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Cecilia Silveira, Clara Lobo, Egito, estupro, feminismo, Geni no Mundo, mulheres, número 2
Uma praça, quatro dias, 154 mulheres violentadas
Que horrores se escondem na praça Tahrir? Perguntamos a Amal Elmohandes, diretora da Nazra para Estudos Feministas, do Egito. Por Clara Lobo
Há pelo menos dois anos, mulheres têm sido sistematicamente violentadas nos protestos que acontecem na praça Tahrir, no centro da capital do Egito, ao juntarem-se ao coro que derrubou, no mês passado, o presidente Morsi. Os relatos de abusos sexuais, que se multiplicavam desde o início do ano, chegaram a um pico de 46 casos na manifestação de 30 de junho de 2013. Alguns dias depois, com a tomada do poder pelos militares, milhões voltaram às ruas. Nesse dia, 68 mulheres foram violentadas.
As mulheres que se posicionavam publicamente nas ruas do Cairo eram caçadas por grupos de homens que arrancavam suas roupas e as estupravam em plena praça pública, sob o olhar cúmplice e jocoso da maioria masculina que ocupava o local.
Com base em relatos de testemunhas e vítimas, sabe-se que os ataques tendem a seguir padrões similares. Normalmente, um punhado de homens jovens cerca uma mulher, separando-a de seus amigos. Durante os ataques – que duram desde alguns minutos até mais de uma hora – o número de agressores aumenta e eles apalpam o corpo da mulher, removem suas roupas e a penetram com dedos e objetos pontiagudos. Os agressores muitas vezes arrastam a mulher para um local diferente, continuando a atacá-la e a estuprá-la.
Pessoas que tentam resgatar as vítimas são normalmente ameaçadas pelos agressores com paus e facas. Sobreviventes contaram a Human Rights Watch que, para piorar, alguns homens fingiam ajudá-las para apenas participar melhor do ataque, o que as desorientava ainda mais, já que não conseguiam avaliar quem as estava ajudando de fato.
Uma delas conta: “No auge do ataque, olhei para cima e vi cerca de 30 homens em uma cerca. Todos eles tinham rostos sorridentes, e eles me filmavam com seus celulares. Eles viram uma mulher nua, coberta de esgoto, que estava sendo violentada e espancada, e não posso imaginar o que havia de engraçado nisso. Esta é uma pergunta que ainda me faço. Não consigo parar de pensar sobre isso”.
Aqui, aqui e aqui, é possível ler três relatos de mulheres estupradas. Neste vídeo e neste outro, imagens de dois dos ataques.
Segundo as Nações Unidas, 99,3% das egípcias já sofreram assédio sexual. Mais de 90% da mulheres casadas tiveram seus genitais mutilados em nome da decência. Claramente, o que acontece em Tahrir não é uma aberração, e sim a manifestação de algo profundamente arraigado na sociedade egípcia. Para entender melhor o que se passa, a Geni conversou com Amal Elmohandes, diretora da Nazra para Estudos Feministas, umas das organizações mais ativas no Egito hoje: da reflexão à ação, ela luta para eliminar o sexismo na política, no sistema judicial, na mídia, nas escolas e no espaço público de seu país.
>> Amal Elmohandes (ilustração de Cecilia Silveira)
Os estupros coletivos e abusos sexuais ocorridos em Tahrir estão relacionados ao contexto político atual, ou eles já vêm acontecendo desde antes da deposição de Mubarak, mas só recentemente começaram a ser divulgados?
