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JURA? | Direito ao nosso corpo

Em que casos o aborto é permitido por lei no Brasil? Mariana Kinjo e Aline Sodré colocam o corpo pra jogo na estreia da nossa coluna jurídica.

Publicado em 13/07/2015

 

Não restam dúvidas de que o aborto é uma questão social urgente no Brasil. Independente de ser contra ou a favor da interrupção de uma gravidez, todos precisam reconhecer que os abortos acontecem e que mulheres – e também homens trans –, principalmente as negras e pobres, morrem diariamente no Brasil na realização de operações clandestinas. O nosso país é negligente em relação às vidas de mulheres como Elizângela ou Jandira.

 

Poderíamos apresentar inúmeras razões para defender a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil, mas isso já foi feito em profundidade por inúmeros grupos feministas. O resultado pode ser encontrado em periódicos de grande circulação ou em dossiês que continuam atuais mesmo depois de 20 anos.

 

Note-se que a nossa luta é tanto para descriminalizar, ou seja, fazer com que o aborto deixe de ser crime, quanto para legalizá-lo, o que significa garanti-lo como direito a ser assegurado por meio de políticas públicas. Na verdade, legalizar inclui descriminalizar, mas em tempos tão sombrios não há perdas na redundância, não é mesmo?

 

 

Uma nova coluna

 

Aproveitando a deixa dessa diferenciação de conceitos jurídicos em relação à luta política pelo direito ao aborto no Brasil, apresentamos uma nova coluna aqui na Geni. A nossa proposta é pegar esses conceitos jurídicos feitos pra complicar as coisas e traduzi-los pro cotidiano.

 

Afinal, não é só porque o acesso à justiça é tão obstaculizado no Brasil que o mundo do direito está longe. Muitas vezes, é a própria dificuldade em conhecer nossos direitos e garantias que nos impede de lutarmos com mais força e segurança. E também, de aproveitarmos pequenas aberturas desse mundo tão hermético pra avançar mais.

 

 

 

Na edição sobre corpo (e nossa estreia!), não poderíamos deixar de falar sobre esta que é uma das mais importantes bandeiras feministas e que foi recentemente aprovado no Uruguai. Seguindo a ideia da coluna, no entanto, buscamos uma abordagem diferente do aborto no Brasil, focando nas exceções à criminalização, as hipóteses de aborto legal.

 

 

À margem do corpo

 

Dirigido pela antropóloga Débora Diniz, o documentário À margem do corpo conta a história de uma mulher, Deuseli, que mesmo vítima de um estupro, é impedida de abortar. É uma trajetória contada por relatos e lembranças, construída por meio daquilo que os moradores de uma cidade no interior de Goiás contam e recontam.

 

 

Não bastassem os sofrimentos da infância, à tragédia da vida de Deuseli somou-se um estupro, pelo qual ela foi culpabilizada. Negra e sozinha, ela sofreu com os efeitos do machismo e do racismo. Seu corpo foi objetificado, sexualizado e violado.

 

Deuseli, nossa anti-heroína, ainda teve negado o direito de fazer aborto. Marcada por uma série de violações, sua história culmina num triste ritual em que ela mata a filha de 11 meses, vítima reflexa e tardia da violência sexual e psicológica ao qual foi submetida.

 

Em 40 minutos, o documentário desafia a moral e o direito brasileiro. É um tapa na nossa cara, que deixa à mostra as piores consequências das nossas desigualdades sociais. Embora haja muito a ser refletido e aprofundado a partir do filme, vamos utilizá-lo, por enquanto, para tratar da questão do aborto em casos de estupro.

 

 

Aborto legal – exceções ao crime de aborto no Brasil

 

É um tanto quanto deprimente e injusto, mas é impossível não pensar no quanto a história de Deuseli teria sido menos desoladora se ela tivesse tido o direito ao aborto legal assegurado. Note que falamos duas vezes no direito ao aborto legal. E falaremos mais, o quanto for preciso.

 

De fato, o aborto ainda é crime no Brasil. Está no Código Penal, nos artigos 124, 125 e 126. É chato falar de lei, mas é bom também criar certa familiaridade, então vai uma explicação rápida do que esses artigos significam. Cada um deles representa um tipo penal, ou seja, uma conduta  considerada crime. As ações ali descritas são passíveis de serem punidas segundo as penas de prisão que as acompanham.

 

Indo mais pra frente, porém, é possível encontrar um artigo que diz:

 

Art. 128. Não se pune aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

 

A regra aqui é clara, felizmente – mas infelizmente pouco difundida e mal aplicada. Mas existem, sim, exceções à proibição do aborto no Brasil: os casos em que a continuidade da gestação implica riscos à vida da gestante e quando a gravidez é resultado de uma violência sexual – o caso da Deuseli e de muitas outras mulheres.

