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FARÓIS ACESOS │ Falta de noção líquida: imagina na Copa
Na modernidade líquida não há mais centro, é verdade. A rizomática falta de noção de vocês (li Deleuze, scusi), no entanto, de tão sólida, é incapaz de virar um peido (daqueles BEM sinceros) e se desmanchar no ar. Por Neusa Sueli
A Copa chegou, a bunda do Hulk apareceu (<3 <3 <3), o mundo não acabou, mas a falta de noção da população só se expande, difusamente e a cada instante. Ela está nos meios de comunicação, nos livros, nos sutiãs, nos discursos, nas ceroulas, nos iPads, na universidade, nas casas de chá, nas igrejas, nos cinemões. Enfim, nada se salva e nem Jesus salva (vê se ele quer voltar de novo?). A fé pode até mover montanhas, mas é incapaz de mover a falta de noção de vocês. Copia só:
Luciano Huck: se já era sem noção antes, imagina na Copa…
No último dia 24 de junho, o apresentador, salesman, comunicador, auxiliar de Deus e pensador (risos) tupiniquim Luciano Huck, acordou, se olhou no espelho e resolveu que, naquele dia, ele iria fazer diferença.
Esse pai de família brasileiro (#commuitoorgulho #commuitoamor #semnenhumanoção) – homem de valor (patrocinado por vários bancos), engajado (com a imbecilidade humana) e generoso (distribui falta de bom senso gratuitamente pela TV e internet) – decidiu ajudar a população feminina do Rio de Janeiro. Criou um novo quadro para seu programa e divulgou em suas redes antissociais: em sua página do Facebook e do Twitter, Huck se propôs a arrumar um príncipe encantado estrangeiro (sic) durante a Copa, e pedia para que as meninas cariocas mandassem fotos suas para um determinado e-mail.
Sim, isso mesmo: ARRUMAR. PRÍNCIPE. ENCANTADO. ESTRANGEIRO.
O cosmos vocês conseguem elevar, MAS NOÇÃO QUE É BOM NADA, NÉ? Está achando que estou aqui plantando loucura no campo do seu sentimento? Take a look:
Quando me mostraram, eu pensei: “Neusa, você precisa trocar a marca do gin e parar de beber pinga por outras vias (risos abafados), porque isso está lhe causando alucinações”. O problema é que eu nem tinha bebido no dia anterior, sabe.
Acho desnecessário dizer que eu fiquei FURIOSA com essa merda de notícia, né? Imagino que a Central de Atendimento carioca da Globo deve receber PENCAS de telefonemas, cartas e e-mails de mulheres implorando para arrumar um namorado estrangeiro.
Não vou falar da forma como as meninas brasileiras são ignobilmente comercializadas pela TV, pelos jornais, pela publicidade (carros, cervejas). Também não vou falar dessa coisa endêmica que é o fato de o mundo achar que a imagem da mulher é algo vendável ou que alavanca vendas, que dá Ibope. Não vou, porque senão começo a chorar (de tristeza, raiva, ódio – nessa ordem).
Bem que o pessoal dizia que se já estava ruim antes, imagina na Copa. PUTA QUE PARIU HUMANIDADE. Como é que uma pessoa que trabalha numa emissora que já teve até novela falando de tráfico de mulheres tem coragem de propor um quadro desses, gente?
Primeiro: por que é que um homem se acha no direito de “ajudar” uma mulher a encontrar namorado? Isso me lembra o tempo em que nós éramos consideradas meras propriedades pelos homens, que nos “arrumavam” (até o termo é o mesmo) casamentos. Pensem bem: quem é que iria lucrar com merchandising enquanto nossas meninas seriam “oferecidas” aos ditos “gringos”?
Segundo: qual o problema de uma mulher não ter um namorado? Quem disse que ela precisa? E se ela quiser partir para a grande área e marcar gol sem estar impedida? Não pode? Não pode o MEU CU! Quer dizer, ele pode sim (risos marotos).
