Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

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Tó, Iemanjá

Alexandre Peixe dos Santos, o Xande, nos contou sua trajetória, das molecagens da infância em Araraquara ao pioneirismo no movimento de homens trans no país. Por Shanawaara, Gui Mohallem, Carolina Menegatti, Olívia Pavani e Ana Ferri

Esse mês entrevistamos Alexandre Peixe dos Santos, o Xande, pai, avô, pioneiro no movimento de homens trans no Brasil e ativista do Ibrat. Preparamos um creme de abóbora todo especial para descobrir que ele não gosta de sopa… tudo bem, pelo menos o cafezinho ele tomou com a gente! Entre os que chegaram junto no sofá estavam Shanawaara, Gui Mohallem, Carolina Menegatti, Olívia Pavani e Ana Ferri. Nessa conversa cheia de carinho e bom humor, Xande contou causos da infância, técnicas de como pegar piolho para manter o cabelo sempre curtinho, o prazer de fazer a barba, a militância, a questão da despatologização, os preconceitos que enfrentou, sonhos e planos futuros. Recebemos até um convite especial para um mergulho no mar… Vamos?

 

 

Você podia contar um pouco sobre a sua infância?

 

Bom, sempre fui moleque. Morava em Araraquara e brincava só com brinquedos de menino e com os meninos na rua. Não tinha nóia nenhuma, eu jogava bola sem camisa, soltava pipa, brincava de carrinho de rolimã, bicicross… Eu era um moleque daqueles que apertava a campainha e saía correndo. Foi a melhor fase da minha vida.

 

 

Está acontecendo, em diversos municípios, a votação sobre o Plano Municipal de Educação. Aqui em São Paulo, a votação final deve ser em agosto, e os vereadores estão querendo retirar do PME os termos “sexualidade” e “gênero”. Como era para você essa relação na escola, você sofria algum tipo de preconceito?

 

Até o ginásio foi tranquilo, eu era Alexandra mesmo que me identificasse como menino. Não tinha essa questão de mudança de nome. Meu sobrenome é “Peixe”, então me chamavam de “Sardinha”, pois eu era bem magrelo.

 

 

E na família, como era a relação com seus pais e irmãos?

 

Durante a infância eu não me identificava como homem. Eu me entendia, mas não me identificava. Eu era uma criança. Uma criança que não tinha sexo. Isso veio a acontecer com quase trinta anos. Mas minha mãe era muito encanada. Minha irmã tem um ano de diferença comigo e é muito feminina, enquanto eu sempre fui assim, muito masculino. Esse era o maior grilo, porque minha mãe comprava um vestido azul pra mim e um vermelho para minha irmã. Ela ficava muito feliz e eu muito triste.

Uma vez,  minha mãe comprou um shortinho de linha com uma blusinha cheia de flor para eu ir à missa, e eu não suportava aquela roupa. No caminho para a igreja, morava um moleque que era muito briguento. Foi bem planejado o negócio. Eu pensei, “vai ter que ser esse cara pra me salvar dessa”. Fui no campinho e comecei a xingar o menino, ele saiu puto, a gente rolou na terra e ele rasgou toda a minha roupa. Eu falei: “olha, mãe, o que ele fez com a roupa tão linda que a senhora me deu!” Acabei não indo na missa com aquela roupa ridícula.

 

 

Como foi na adolescência, começar a namorar?


Foi aí que a coisa ficou feia. Porque começou a mudança do meu corpo. A minha menstruação foi bem precoce, aos nove anos. Para o meu azar, eu sou quem tem mais mama na família. Perdi a minha liberdade, antes eu podia brincar sem camisa e, de repente, já não podia mais. Mas eu sempre me vesti como menino, mesmo com minha mãe brigando. Para fugir um pouco, virei metaleiro e só usava roupa preta.

 

Quando eu estava no catecismo, namorei uma menina.

A minha mãe era muito regrada, séria, severa. Eu tinha cabelo muito curto… E essa era uma outra técnica que eu usava, brincava só com criança que tinha muito piolho, porque eu pegava piolho e minha mãe cortava meu cabelo bem curto.

Namorei uma menina durante um ano e usava o nome de João. Minha irmã não contava, porque que a minha mãe não podia saber que ela namorava também. Então a gente ia pra pracinha. Namoro, que eu falo, era pegar na mão, dar selinho – eu tinha nove anos, mas aí chegou o maldito dia da Primeira Comunhão. E apareço eu de vestido e veuzinho.

 

 

Qual era sua relação com a religião católica? Tinha algum sentimento de exclusão, culpa ou pecado?