Apesar de acreditarmos que as agressões sexuais e estupros coletivos ocorridos nos arredores da praça Tahrir se dão dentro de um contexto político, eles não estão especificamente relacionados a ele: estão também ligados a um aspecto cultural, além de outros fatores. Agressões sexuais coletivas foram utilizadas durante a infame “Quarta-feira Negra”, mais especificamente 25 de maio de 2005, durante um protesto no sindicato da imprensa contra Mubarak e sua Constituição. Lá, bandidos atacaram mulheres e jornalistas do sexo feminino, assediando-as sexualmente e lhes despojando de suas roupas. Esses ataques em Tahrir, semelhantes a um tornado, em que centenas de homens atacam uma única mulher, abusando sexualmente dela e estuprando-a por diferentes métodos (que incluem estupro com os dedos e por objetos pontiagudos), começaram a acontecer em 11 de fevereiro de 2011, quando as multidões estavam comemorando a derrubada de Mubarak, e quando aconteceu o infeliz caso da repórter Lara Logan.
Os ataques ressurgiram em novembro de 2012, durante a segunda comemoração da Revolução de 25 de janeiro, quando mais de 20 mulheres foram vítimas de violência sexual, dentre as quais algumas foram estupradas. Durante o período de 28 de junho a 7 de julho de 2013, no curso da revolta conhecida como a “terceira onda da revolução”, 186 mulheres foram vítimas de violência sexual, das quais muitas foram estupradas. Muitos argumentam que esses ataques são intencionais, organizados, e seu principal objetivo é empurrar as mulheres para fora do espaço público. No entanto, essa é uma interpretação fácil de se fazer. A verdade é que há um revoltante estado de impunidade, evidente mesmo antes da revolução, e este envia a forte mensagem de que as mulheres podem ser espancadas e violadas, e nenhuma punição será aplicada. Isso se torna evidente quando levamos em conta que as mulheres na revolução foram submetidas a “testes de virgindade” (penetração da vagina por dedos, feita por homens que se dizem médicos), espancadas, detidas, despidas e difamadas.
O assédio e as agressões sexuais são comuns na sociedade egípcia?
Sim, e vários incidentes ocorrem em uma base diária. O fato de a polícia não cooperar com as vítimas que querem prestar queixa, e da percepção da sociedade em relação a esses crimes sempre enfocar o aspecto sexual dos ataques, tornando-os um tabu, é o que torna muito difícil combatê-los. Além disso, embora as mulheres egípcias tenham atuado no espaço público desde 1919, o aumento do número de mulheres na revolução está provando que a sociedade egípcia, que se agarra firmemente aos seus valores patriarcais, não aceita a presença delas no espaço público.
Outro fato importante no qual as pessoas precisam prestar atenção e refletir seriamente é que muitas dessas agressões sexuais ocorrem na praça Tahrir, onde manifestações assumem forma e natureza celebratórias. Dos 186 casos acima referidos, 80 ocorreram em 3 de julho, estendendo-se até as primeiras horas do dia 4 de julho, quando as massas estavam comemorando a destituição de Morsi. Isso lembra as agressões sexuais e estupros que ocorrem em alguns dos concertos das estrelas pop egípcias. Vários fatores combinados estão por trás dos ataques, e quem oferece uma explicação simples para isso está enganando a si mesmo e a todxs xs outrxs.
Abusos sexuais desse tipo ocorrem em outras partes do Egito, além do Cairo?
Assédio sexual, agressão e estupro ocorrem em todo o Egito, seja na esfera pública ou privada. Vários incidentes de assédio ocorrem na rua, no metrô, nas aldeias, universidades, locais de trabalho etc. Eman, uma menina de 17 anos, cuspiu em um homem que agarrou seus seios na rua e foi baleada por ele. Esse incidente mostra claramente o nível de agressão contra as mulheres na sociedade egípcia, e como é improvável que os homens egípcios entendam e compreendam que as mulheres podem revidar. Na cidade de Mansoura, várias manifestantes foram assediadas sexualmente ao participar de uma tentativa de desobediência civil em fevereiro de 2013. Por causa desses incidentes, muitos grupos de combate ao assédio e à agressão sexual foram formados em várias províncias.
Como os meios de comunicação egípcios (TVs e jornais) se posicionam em relação a tais crimes e outras violações dos direitos das mulheres?
