Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

masculinidades

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Carência de preto

Ser são implica foder todo mundo? Por Fábio Emecê

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Difícil transitar por um espaço e se demonstrar cansado diante do tato de saber que contribuo para uma opressão milenar. E durante muito tempo gostei de estar no local de privilégio, sabendo que ser questionado diante do meu papel era quase um sacrilégio.

Manter-se ereto. Corpo ereto, músculos tesos, pau duro e força, muita força, muita força mesmo. Quem não quer ser reconhecido? Quem não quer ser cuidado? Quem não quer mandar? Deve-se mostrar do que se é capaz, deve-se mostrar que não se retrocede jamais. Transpira, aspira, goza e depois vomita. Topo, macho. Topo!

Ops! O topo é confortável, o que acarreta, nem tanto. Imagina-se um escravo reprodutor no auge de sua forma, extenuado pelo seu trabalho e pelo destino dos seus rebentos e um outro que pensa não ter tido a mesma sorte, ainda dá aquele esporro por achar um absurdo o reprodutor estar extenuado.

Estar extenuado por ter privilégio não é exatamente um lugar-comum. Usar o pau pra mijar e somente pra mijar é no mínimo estranho, pra não dizer loucura. Ser são implica foder todo mundo? Homem preto que fode todo mundo, apenas isso é ser são?

O que esse homem preto pode/deve ser?

O corpo-alvo é o corpo carregado de signos comportamentais prévios, conceituações que não são comprovadas de fato, mas funcionam como operadoras de sentido. Como se soubéssemos exatamente o que aquele corpo vai fazer e falar diante de determinada situação. E aí criam-se estratégias tanto para potencializar quanto para podar os comportamentos prévios.

A bala é uma poda. Fazer acreditar que a ereção é o caminho é potencialização. Todos, face da opressão. Opressão que se torna tragédia particular. Opressão que se torna tragédia para todo o mundo.

O homem preto enquanto potência é um posicionamento de conforto, mesmo com o corpo em sua função normativa funcionando em sua plenitude. Uma plenitude que traz privilégios e que talvez não valha a pena combater. Não vale a pena deixar o conforto em busca de uma ressignificação enquanto homem preto?

E aí bater na hipertrofia, na heterossexualização, é um caminho viável, mas bater para ser exatamente o quê? O que esse homem preto pode/deve ser? O que é esse corpo preto combatendo a opressão?

Repensar relações, olhares, disposições. Diante da militância, da afetividade, da paternidade, da mulher preta. Um homem preto que entende o apontamento histórico subalterno e sua limitação diante do que é a sua força e o que é sua intelectualidade. A partir disso, entender que justamente o rompimento de sua condição imposta é a horizontalidade com os seus pares.

Entender a dor, curar a ferida

A questão afetiva tão crônica em que o gozo vira o produto final, sem levar em consideração a parceira e sua vulnerabilidade, tanto no trato como no consequente abandono. Reproduzir isso ad aeternum, na sua condição trágica de reprodutor e todos seus imperativos de submissão da mulher preta aos seus caprichos, como se sua condição, imposição branca heteronormativa, fosse a justificativa máxima para continuar assim, desse jeito, sem pôr, nem tirar.

E o combate a esse tipo de comportamento é justamente entender a mulher preta como par, como alguém com quem, ombro a ombro, atravessa-se o rio de mãos dadas, com inúmeros perigos, inúmeros, mas sua capacidade de enfrentamento está justamente em ter a mulher preta ao seu lado.

Homem preto hétero é foda! É foda perceber o quanto se é açoitado e também perceber que se manipula o açoite de maneira eficaz. Recebe uma dor particular e atua numa dor coletiva. Repensar o imaginário e não se aproveitar do mesmo, eis a questão.

Entender a dor, curar a ferida. Detonar o chicote, para não bater no seu corpo e não usar no corpo: da preta, do filho, da heteronorma, do mundo.

Temos que viver! Como? Sem opressão já dá pra se valer.

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Fábio Emecê é escritor, poeta, rapper do coletivo Faixa de Gazah, brincante no Griot – Pesquisa, Difusão, Memória e Tradição em Cultura Popular Brasileira, professor de língua portuguesa e de literatura.

Ilustração: Bianca Muto.

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