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violência obstétrica

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Parir, como parir ou não parir

Em defesa do protagonismo da mulher no parto. Por Clara Lobo

Publicado em 12/07/2015

 

 

A história do nascimento humano é múltipla e semi-desconhecida. Sabe-se que, em diferentes culturas e em diferentes épocas, estátuas de mulheres parindo mostravam figuras de cócoras ou ajoelhadas. Imagens como essas foram encontradas na Turquia, México, Egito, Grécia, China e Japão. Desde os tempos pré-cristãos, bancos ou poltronas com um buraco no assento eram usados por mulheres para dar à luz. Eram épocas de partos que contavam apenas com a fisiologia do corpo (e, claro, com um tanto de superstição): caso algo estivesse errado, uma mulher poderia facilmente morrer por hemorragia ou, frequentemente, ver o seu bebê morrer durante o processo.

 

No século 17, os irmãos Chamberlein inventaram o fórceps. Para as saídas vaginais difíceis, o fórceps era usado, mas com uma mudança já significativa: a mulher teria de estar deitada de costas, a melhor posição para o manejo desse instrumento. Seguindo a tendência da horizontalização do parto, Luis XIV entrou para a história ao exigir que sua amante desse à luz deitada, de forma que ele pudesse ter uma visão privilegiada do evento. No século XIX, a rainha Vitória foi a primeira mulher a usar clorofórmio durante o parto. Neste momento histórico, para as mulheres nobres muito já havia mudado: o nascimento de sua prole se convertera em ofício médico e evento familiar, e o melhor (para eles) era que elas estivessem quietas e sedadas.

 

Durante o século XIX, na Inglaterra e nos Estados Unidos, iniciou-se uma campanha médica contra as parteiras. Elas eram consideradas ignorantes, acusadas de fazer abortos e de ter má higiene. Diante dos avanços da medicina da época, as parteiras eram nada mais que um retrocesso: totalmente inábeis para lidar com emergências, suas técnicas eram desprovidas de embasamento científico. Para os médicos, a solução do problema era simples: as mulheres ricas deveriam contratar médicos em suas casas; já as mulheres pobres, que não poderiam pagar o valor da visita domiciliar, deveriam dar à luz em hospitais de caridade.

 

Na segunda metade do século XX, o parto hospitalar já era a norma nas cidades. E as mulheres foram sendo objeto de cada vez mais intervenções: ocitocina na veia para acelerar o parto (afinal, quem tem tempo de esperar 14, 16 horas?), rompimento artificial da bolsa de líquido amniótico (afinal, quem tem tempo?, parte 2), anestesias que imobilizavam as pernas (não iriam servir de nada mesmo), episiotomia (o corte na vagina que “impede” a laceração, sendo que o próprio corte já é uma laceração de segundo grau). Para a comodidade de seus médicos, as mulheres eram obrigadas a ficar deitadas, de pernas para cima e com os tornozelos amarrados no apoio de pés.

 

Do intervencionismo médico no parto normal à cesariana de rotina foi um passo: agora já era possível tirar o bebê em duas horas e agendar o nascimento para não coincidir com um feriado. Não era mais necessário lidar com todos os imprevistos que vinham com o ato de parir. A necessidade humana de controle se aliava à necessidade de automação capitalista e ao sistema patriarcal: que as decisões fossem deixadas ao especialista médico, à voz da autoridade, e não à parturiente, que nada sabia e nada poderia exigir.

 

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Para que as mulheres se submetessem a essa cirurgia que corta sete camadas de tecido em seus corpos e as deixa com um pós-operatório dolorido e com pouca mobilidade (além de cerca de 75 pontos nessas camadas), os médicos passaram a mentir sobre os riscos de um parto normal e de uma cirurgia cesariana. Assim, se iniciaram as falsas indicações: circular de cordão, presença de mecônio, placenta baixa (não prévia), líquido amniótico aumentado ou diminuído, diabetes gestacional. Enquanto algumas das indicações têm base na realidade (posicionamento pélvico, por exemplo, pode resultar em um parto normal mais difícil e com mais riscos), outras são pura fabricação (circular de cordão).

