Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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NO MEIO | 02: Ascensão

Coluna-ouvido. Esta coluna se dedica a escutar mais gente que vive no meio dos temas da Geni. Aperte os cintos e adentre o avião. Por Luiz Pimentel

Esta coluna se dedica a tentar ouvir mais vozes que foram atravessadas pelos temas da Geni.

Pretendo, em todas as edições da coluna, me aproximar textualmente de alguém, por meio de uma proposição de escrita.

A regra que guia minha proposição para o outro autor da coluna é afetiva. Esse afeto é o corpo da coluna. Escutar e escrever a partir de um movimento afetivo, pois é assim que vejo os corpos dos meus parceiros da revista se moverem, pois é assim que vejo as pessoas ao meu redor lidarem, em seus minúsculos cotidianos, com o que esses temas evocam.

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Um pouco de barulho. Agora turbinas!

Ouvi com alegria o manifesto da Claudia Celeste no número 0 e quero bas-fond desta vez. Daí, chamei o próprio.

Gritinhos e gritinhos com J. Barga – PS: THEBitch!

Na enrascada do teatro (que fizemos/fazemos/faremos juntos), essa pessoa interminável me diz que é possível saborear a vida no labirinto.

Como diria o J. Cage: a vida é abundante. Eu digo que J. Barga é toda essa abundância.

(Ele me mostra que a mistura de gêneros, a brincadeira ou a verdade disso é uma forma de ocupar com muito mais graça o nosso tempo.)

De partida, eu gostaria que ele traduzisse nesta peça (criada junto) toda a força (que eu tanto admiro) de suas mil conexões e delírios dentro desta vidinha de todo dia. Ela me espanta e me dá coragem. O que veio dele, o que propus em cima, o que ele retrucou em algumas idas e vindas malucas só me dá vontade de tirar a roupa e beijar na boca “desculpem, crianças. mato a sede na saliva”.

Vem junto, brincar na subida desta peça-avião que eu propus a ele, ou que ele me propôs.

Máscaras cairão. A gente bota e sai pra rua!

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DRAGON AIR

Jéssica, ocidental, 1,80 metro, 70 quilos, cabelo castanho-claro cheio de laquê, está dentro de uma aeronave da DragonAir, ela fala como se fosse uma dublagem do Discovery Channel. Ela anda como quem desfila, usa Dior e Miu Miu (compradas de segunda mão, pois não pode pagar o preço na loja). Gosta de sobrepor estampas e usar casacos estruturados. O toque de seu smartphone é “wavesounds.mp3”. Ela fala fluentemente inglês e português, ambos com sotaque do interior paulista, mas também sabe um pouco de japonês e francês, com o mesmo sotaque. Ela não é uma modelo.

JÉSSICA

Nesse momento, após ter feito o check-in no guichê da DragonAir e ter despachado 18,7 quilos de bagagem, distribuídos desigualmente em duas malas roxas de zíper dourado, e ter andando 450 metros pelo saguão de embarque em busca do portão 15, o meu portão de acesso, entro em processo de decolagem, estou sentada ao lado de uma jovem menina que não para de falar e de sua amiga, que parece ser surda [pausa] o capitão revela que a permissão para voar foi concedida pela torre de controle [pausa] a aeronave dá seu primeiro arranque [pausa] estamos correndo pela pista, pra quem nos vê de fora somos vitoriosos e ricos, as turbinas giram rapidamente, agora sinto pela vibração nos meus pés que as rodas não tocam mais o chão do aeroporto e, por isso, eu me despeço desta cidade imunda [pequena pausa] “tchau, cidade imunda” [pausa] estou em ascensão diagonal quando tomo um susto [pequena pausa] olho pro lado de fora e vejo uma mulher presa na asa do avião, ela segura a asa da aeronave como quem segura a própria vida, obviamente, mas ela não me parece ser qualquer mulher, ela é uma mulher colonial, se veste elegantemente para os padrões de moda do século 17, ela me olha e, nossa, tenho certeza de que é mesmo uma mulher colonial, desvio o meu olhar, espero a aeronave se estabilizar, chamo então a comissária de bordo e peço uma dose dupla de uísque coreano, “me desculpem, crianças”, mato a minha sede enquanto evito a mulher colonial, que agora parece andar tranquilamente pela asa esquerda, faço uma mesura?

VOZ DO COMANDANTE

En caso de despresurización de la cabina MÁSCARAS CAERÁN automáticamente hacia ustedes, coloque primero la suya y solamente solamente solamente después auxilie a quien esté a su lado.

JÉSSICA

[Prestando atenção na voz do comandante]

No hablo essa merda. Lá vem a comissária de bordo com a máquina do cartão, “Visa ou Mastercard?”. Visa Platinum, mais que Gold, mais que Silver, “Gold Clients Easy Targets”. Preparo minha carteira pra pagar meu uísque coreano, olho para baixo, sinto pequenas vibrações no copo de vidro. Olho para o lado, procuro a mulher colonial novamente, não vejo…

AEROMOÇA COREANA

¿Cómo desea pagar? Tarjeta de crédito o tarjeta de débito?

(pausa)

JÉSSICA

[Como quem está com nojo]

Tarjeta?

O avião sofre um bruto impacto atmosférico. A comissária de bordo coreana é arremessada para o outro lado do corredor. As pessoas gritam. Jéssica grita, mas sua voz ainda parece dublada.

Uma música invade a cena.

Blecaute. Um canhão de luz ilumina Aurélia, a mulher colonial, que adentra o avião e passeia pelos corredores.

AURÉLIA

Estou farta, Jéssica. Me leve daqui, Jéssica. Me arranque as anáguas, Jéssica! Se é o avião que te permite entrar em ascensão, saiba que ascendi socialmente pela herança de Adelaide. Me tornei distinta, ousada, experiente e paguei mil contos de réis por um marido e blá-blá-blá. Resumo de literatura. Minha vida não é literatura, não posso ser monotemática, entenda Jéssica! Sua vida me encanta, Jéssica. Sua vida voa por si e eu quero arrancar assim a minha na sua, tirar tudo do lugar, rir à beça no seu plano de vitória, saca Jéssica? Me sequestre e me faça feliz [pausa curta para deixar cair o lencinho], ou eu te sequestro e faço meu o seu desvario, vagabunda que tu és, Jéssica. Em troca empenho minhas joias, esparramo meu guarda-roupa às portas do Projac – “tchau, cidade imunda” –, troco a função, me amarro e espero as chibatadas. Cavo um quilombo! Vem comigo, querida?

[A amiga surda escuta.]

AURÉLIA continua seu show, pede leite e comida pra tripulação enquanto JÉSSICA fala em Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) com a menina surda, como se estivesse tentando disfarçar a atenção que lhe foi concedida. Ela parece ser simpática com a adolescente e parece também pedir desculpas pelo constrangimento, no entanto, não sabemos ao certo se Jéssica sabe mesmo Libras ou se está improvisando qualquer gesto para não ficar constrangida. Mas de qualquer forma isso não importa, pois a menina conhece apenas a JSL (Japanese Sign Language) e não entendeu porra nenhuma do que Jéssica falou.

Aurélia fica face a face com Jéssica. Baixa suas mãos aflitas. Longa calma. Envolve-a com os braços. Dançam.

AURÉLIA

Vem comigo?

JÉSSICA

Ir pra onde?

AURÉLIA

[Colocando uma máscara em Jéssica e só depois pondo a sua. Baixa a cabeça e olha para as coxas]

Subir.

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