 

Fui criado na religião. Metade da minha família era católica e metade da umbanda. Eu ia nas duas. Quando, na minha adolescência, eu assumi a minha lesbianidade, por assim dizer – porque até então era o mais próximo do que eu sentia e queria — aí pegou, porque nem minha mãe nem meu pai aceitavam. Agora, culpa não, eu nunca senti culpa.

 

 

E o processo de se identificar como um homem trans?

 

Isso só veio depois de 2004.

A primeira etapa foi participar de uma reunião de travestis e transexuais, da Parada do Orgulho LGBT de SP. Eu fazia parte de um grupo de lésbicas, mas não achava que aquele era o meu lugar. Um dia participei do grupo das meninas, das meninas trans e das travestis. E elas começaram a me chamar de Xandão. A Pamela Anderson, uma travesti que já faleceu, e a Luana Vendramini falaram: “cara, você é um homem”. Nunca imaginei essa possibilidade. “Procura FtM (Female to Male) no Google, você vai ver o que é”.  Eu falei: “é aqui mesmo que eu me encaixo”.

 

 

Foi nesse período que você começou a hormonização?

 

Não. O “processo transexualizador” ainda não existia no Brasil. Eu já me vestia com roupa masculina e continuei assim. O primeiro processo para a minha questão de homem trans foi o nome. Ninguém mais me chamava de Alexandra, era só de Xande, Xandão e Alexandre. Foi a primeira coisa que eu exigi das pessoas. Dentro do movimento social, deixei de ir a reuniões de lésbicas e passei a discutir a questão dos homens trans.

 

 

Como foi começar a organizar o movimento de homens trans dentro do movimento LGBT?

 

2005 foi o ano em que tudo aconteceu. Fui pra Córdoba, Argentina, no encontro de homens trans da América Latina e do Caribe, organizado pelo Mauro Cabral. Ali eu conheci várias pessoas e voltei mais forte nessa questão. Então fui pra Floripa, no meu primeiro ENTLAIDS (Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que atuam na luta contra AIDS) e lá eu ergui definitivamente a bandeira dos homens trans. Solicitei que a ANTRA (Articulação Nacional de Travestis e Transexuais) criasse um núcleo de homens trans dentro da própria organização e aconteceu. Em 2013 foi criado o IBRAT, Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, onde sou o Coordenador da Região Sudeste. O IBRAT funciona como um núcleo de homens trans na Antra e tem núcleos em 20 estados do país. Aqui em São Paulo, o IBRAT integra o Fórum Paulista de Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans. No Fórum Paulista, sou representante do IBRAT na Comissão Executiva.

 

 

Foi a partir daí que você começou a conhecer outros homens trans?

 

Não, após eu surgir no movimento LGBT me apresentando como homem trans, os outros homens trans começaram a se identificar comigo. O Régis, de Campinas, me procurou e disse: “cara, eu sou que nem você”. Aí ele assumiu a identidade dele de homem trans. Vários meninos chegaram e falaram: “cara, você abriu a porta”. E assim foi crescendo o número de homens trans.

 

 

E o acesso ao “processo transexualizador” no SUS?


Em 2009 foi inaugurado o Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais no CRT (Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP). Antes de inaugurar, a Dra. Maria Clara me chamou pra uma reunião. Só tinha eu de homem trans, mas tinha várias travestis e mulheres trans. O ambulatório era pra ser só para mulheres, e, na época, recebi apoio para organizar uma fala de que o ambulatório seria mais preparado para atender homens trans. Tinha um ginecologista que tinha feito uma pesquisa com mulheres masculinizadas e era mais fácil, neste caso, trabalhar com homens do que com mulheres trans. A primeira resposta que recebi foi que o ambulatório não atenderia homens trans num primeiro momento. E eu falei “não, não tem primeiro momento”. A gente acabou fazendo um acordo e conseguimos que os homens trans fizessem o acompanhamento.

 

 

Quais foram as mudanças no seu corpo a partir da hormonização?

 

A barba. Eu lembro até hoje o primeiro pelinho que cresceu no queixo. Eu falei, “Regina” – eu morava com a Regina Facchini – “nasceu um pelo, nasceu um pelo!”. Eu ficava assim com o pelo, o tempo todo, puxando, descendo. Ficou só nesse um bom tempo. Com a mudança de hormônio veio a barba, o quadril sumiu e a voz ficou mais grossa.

Ah… e a minha felicidade!

 

 

Você teve acompanhamento médico, psicológico?  