A resposta da mídia egípcia tem sido antiprofissional. Não foi dada atenção alguma para essa questão. Isso pode estar relacionado ao fato de que os partidos e grupos políticos têm tentado encobrir esses ataques. Eles nunca os mencionam e, quando são chamados a agir por organizações feministas, nunca respondem. Quando as vítimas começaram a denunciar e organizações feministas, principalmente a Nazra, começaram a falar sobre o que estava acontecendo, a mídia entrou em frenesi e a cobertura foi feita de maneira a se concentrar no aspecto sexual desses crimes, em vez do aspecto da violência.
Vale ressaltar que os crimes são extremamente violentos e, às vezes, são uma tentativa de assassinar essas mulheres, pois elas são muitas vezes estranguladas, espancadas e jogadas violentamente contra o chão e as paredes. Os meios de comunicação também foram muito pouco profissionais na divulgação de informações relacionadas à identidade das sobreviventes, e a cobertura foi feita de forma a insinuar que elas eram as culpadas. Nesse ponto, Nazra para Estudos Feministas realizou duas reuniões com representantes da mídia entre fevereiro e maio de 2013, para fornecer um check-list e um conjunto de orientações sobre como cobrir os incidentes de agressão sexual e estupro, e como incluir consciência feminista e aspectos de gênero na cobertura das histórias.
Além da mídia, algumas autoridades egípcias culparam as mulheres estupradas por estarem na rua, como se elas não devessem sair de casa para participar do processo político de seu próprio país. Como vocês responderam a isso?
Sim, de fato, a Câmara Alta do Parlamento (Conselho Shoura), em sessão realizada após os ataques em janeiro de 2013, culpou as mulheres pelo ocorrido e afirmou que elas deveriam ter tomado mais medidas de precaução quando decidiram participar das manifestações. A Operação Antiassédio Sexual (OpAntiSH), juntamente com outras ONGs e organizações feministas, incluindo a Nazra, emitiu uma declaração em fevereiro deste ano condenando a posição do governo. Depois disso, os ataques só foram citados pelo governo da Irmandade Muçulmana para deslegitimar as manifestações anti-Morsi e fazer uma comparação obscena com as manifestações de apoio a Morsi, onde esses ataques não aconteceram. Essa evidente manipulação foi condenada por várias ONGs e grupos em um comunicado divulgado em julho de 2013.
Após o corajoso trabalho dos grupos Tahrir Bodyguard, OpAntiSH e Nazra, você acha que as mulheres egípcias serão mais respeitadas nas ruas?
Bem, à luz dos recentes ataques, definitivamente não está ficando melhor. No entanto, as mulheres continuam a estar ativas no espaço público, seja nas suas vidas cotidianas ou optando por ser politicamente ativas. E, a não ser que a nação inteira (incluindo o governo, partidos políticos, órgãos jurídicos, polícia, medicina forense, hospitais e setor médico) trabalhe em conjunto para alterar a percepção desses crimes e intervir para resolvê-los; que um fim seja posto ao constante estado de impunidade; que as agressões sexuais sejam despojadas do fetiche sexual colocado sobre elas; e que a mentalidade da sociedade mude, nada vai melhorar, e o país inteiro irá para o inferno.
Quais foram as táticas usadas pelos grupos para proteger as mulheres durante os protestos?
Táticas incluem: A disseminação de informações (via folhetos, cartazes, divulgação de números de emergência); grupos de intervenção, cujos voluntários intervêm para resgatar as sobreviventes; grupos de salvamento, que fornecem ajuda após o ataque. Em geral, tiramos a vítima que está sendo atacada da turba tão rapidamente quanto possível e, dependendo do seu estado físico e psicológico, ela é conduzida a uma clínica ou um hospital. Grupos como OpAntiSH e Tahrir Bodyguard trabalham arduamente na ruas, e seus membros e voluntárixs arriscam suas vidas para tentar fazer de tais demonstrações um lugar seguro para as mulheres.
