mulheres enquanto agentes da manifestação popular e enquanto personagens atuantes na própria ficção do boi, ou melhor, da vaca-bumbá.
Inaê compreende que sua relação com a família já apontava uma possibilidade de embate sobre o machismo, mas foi em 2012 no movimento Ocupa Belém que o feminismo, junto ao vegetarianismo e as relações horizontais, começou a integrar de forma mais viva o seu cotidiano.
“ (…)No final das contas acredito ser um processo de revolução pessoal, interna, espiritual, política e cultural que eu passei e tô passando, e quando eu olho à minha volta reconheço muitas pessoas no mesmo processo, principalmente mulheres. Aos pouquinhos esse processo vai reverberando, e atingindo outras pessoas e contextos.
É engraçado a tua entrevista chegar nessa hora, pois é algo que tem me ocorrido quando penso ou leio sobre ‘feminismos’. Saca todas essas questões de radfem’s, feminismo negro, feminismo trans, branco etc? Quando eu olho pra Amazônia eu entendo que ela é a mulher negra, índia, pobre no Brasil, assim como sul-sudeste seria o homem branco de classe média pra cima. Não estou ignorando a existência de mulheres negras, índias e pobres das outras regiões do Brasil. É uma analogia. Quando a gente compara grupos sociais distintos onde um dos grupos tem mais privilégios que outro, onde um dos grupos é marginalizado, onde as necessidades entre esses grupos são distintas por conta dessa desigualdade de privilégios, com certeza a Amazônia está para o Sudeste, por exemplo, como a mulher está para o homem, a mulher negra está para a branca, a trans está para cis, a pobre está para rica, e assim por diante. A gente saca isso quando vê os editais culturais por exemplo, que muitas vezes são inviáveis pra realidade daqui, ou quando sai o resultado e 90% dos premiados estão no sul e sudeste, e na sua maioria estão no Rio e São Paulo. E essa realidade se estende a todas a políticas públicas aplicadas à região. As hidrelétricas, as mineradoras, o agronegócio são verdadeiros estupradores da Amazônia, e podemos levar isso ao pé da letra inclusive, quando essas empresas abarrotam de homens uma cidade sem infraestrutura nenhuma, aumentando a prostituição, prostituição infantil e a violência. Enfim, quero dizer que sim, o feminismo amazônida tem necessidades diferentes que o feminismo no resto do Brasil não engloba. As mulheres daqui precisam lidar com distâncias enormes, isolamentos por rio ou por floresta, com pouca ou nenhuma infraestrutura como hospitais, escolas, creches, muitas à mercê de conflitos de terra e da ditadura dos senhores do agronegócio e empreiteiras. As que vivem nos centros urbanos não estão em condições assim tão diferentes.
Ainda que as Vacas Profanas daqui atuem na capital mais privilegiada da Amazônia (Belém), ainda assim, lidamos com uma outra realidade ambiental, política e cultural. Temos que lidar com muita água!
A Amazônia e o feminino têm muitas coisas em comum, a meu ver. Ambos representam uma natureza/força completamente ameaçadora para o padrão patriarcal-cartesiano-capitalista presente, portanto elas devem ser marginalizadas, oprimidas, domadas a todo custo por essa lógica opressora. A Amazônia pra mim é uma grande representação do feminino. De forma que acredito mesmo que ser feminista aqui precisa estar diretamente relacionado com a luta contra barragens, contra o desmatamento, no resgate do conhecimento das ervas medicinais, na busca por tecnologias e políticas palpáveis pra nossa realidade ambiental. Acredito mesmo que a revolução dessa era parte do feminismo, e na minha concepção o feminismo e a ecologia partilham da mesma lógica, nesse sentido a Amazônia tem muito a contribuir nessa revolução.”
Luana, Luah, Tainá, assim como Camila, Bianca, Mariah, Aninha, Luizinha, Tempo Indefinido, Bufalla do Marajó, Duda Touro Bandoleiro, Victoria Rapsodia, Sendeira da Quebrada, Flávia, Twig, Clarisse, Karllana, Yasmin, Thainá, Maria, Elaine, Dandara, Luciana, Monique, Nanan, Adhara, Beth, Natália, Clara, Antonia, Érika, Janaína, Rebecca, Mariana, Michele, Tatiana e as demais Vacas – guerreiras – Profanas (que são tantas e cujos nomes eu infelizmente não pude lembrar inteiramente) são parte dessas mulheres da Amazônia que todos os dias lutam pela própria sobrevivência e pela transformação desse contexto social massacrado por normas políticas que, a todo custo, tentam domesticar a cultura indígena, negra, cabocla, para manter o progresso capitalista, heteronormativo, sexista, racista dilacerador da história dos povos originários de nosso país.
Obrigada companheiras Vacas por essa conversa e pela inspiração de todo dia!
Ilustração: Caio Vítor