 

A equipe do Ambulatório  Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais, localizado no CRT, conta com endócrino, psicólogo, psiquiatra e ginecologista. Ginecologista é meio que opcional.

Em 2010, a gente fez um levantamento, pois no Pérola Byington se fazia histerectomia e mastectomia todos os dias, e o protocolo dos homens trans era para que a mastectomia, a histerectomia e a faloplastia fossem feitas em caráter experimental. Nós questionamos isso. “Se essas cirurgias são feitas todo dia no hospital, por que os homens trans não poderiam fazer?”

Produzimos um documento, a Regina Fachinni, a Flávia Teixeira, a Tatiana Lionço, a Márcia Aran e vários pesquisadores assinaram, e mandamos para o Ministério Público Federal. Conseguimos que eles tirassem do caráter experimental a mastectomia e a histerectomia, ficou só a faloplastia e a metoidioplastia.

Em 2010, o ambulatório fez uma parceria com o Pérola Byington para a histerectomia, mas não é o lugar ideal,  porque é um centro de referência da mulher. Fiz a histerectomia lá, mas mastectomia não, porque a que eles fazem é para câncer, então, é totalmente diferente dessa masculinizadora, como a gente chama.

 

O processo lá, para mim, foi terrível em 2006.

 A primeira vez que fui fazer a cirurgia de histerectomia, em 2006, cheguei no Pérola Byington e fui encaminhado para um salão só com mulheres. Você entra e já é meio diferente ali. Respirei fundo e fiquei. Aí chamaram pelo meu nome de registro. Até aí tudo bem, eu ia tirar o que eu queria, então vambora!

Passei pela médica e falei: “Eu tenho mioma, preciso tirar.” Expliquei que eu era uma pessoa trans e ela respondeu: “Ah, eu entendo. Eu já li Os Onze Sexos”. Pensei que a leitura não era a ideal, mas… Aí ela falou: “Vamos tirar tudo. Não tem por que você ficar com isso”.

No dia da cirurgia, subi para o pré anestésico, chegou uma outra médica, que pegou o meu prontuário e falou: “Não. Por que que eu vou tirar tudo? Vou tirar só o mioma.”

Eu tentei explicar, mas ela só me tratava no feminino. “Não quero saber se você é trans. Você é muito nova, pode ter filhos ainda”. “Mas eu não quero mais ter filho. Eu já tenho uma filha”. “Eu não quero saber desse negócio de trans aqui não”. Levantei da maca, peguei as minhas coisas e fui embora do hospital.

 

Não fiz a cirurgia. Me recusei.

 

Em 2010, lá fui eu de novo. Ficou decidido que os exames a gente faria no próprio Ambulatório (CRT) e a cirurgia de histerectomia no Pérola Byington. Parei de menstruar. Tive os calorões porque eu não fazia reposição hormonal e, a partir daí, o hormônio masculino começou a fazer mais efeito. Minha filha, disse: “Você não é mais meu ‘pãe’. Agora, você é meu pai.”

 

 

E você fez a mastectomia depois?

 

Ainda não. É o que eu mais quero, é a mais importante. Eu não penso na faloplastia porque não é uma coisa assim. Aqui no Brasil, vão pôr um negócio lá que vai ficar morto, então, eu compro um packer e boa.

Mas a mama… às vezes, é o cara-crachá. A pessoa olha para a sua cara, te chama de ele, olha para baixo e te chama de ela. Mesmo quando eu uso duas camisetas mais o binder [uma camiseta elástica que aperta], às vezes dá pra perceber. Tem gente que usa a faixa. Eu prefiro o binder.

 

 

Você falou que tem uma filha. Como foi viver a gravidez?

 

Foi legal a parte de ter uma filha, mas a mudança corporal é muito estranha para um homem. Era um homem grávido. Eu estava na maternidade, eles trouxeram a minha filha e eu fiquei olhando, ela começou a chorar. A enfermeira veio “Por que essa menina chora tanto?”. “Não sei”. “Você já amamentou?”. “Não, ninguém trouxe a mamadeira”. Eu não tinha noção, né. Comprei uma bomba que você tira o leite e dá direto na boca. A Bruna foi amamentada com leite materno até os seis meses.

 

 

Como foi que você engravidou? Quer contar sobre o que aconteceu?

 

Um estupro. Eu tinha 19 anos. Decidi não fazer o aborto, a opção de não abortar foi pessoal. Não sou contra aborto, não. Hoje eu tenho uma neta. Foi entre 2010 e 2011 que eu falei pela primeira vez sobre a realidade do nascimento da Bruna. Foi meio punk, mas legal ao mesmo tempo, eu e minha filha nos unimos mais, inclusive.