 

Há, ainda, a possibilidade de aborto quando se constata a anencefalia do feto, hipótese admitida a partir de uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal, após oito anos de debates acirrados. Em 2004, por exemplo, houve concessão de liminar pelo ministro relator da ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, espécie de decisão permitiu temporariamente a interrupção da gravidez nessa situação. Meses depois, a liminar foi derrubada. Aqui, vale indicar outro documentário realizado pela Débora Diniz com a colaboração da jornalista Eliane Brum, “Uma História Severina”, que relata a tragédia de uma pernambucana gestante de feto anencéfalo que vê seu aborto impedido devido à mudança na decisão do STF.

 

 

Em resumo, a descriminalização decidida em 2012, que vigora atualmente ainda de maneira muito frágil, está inserida num contexto de atuação progressista do principal órgão do Judiciário brasileiro, junto com a união estável entre pessoas do mesmo sexo. É uma discussão à parte, e que dá muito pano pra manga.

 

Voltando às hipóteses legais, dessas três possibilidades, a mais tranquila é aquela em que a vida da gestante está claramente em risco. Embora não seja um assunto fácil e isento de polêmicas, podemos dizer que costuma ser mais tranquilo o aborto nessas situações – tanto os médicos quanto as instituições de saúde estão razoavelmente preparados e dispostos a realizá-los.

 

Agora, quando se fala nos abortos em caso de estupro, a coisa complica bastante. É só voltarmos pra história da Deuseli e usá-la como mais um exemplo dentre muitos. O primeiro problema é que poucos sabem da possibilidade de realização do aborto nestes casos – o que se divulga amplamente é que o aborto é sempre crime e que só é possível nos casos-limite, em que a gestante pode de fato morrer.

 

Mas, repetimos e reiteramos, isso não é verdade. O aborto em caso de estupro, além de não ser crime, também é um direito, que se extrai da interpretação dos direitos fundamentais – à saúde e à dignidade humana – consagrados na nossa Constituição, principalmente nos arts. 5º e 6º. Afinal, longe de ser apenas uma questão de escolha, o aborto pode ser uma necessidade e uma garantia de saúde física e psicológica da mulher que foi vítima de violência sexual. Ao afirmarmos essa posição, estamos dizendo que o Estado deveria não apenas autorizar mulheres como Deuseli a interromper a gravidez indesejada, mas, ainda, oferecer condições adequadas para que todo o procedimento ocorresse em segurança.

 

Além disso, acompanhando as lutas feministas de denúncia à cultura do estupro, acreditamos que, para que se comprove que a mulher foi vítima de estupro, basta que ela o diga. Nesse tipo de procedimento, é preciso priorizar a saúde e a autonomia da mulher, aceitando a sua palavra e impedindo que ela seja obrigada a comprovar uma situação de violência na qual ela foi vítima e, muitas vezes, única testemunha. Já há um bom tempo que mesmo a grande mídia tem noticiado que a maior parte dos estupros é cometida por pessoas próximas, inclusive parentes.

 

Muitas vezes, a mulher se sente impedida de denunciar o violador e por isso desiste de realizar o aborto, mesmo que o queira. É o caso da Irene, personagem da coluna Esculacho de maio. Mas isso é intolerável, ou, como se diz no juridiquês, é atentatório à dignidade das mulheres. É preciso que o aborto legal seja garantido para toda mulher que se apresente nos serviços de saúde como vítima de violência sexual, sem que ela precise provar o que aconteceu.

 

Além da dificuldade em reconhecer o aborto legal como um direito, e a de tomar a palavra da mulher como suficiente para caracterizar a situação de violência sexual, ainda há um terceiro obstáculo nessa batalha. É a incessante recusa dos profissionais e dos equipamentos de saúde em realizar o aborto, mesmo em caso de estupro, seja pelo estigma e pelo julgamento moral que cerca todo o procedimento, seja pelo medo de posteriormente sofrer uma acusação por crime de aborto.

 

É frustrante, mas necessário e realista reconhecer que o aborto em casos de estupro é uma exceção insuficiente. Enquanto esta situação permanecer como uma exceção ao crime de aborto, vai ser muito difícil concretizá-la como direito das mulheres. O máximo que se pode fazer – sem perder o horizonte da luta pela legalização do aborto, é claro – é combater e contestar os julgamentos alheios sobre os corpos das mulheres e lutar para que se respeite a voz das mulheres nos casos em que elas reportem um abuso sexual.