Terceiro: no caso em que uma amapô queira ficar impedida com um bróder (#vivaaliberdade), por que é que o boy precisa ser estrangeiro? O que é que um estrangeiro tem assim de TÃO ESPECIAL que merece ser destacado no seu anúncio (tô falando que é venda…)?
Confesso que não entendi direito a lógica por trás da associação arrumar > príncipe > encantado > estrangeiro. Tá, mentira: entendi sim. É que prefiro fazer a Kátia Cega, senão eu vou (de táxi) pessoalmente até a Lagoa Rodrigo de Freitas sentar a mão na cara dessa múmia!
Um amigo me falou de um provérbio judaico que não sai da minha cabeça quando eu penso em você, Luciano: “que caiam todos os seus dentes, com exceção de um, que doerá terrivelmente”. É apenas isso que eu estou mentalizando para você.
Vá “arrumar” essa falta de noção, seu zé ruela! Vou te enfiar num caldeirão cheio de bosta, cozinhar bem, embalar e vender. Mas não se preocupe: vai ter etiqueta tipo exportação, você que curte tanto o estrangeiro.
Faz um favor? NÃO AJUDA LUCIANO.
Ai gente, honestamente? #maishulk,menoshuck. Só digo isso.
Estelita: “Não ao Novo Recife, sim ao NOSSO RECIFE”
No dia 17 de junho, no Cais José Estelita, em Recife, a [insira aqui um sinônimo de barbárie] Polícia Militar do estado de Pernambuco, fortemente armada (com tropa de choque, cavalaria e canil!) expulsou violentamente um grupo de pessoas que há cerca de um mês acampava ali com o objetivo de impedir o avanço do projeto “Novo Recife”. O projeto prevê, entre outras atrocidades, a construção de 12 prédios imensos ao longo do cais, que fica na área central da cidade.
Eu leio essas coisas e penso: queria tanto que a noção no mundo ressuscitasse junto com o volume morto do Sistema Cantareira… Dá vontade de pegar uma vuvuzela, enfiar no rabo de vocês e soprar com tanta, mas tanta força, que o bom senso vai voltar à força para seus cérebros! SUAS ANTAS!
Movimentos de ocupação lutam há anos contra esse modelo de desenvolvimento urbano que parece imperar em todas as cidades brasileiras: destrói-se todo o patrimônio arquitetônico e cultural da cidade e constrói-se por cima prédios imensos (tem gente que acha que isso são falos gigantescos espalhados pela cidade, eu só acho que é falta de noção concentrada, mesmo).
O pessoal dos coletivos que ocuparam o local (são vários grupos) deixa claro em sua página no Facebook o motivo de sua luta: “O Projeto Novo Recife (…) é o símbolo de um modelo de cidade excludente, segregadora e não participativa. As irregularidades e ilegalidades presentes em todo o processo de elaboração e do projeto apenas confirmam a sua nocividade para a construção de uma cidade democrática e humana. Ele representa uma perda de oportunidades para o pleno desenvolvimento de uma área tão importante para cidade do Recife como o Cais José Estelita, pelo seu potencial histórico, geográfico e ambiental.”
Elxs são superorganizadxs, e no Tumblr delxs é possível ter acesso a todas as atividades e projetos que são promovidos pelos coletivos que ali estão, inclusive uma oficina que trabalha a questão dos corpos, sexualidade e outros assuntos tabus (que, aliás é babado, confusão e tapa na cara – tô batendo palmas [risos tímidos] para elxs sem parar até agora. Desculpem, sou safada.)
Queridxs: todo o meu apoio! Vocês são tão incríveis que, depois de Estelita, quero que venham me ocupar, tá? Já estou aqui limpando o meio de campo, dando uma aparada no gramado e deixando tudo pronto para que vocês possam entrar em campo. Venham armar suas barracas e acampar por todo canto. VOU LIBERAR GERAL, BEIJOS (sou intensa, face it).