 

Eu morava em Araraquara. Lá vivi a melhor parte da minha vida, que foi a infância e a pior parte, que foi a adolescência.

 

A gente tinha um grupo de pessoas que jogavam futebol na escola, a quadra ficava aberta e quem aparecia jogava. Eu tava jogando e fui no banheiro. Eu usava o banheiro masculino, mesmo antes de assumir uma identidade trans. Era mais confortável. Nunca aconteceu nada com os meus amigos e eu não conhecia os caras que estavam lá. Eles chegaram e me deram o que chamam de estupro corretivo: “É disso que você tem que gostar”.

 

Eu tava jogando bola, pra mim não fazia sentido o que aconteceu.

 

 

Existem algumas pesquisas e livros que abordam a questão de como as crianças mudam o seu comportamento quando a família para de pressionar no sentido oposto à identidade da criança. Por exemplo, quando param de brigar com elas para usarem vestido, no caso de um menino trans. Queria saber se isso aconteceu com você também.

 

Esses casos que você leu não são do Brasil. Ainda há uma discussão aqui sobre a transexualidade nas crianças. De qualquer forma, no meu caso, a sensação foi a mesma. É um sofrimento interno muito ruim. Você se identificar com uma coisa que teu corpo não é. O corpo, ao meu ver, é mais pra sociedade do que pra mim. Eu não gosto dessa palavra, mas é pra você ter a “passabilidade”.

Eu sempre fui um homem, mesmo com peito. Eu sou um homem.

Eu vivi dois momentos: quando eu soube o que eu era e quando consegui fazer a minha mudança corporal.

No momento em que eu me olhei no espelho e vi o Alexandre, foi assim… outra coisa. Eu pude  me curtir, me olhar, me ver.

 

Hoje fico no espelho horas e horas. Quando vou no barbeiro, eu me sinto o cara. Ele põe o pano quente, eu fico assim… Eu sou outra pessoa. Sou a pessoa que eu sempre fui. Vejo o mundo de outra forma, me vejo de outra forma. Melhor coisa é você sentar no boteco e o cara falar: “E aí, patrão. Alguma coisa?”. “Uma breja”.

Eu sobrevivia. Hoje, eu vivo.

 

 

Muitos homens trans dizem que o sonho deles é ir à praia.

 

Esse é o meu sonho. É a primeira coisa que eu vou fazer, assim que tiver liberado da cirurgia. E eu vou chamar a maior galera. Fazer um lual. Vou fazer um ritual de entrar no mar.

 

 

Chama a gente!

 

Claro. Vou falar assim: “Tó Iemanjá que esse peito é seu”. É o meu maior sonho. Andar sem camisa. Deve ser muito legal. Andava sem camisa quando criança. Hoje, imagina, andar sem camisa! Eu não acho legal homem ficar andando sem camisa por aí, mas uns 5 dias seguidos eu vou andar. Pendurar a camisa.

 

 

Existem muitos relatos de homens trans que passam por dificuldades quando precisam ir ao banheiro.

 

No banheiro, eu entro direto para a casinha. Tem gente que tem uma técnica pra mijar em pé, mas eu não uso. Eu sou tão rápido no banheiro, por medo de violência, que eu entro e já saio.

 

 

Banheiro feminino jamais?


Não dá pra entrar. Uma vez, no shopping, fui ao banheiro feminino. Quando eu saí tinha um segurança segurando um monte de mulher: “o cara entrou no banheiro errado”. Pedi desculpas, mas saí de lá me achando! Nem barba eu tinha nessa época.

 

 

 

É emocionante o relato de que você foi o primeiro homem trans que conheceu. Não tinha modelo nenhum e foi modelo para muita gente. Como foi desbravar esse lugar?

 

Teve dois processos. Foi importante pra mim como pessoa e foi legal ver as pessoas se identificando. Mas chegou um momento em que eu abri a porta e fiquei segurando. As pessoas foram passando e eu fiquei. Senti muito isso. Acho que foi uma responsabilidade muito grande também. Fui muito cobrado, lógico.

Muitas pessoas apontam para uma lésbica e dizem que ela homem trans, por ser uma figura tão masculina. Eu acho que não é por aí. Quem se identifica é a pessoa.

 

Quando eu consegui soltar a porta e ir, pude viver a liberdade que eu sinto hoje.

 

Então teve um lado bom de tudo isso, de me reconhecer como único homem trans – existiam muitos, só que ninguém sabia que era. As pessoas não conheciam a nomenclatura “homem trans”. Ter uma identidade, isso foi muito legal. Porque, no final das contas, homem trans você sempre foi.