 

A luta é complexa e contraditória. Esse máximo de luta pelo aborto legal de fato é um mínimo se o vemos em relação à luta pelo direito ao aborto em geral, conforme a escolha das mulheres. No entanto, ele também é importante quando se trata de diminuir o sofrimento cotidianos de mulheres como a Deuseli. Levantadas algumas questões, muitas delas sem respostas efetivamente positivas, talvez seja a hora de olhar para a realidade por um outro lado.

 

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O direito ao aborto legal – o que acontece na prática

 

Não adianta só discutir e apresentar o direito ao aborto legal sem mostrar como ele funciona na prática. Antes de mais nada, é até otimista reconhecer que as discussões apresentadas chegaram ao Ministério da Saúde e culminaram na polêmica Portaria 415, que descrevia, na tabela de procedimentos do SUS, especificações e valores destinados ao custeio dos procedimentos de aborto legal. Só que como nada é fácil nessa história, a Portaria foi revogada menos de uma semana depois de sua entrada em vigor, principalmente por causa do lobby de setores conservadores.

 

Claro que a revogação da Portaria não significa dizer que não seja possível realizar um aborto legal, mas demonstra que os obstáculos existem e são reafirmados a todo momento. Nestes casos de direitos de pessoas vulneráveis, no caso as vítimas de violência sexual, a falta de regulamentação clara geralmente funciona como uma maneira de desprotegê-las ainda mais. O que resta é olhar para outras Portarias do Ministério da Saúde para encontrar caminho para o aborto legal.

 

A Portaria mais significativa aqui é a 1.508, que faz referência às Normas Técnicas de prevenção e tratamento dos agravos resultantes de violência sexual contra mulheres e adolescentes, um importante documento do SUS.  A Portaria e a Norma Técnica declaram como desnecessário o Boletim de Ocorrência, desde que, segundo a Portaria, ele seja substituído por um Termo Circunstanciado feito por dois profissionais de saúde. Esse Termo é uma maneira de recolher o relato da mulher e garantir que o seu relato corresponda à realidade de gravidez – que, basicamente, o tempo da gestação bata com a violência relatada.

 

Tanto o Boletim de Ocorrência – o famoso B.O. e sinônimo de problema – quanto o Termo Circunstanciado se apresentam como barreiras ao direito das mulheres, mas é preciso lidar com a realidade enquanto lutamos para que ela mude. A principal recomendação para mulheres vítimas de violência sexual nesta situação é o registro do B.O. sempre que possível e, claro, a denúncia do agressor.

 

Caso isso não seja possível, por um sem-número de motivos que possam existir, e a mulher deseje abortar mesmo assim, se recomenda que ela busque o equipamento de saúde e tente relatar o acontecido nos moldes do Termo Circunstanciado. Embora bastante complicado, o Termo tem a vantagem de ser conduzido por profissionais da saúde e não por autoridades policiais. Ou seja, supõe-se – e esperamos que a suposição esteja correta – que a equipe médica tenha a saúde da gestante acima de tudo, e principalmente acima da apuração dos fatos com fins investigativos. Há posições, como a do Conselho Regional de Medicina de São Paulo – CREMESP que apontam como suficiente a declaração escrita de consentimento da gestante, já que seria a única condição prevista no art. 128 do Código Penal, mas é difícil escapar, na realidade, de maiores explicações perante a equipe de saúde.

 

Muitas vezes, o desconhecimento sobre quem ou onde procurar por ajuda e orientação também é um enorme empecilho. Na busca pelo aborto legal, existem alguns órgãos que são referência:

 

  • As Delegacias da Mulher: Embora sejam órgãos policiais, são locais especializados em atendimento às mulheres, principalmente vítimas de violência. São os locais mais adequados para registrar os boletins de ocorrência e também para procurar indicação de equipamentos do SUS.

 

  • Hospitais de referência do SUS: Não adianta muito procurar UBS, os famosos postos de saúde. Lá, eles fazem um atendimento mais rotineiro e a realização de aborto legal demanda um serviço mais especializado. O ideal é procurar hospitais de referência, que se não forem amplamente conhecidos, podem ser indicados pelas Delegacias de Mulheres ou mesmo pelas Secretarias de Saúde. No caso de São Paulo, a referência para atendimento de mulheres vítimas de violência é o Hospital Pérola Byington, que fica na região central.

 

  • Núcleos especializados de Defensorias Públicas e Ministérios Públicos Estaduais: normalmente estes órgãos ligados à Justiça possuem núcleos especializados em direitos das mulheres e principalmente em atendimento a vítimas de violência sexual. Parte do trabalho deste núcleos está voltado à orientação sobre os procedimentos básicos a serem tomados, mesmo que fora do âmbito judiciário.

 

 

Ilustração: Aline Sodré

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