Como os ataques impactaram o movimento feminista egípcio? A mobilização diminuiu por medo de abuso ou foi intensificada devido a isso?
Os estupros e agressões sexuais não diminuíram a mobilização. Apenas causaram mais raiva e ressentimento, o que levou muitas organizações feministas a agir ou, no mínimo, expressar sua desaprovação. No entanto, e infelizmente, muitas organizações que se pretendem feministas não divulgam esses ataques com o pretexto de não impactar a mobilização política, como se ambos fossem questões separadas, e como se fosse aceitável obter ganhos políticos em detrimento das mulheres, de seus corpos e de sua segurança.
Há esperança de levar alguns dos estupradores/ agressores a um julgamento justo (ou pelo menos aplicar algum tipo de penalidade)? Como a justiça funciona nesses casos no Egito?
A justiça egípcia, especialmente em relação a abusos sexuais e estupros coletivos, é bastante problemática e complicada. Em primeiro lugar, a fim de provar que uma mulher foi estuprada, por lei, é obrigatório que ela passe por um exame médico na Autoridade de Medicina Legal, onde as vítimas são tratadas de forma muito hostil, sendo punidas por aquilo que tiveram de suportar. Isso, por si só, faz com que as sobreviventes se desencorajem a prosseguir com uma ação judicial. Além disso, a lei não inclui estupro pelos dedos ou objetos pontiagudos.
Outro exemplo: embora a lei diga claramente que o estupro é punido com detenção máxima, que é de 25 anos, essa sentença quase nunca é aplicada. Em incidentes de abuso sexual, mesmo que a lei defina que agressores podem ser condenados a até sete anos de detenção, na maioria dos casos eles não são condenados ou, se condenados, o são por apenas alguns meses. Delegacias também são muito hostis com as vítimas que desejam apresentar queixa: lá eles pressionam as sobreviventes a desistir, tentando fazê-las se sentirem culpadas por arruinar o futuro do agressor. Às vezes, eles simplesmente se recusam a ajudá-la a prestar queixa e, em alguns casos, acabam eles mesmos assediando as sobreviventes. Há casos em que mulheres são assediadas na rua e policiais ficam de braços cruzados, assistindo, ou mesmo participam do próprio assédio.
Na sua opinião, a religião desempenha algum papel na manutenção do patriarcado egípcio?
Na minha humilde opinião, não é a religião em si, e sim a interpretação dela, juntamente com certas ideologias incorporadas na cultura egípcia que são repassadas por diferentes gerações como dogmas religiosos, quando em verdade não o são.
É sempre mais fácil culpar a religião pelos valores patriarcais, mas a verdade é que, além da falsa interpretação de diferentes textos religiosos – que sempre mostram a mulher como serva do homem, a necessidade de sua obediência a ele, o pressuposto de que homens e mulheres têm papéis diferentes, etc. –, muitas pessoas, comunidades e partidos políticos “liberais” praticam o que há de pior no patriarcado. De acordo com a Academia para a Participação Política das Mulheres, um dos muitos programas da Nazra, as mulheres em partidos liberais e socialistas são confinadas a exercer papéis “femininos”, e suas ideias são constantemente anuladas.
Além disso, quando você pensa nos princípios de igualdade social e liberdade que a revolução demandou, raramente se inclui os direitos das mulheres nessa discussão. Em campanhas para eleições presidenciais ou parlamentares, essa questão é inexistente. O patriarcado, na minha opinião, é uma maldição que existe em muitas sociedades (incluindo a egípcia), sejam elas religiosas ou seculares. Como dito anteriormente, interpretações tendenciosas de textos sagrados dão aos homens subsídio para confinar mulheres a determinadas funções, sob o pretexto da religião.
*Colaboraram Aline Gatto Boueri e Marcos Visnadi