É muito bom quando você sabe o que é. Porque até então, eu não sabia o que eu era. “Ah, eu sou lésbica… mas não sou lésbica, porque não sou uma mulher que gosta de outra mulher…”

Quando você vai para a periferia, tem um monte de mulheres masculinizadas ou homens trans que não se identificaram e nesse ambiente você fica mais tranquilo. É um lugar que todo mundo fala que é perigoso mas não é, desde que você assuma sua masculinidade. Tem lugares que te aceitam como homem trans mas não te aceitam como lésbica.

 

 

E a questão da transfobia?

 

O problema da transfobia comigo, que eu só posso falar de mim, é o documento. Quando eu tento alugar uma casa para morar,  o cara olha pro meu documento, olha pra mim e fala: “não alugo para pessoas como você”. Eu já ouvi isso. Quando procura emprego e a pessoa te diz: “ah, não dá pra te dar emprego né? Seu nome é esse” ou “Você pode vir, mas vai usar um crachá com seu nome de registro”.

Esse processo do nome é muito importante para essas questões. É o que chamamos de cara-crachá, aquela coisa de olharem pra você e olharem o seu documento. Esse é um problema que eu pretendo resolver logo, fazer a mudança do meu nome.

 

 

Como está esse processo de fazer a mudança do nome?

 

No meu caso, é mais complicado por causa da minha filha. No Brasil, alguns documentos como o  título de eleitor e PIS têm o seu nome e o nome da mãe. Ela só tem o meu nome no registro, é o nome da mãe dela que tá lá. Vamos precisar mudar os meus documentos e os da Bruna também. Perguntei pra um juiz como faria e ele não soube responder. Então ainda não se sabe como vai ser feito isso.

 

 

 

Queríamos saber o que você acha agora da história da despatologização. Como tá essa questão hoje pra você?

 

Bom, eu não sou doente, não aceito ter um CID [Código Internacional de Doenças] da Saúde Mental. Eu sempre digo isso, se tivesse nascido com seis dedos, poderia tirar um, seria normal. Então, claro, sou a favor da despatologização. Mesmo que exista uma discussão: “putz, mas e aí, se eu não tiver o CID como eu vou fazer a cirurgia?”. Ainda existe essa pergunta dentro do movimento trans. Eu vou ser tratado – não, vou ser acompanhado, porque eu não sou doente. Vou ser tratado como uma pessoa que tem uma gripe. Não tenho transtorno nem disforia. Eu só nasci na embalagem errada, trocaram a embalagem. Eu acho que a gente não conseguiu avançar nisso, mas ainda vai rolar, com certeza.

 

 

Ainda existe no movimento essa discussão de que se despatologizar, perde-se o amparo governamental?

 

Então, essa é a discussão. A questão é que a gente não precise de um laudo psiquiátrico, psicológico pra ser… Eu quero ser acompanhado como uma pessoa. Eu sou trans, mas eu tenho gripe, eu sou trans, mas eu tenho cólica. Ser trans é uma identidade, não uma doença.

 

 

No Brasil a gente tem o SUS que, em tese, tem alguns princípios como a universalidade e a integralidade. Se a pessoa está sofrendo porque o seu corpo não condiz com a sua identidade de gênero, isso não significa que ela tenha uma doença, muito menos um transtorno mental. Pelo fato de ela estar sofrendo – às vezes nem é o sofrimento em si – pelo fato dela precisar de transformações corporais, várias, não só a cirurgia de transgenitalização, você está trabalhando com a promoção da saúde, do bem-estar bio-psíquico-social.

 

Muitas pessoas trans são contra a despatologização pensando assim: “e aí, vai acontecer o que se me despatologizarem? Eu não vou ter mais minha cirurgia”. Mas seguindo os princípios do SUS, cabe.

 

 

E, atualmente, como tá isso. Você continua assistido?

 

Sim, tenho que fazer exame todo mês, a cada três meses eu tomo hormônio… Mas já estou liberado do acompanhamento psicológico.

 

 

Você precisou de laudo psicológico ou psiquiátrico pra fazer a cirurgia?

 

Não. Por conta dos princípios do SUS. Existe uma parceria com o ambulatório (CRT) e ele segue essa visão do SUS. Você passa pelo psicológo e pela hormonoterapia, mas não precisa necessariamente ter um laudo.

Não é o psicólogo nem psiquiatra que vai dizer o que eu sou. Eu sei quem eu sou.

 

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