Rose Marie Muraro: “Só porque eu vivi no impossível é que fiz tudo o que fiz”
Em 21 de junho de 2014, aos 83 anos, nos deixava a escritora, intelectual e uma das maiores feministas brasileiras, Rose Marie Muraro.
De família abastada, ela decidiu abrir mão de tudo para virar militante, ainda nos anos 40. Autora de quase 50 livros, e introdutora de debates importantes sobre a questão do gênero no Brasil, Muraro foi uma das pioneiras no estudo da sexualidade das mulheres no país.
“Acho que a política do corpo tem uma importância revolucionária, muito maior do que qualquer reforma agrária ou luta pela constituinte, porque é a partir daí, de dentro do ser humano, que ele é incapaz de resistir”, diz ela no documentário Memórias de uma mulher impossível (2009), de Márcia Derraik, que reconstitui a trajetória desse querido corpo celeste.
Sofrendo de câncer de medula há quase uma década e praticamente cega desde que nascera, Rose Marie (que faleceu vítima de problemas respiratórios) soube muito bem enxergar e analisar o mundo e a sociedade que a circundava. Dizem que, nos astros, o calor é irradiado desde o interior, e Rose Marie parecia saber bem disso: “Eu sou cega, não posso ler e escrever… então, tenho que voltar para dentro. Ou eu me volto para dentro, ou eu morro”.
Infelizmente, mesmo os grandes seres humanos não são eternos, ainda que suas palavras e atitudes continuem irradiando e ecoando por muito tempo. Nós, da Geni, poderíamos passar horas, dias, anos-luz agradecendo por toda a sua colaboração, pela sua luta, por seu trabalho. Mas, ainda assim, não seria suficiente. A convivência com seus escritos, seu percurso, suas palavras nos ajudam, ajudaram e ajudarão a fazer dessas pedras que nos jogam todos os dias, os paralelepípedos por onde caminharemos.
Muito obrigado por toda essa luz, querida amiga.
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Em tempo
As redes sociais criaram uma série de especialistas em tudo: desde bisbilhotar o útero alheio até gente que só sabe criticar produção de azeite nos Bálcãs.
Sei que em época de Copa nosso país vira a pátria de chuteiras, com 150 milhões de técnicos, mas luta social, economia, preconceito (de gênero, orientação sexual, cor) não são uma partida Brasil X Argentina.
Se você leu uma notícia em um jornal, ou leu um tweet de manhã, ou seu amigo do Facebook compartilhou uma notícia, informe-se e assegure-se da fonte (porque algumas pessoas que divulgam informações não o fazem) antes de sair por aí dando uma de Jesus, apregoando a verdade, a justiça e a salvação.
Sinto que as únicas coisas em que estamos realmente nos especializando é em truculência e, sobretudo, ignorância. Deem-se o direito de não saber sobre um assunto, de não emitir uma opinião ou um julgamento. O fato de não termos nada a dizer não nos faz piores ou inferiores. Cada vez mais me convenço de que a única maneira de impedir essa avalanche de discursos que as redes sociais se tornaram é ficar em silêncio.
Outra coisa: ora o “povo brasileiro” é burro e “não sabe votar”; ora é “gente de valor”, “trabalhadeira” e que dá certo porque não desiste nunca. Vamos combinar que não deve estar sendo fácil para o povo brasileiro, né gente?
Aliás, um apelo: se vocês não conseguirem explicar o que é nem mensurar esse tal “povo brasileiro”, não se refiram a ele como se ele realmente existisse. Cada vez que eu leio isso escrito num comentário ou matéria, percebo o quanto esse tipo de guarda-chuva conceitual é falacioso e usado com os objetivos mais escusos e, o que é mais complicado: aquele que normalmente usa a expressão nunca parece se incluir nesse povo, ficando sempre de fora.
Estamos há mais de 500 anos tentando entender o que é ser brasileiro, mas tem gente que, pasmem, já sabe e já tirou todo mundo do armário.
Ilustração: Cecilia Silveira.