 

Para mim, esse quadro, por si só, já caracterizaria violência obstétrica. Violência é uma mulher ser enganada por uma estrutura capitalista-patriarcal que a põe no lugar de coadjuvante e a faz crer que seu corpo é defeituoso e que suas escolhas são errôneas. Que não lhe dá a possibilidade de escolher uma posição para parir, de escolher qual tipo de intervenção ela acha necessária no caso dela, e que desinforma, mente e a amedronta para que ela tema o parto normal e ache que todo parir é arriscado, impossivelmente longo, dolorido, e que fará mal à sua vida sexual. É uma violência que vem da misógina dessujeitização das parturientes, da necessidade de controle sobre elas (o que é a episiotomia senão uma laceração grave controlada?), e da padronização ou rotinização de procedimentos que deveriam ser de exceção.

 

A violência obstétrica, aquela da qual falamos quando uma mulher ouve “Na hora de fazer você não gritou!”, é apenas um excesso dentro desse sistema em que várias violências já são permitidas e aplicadas como procedimento de rotina. E, é bom saber, essa violência não se restringe ao corpo da mãe: como exemplos de procedimentos que fazem sofrer os bebês, temos o berçário para bebês saudáveis (que poderiam estar com as mães), colírio credê nos olhos do recém-nascido, aspiração das vias aéreas do bebê etc. Me detenho aqui em um deles:

 

Colírio credê ou de nitrato de prata é usado para prevenir que o bebê pegue gonorréia ou clamídia de sua mãe por via vaginal. No entanto, se a mãe tem resultado negativo pra essas doenças, ele é igualmente usado. Esse colírio arde, é altamente irritante e muitas vezes causa conjuntivite química neonatal. É procedimento de rotina em hospitais e casas de parto, mesmo em cesarianas.

 

Escolhi aqui um exemplo que, se usado apenas nos casos necessários, seria extremamente bem-vindo. Mas usado de forma rotineira, aliado às outras dezenas de intervenções desnecessárias também feitas de forma rotineira, demonstram apenas que a padronização médico-hospitalar é um desrespeito às necessidades das mães e de seus filhos. Se uma mulher quer parir em casa, no hospital ou mesmo fazer uma cesárea, que cada passo seja uma escolha dela. Informada, sem pressão e, principalmente, sem mentiras ameaçadoras. Essa falta de respeito à autonomia da mulher, aliada à cultura machista dominante de que mulheres precisam ser controladas durante o parto, abre uma porta significativa para a violência obstétrica propriamente dita.

 

Segundo dados da Fundação Perseu Abramo de 2010, uma em quatro parturientes sofre violência obstétrica no Brasil. O número pode parecer alto, mas sabemos que é ainda maior: a maioria das mulheres, acostumada a ser desqualificada e desautorizada em suas escolhas como gestante/parturiente, termina por naturalizar a violência institucionalizada e não enxergá-la como tal. Assim, só a violência evidente e inconteste é computada.

 

Projetos como a da fotógrafa Carla Raiter ou o documentário Violência Obstétrica – A Voz das Brasileiras servem como denúncia e colhem depoimentos de mulheres que sofreram violência durante o parto em ambiente hospitalar. Frases como: “Se você não fizer isso, seu bebê vai morrer” ou procedimentos feitos sem a autorização da parturiente abundam. As marcas que elas levam desses episódios são difíceis de apagar. Mas, para levantar-se contra a violência obstétrica, é preciso voltar muitos passos e voltar-se contra a falácia do obstetra como agente principal do parto. E é somente exigindo o reconhecimento do nosso protagonismo e do nosso direito a decisões informadas que algo poderá ser mudado.

 

Para saber mais:

 

Blog da obstetra, pós-doutora e PHD Melania Amorim

Textos da obstetriz e ativista do parto natural Ana Cristina Duarte

Guia da OMS para o parto normal (em inglês)

 

Leia outros textos de Clara Lobo.

Ilustração: Emília Santos

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