Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Erotismo é criação

Os limites do corpo e o desejo sem limites numa conversa com Eliane Robert Moraes, professora da USP especialista em literatura erótica e na obra do Marquês de Sade. Por Gui Mohallem, Marcos Visnadi e Pedro “Pepa” Silva

 

Na grande biblioteca de Eliane Robert Moraes, quatro letras imensas, desenhadas nas lombadas dos livros, preenchem uma prateleira inteira: SADE. Eliane é talvez a maior pesquisadora brasileira da obra do “divino marquês”, como os surrealistas chamaram o libertino escritor do século 18. Mas, mais do que isso, ela é uma grande conhecedora do imaginário erótico – ou pornográfico, dá na mesma – e de sua presença na literatura. Escreveu sobre a indústria pornográfica, traduziu a História do olho, de Georges Bataille, analisou textos de Hilda Hilst, Roberto Piva e Glauco Mattoso, atualmente estuda as relações entre literatura e prostituição, e, ainda este ano, lança a Antologia de poesia erótica brasileira, a ser publicada pela editora Ateliê.

 

Mas não é só seu delicioso currículo o que nos atrai. Apaixonada por seus objetos de estudo, Eliane faz a gente se apaixonar também, como quando conta a história da virtuosa Justine, heroína romântica que só se fode (em todos os sentidos) nas mãos do marquês. Ou quando nos mostra que os voos mais altos e os mergulhos mais fundos estão ao alcance da nossa fantasia.

 

Numa manhã de julho, a professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP) recebeu a revista Geni para um papo sobre seu trabalho, os limites da realização do desejo e a ausência de limites da criação erótica.

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Como começou seu interesse pela área do erotismo?

 

São motivações muito misteriosas que levam a gente pros lugares onde a gente está. Eu sempre pergunto não só por que eu fui estudar um autor como Sade, mas por que alguém vai estudar Machado de Assis, Proust. Acho que tem várias coisas. Eu sou de uma geração – e de uma parte dessa geração, porque não era todo mundo – que pegou o final da ditadura. Então eu me envolvi de uma forma um pouco mais militante com o feminismo, embora eu nunca tenha tido muita atração pela militância. Tinha o feminismo no final dos anos 70, que era interessante, porque ele fazia a crítica da política oficial e olhava um pouco para o afeto, o desejo, o corpo, outros lugares.

 

Tive uma participação pequena num grupo, na época, que se chamava Nós, Mulheres. A gente tinha um jornal, eu comecei a escrever, e isso também coincidiu com o final do meu curso de ciências sociais e o desejo de entrar na vida acadêmica. Aí eu ganhei uma bolsa pra estudos ligados ao feminismo.

 

Uma bolsa pra estudos feministas?

 

Pra estudos sobre mulher. Ela passava pela Fundação Carlos Chagas, daqui, mas a dotação era da Fundação Ford. Então do nada, conversando com uma amiga, perguntei: “Que tal estudar pornografia?”. Porque todo o problema da mulher e da sexualidade está colocado na pornografia. Mas já era pegando pelo imaginário, pela fantasia, embora eu estudasse ciências sociais.

 

Nessa época estava começando a coleçãozinha Primeiros Passos, da editora Brasiliense. E por meio da viúva do Caio Graco [editor da Brasiliense], a Susana, uma psicóloga, eu acabei escrevendo O que é pornografia junto com a minha amiga [Sandra Lapeiz], com quem eu fazia a pesquisa. Foram também os meus primeiros passos como estudiosa do tema. E aí eu descobri quem? O Marquês de Sade! Que é um autor extremamente impactante, não é um do tipo que você lê e passa.

 

Tinha edições do Sade no Brasil? Como ele circulava?

 

Não circulava. Parte do que eu pesquisei foi com edições clandestinas, mas não tinha nada à disposição do leitor, naquele momento. Eu li tudo em francês, me exigiu muito. Foi até bom, aprendi a falar francês com Sade [risos]. Não sabia falar coisas básicas, mas todos os palavrões do século 18, todas as nomeações dos genitais eu sabia. Às vezes falar um bonjour já era mais difícil [risos]

 

Isso foi exatamente quando terminei as ciências sociais e quis fazer um mestrado. Então eu conheci o Renato Janine Ribeiro [professor da USP, orientador de Eliane no mestrado e no doutorado], que é um estudioso do século 18, e na hora ele comprou a ideia, apesar de a área dele ser a filosofia política.

 

Tem um paradoxo aí, que é começar no feminismo e depois ir pra Sade. Tem um deslizamento meio estranho, porque o feminismo tinha um lado militante, reivindicatório, e Sade está totalmente no campo da fantasia. Não dá pra ser militante com Sade. Tem até gente que o lê politicamente, mas não é algo que eu goste muito, eu acho que Sade não faz uma proposta política.

 

O que ele propõe?

 

Tem uma leitura imediata, de dizer que ele é um libertário. E tem uma leitura crítica a ele, que diz “pô, esse sujeito está propondo que a gente se mate, a violência sobre o outro”. Agora, isso tudo diz respeito a pensar essa literatura dentro da realidade, e Sade não está pensando no que acontece na realidade, e sim no que não acontece.

 

O sujeito, na obra de Sade, não é o que o homem é, mas o que o homem não é. Como a gente pode pensar um mundo em que todas, todas, todas as proibições estejam suspensas? Esse mundo não existe. Então é uma passagem pra fantasia num regime absolutamente integral.

 

É este o deslizamento: passar de uma reivindicação de mudar o mundo, aqui e agora, que eu acho válida, e ir dar num outro mundo. Foi isso que eu descobri, então sou muito crítica ao feminismo. Mas sou grata ao feminismo por ter me aberto um lugar como mulher para poder pensar isso, e também por ter aberto essa possibilidade de pensar o corpo e a sexualidade no plano da fantasia. É esta a política em Sade, se dá pra dizer assim: a possibilidade de pensar o totalmente outro, totalmente fora daqui. E é incrível isso hoje, porque a mídia, tudo nos coloca muito aqui, na realidade. A fantasia da indústria cultural é totalmente realista, né?

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Inclusive a fantasia da indústria pornográfica? Ou ela é mais parecida com a do Sade?

 

Eu acho que a fantasia da pornografia mais comercial, da internet, das revistas de banca, dos filmes comerciais, ela é superchinfrim perto de Sade, do Bataille, da Hilda Hilst… Tem uma fantasia hoje que é muito fast-food, ela não alça um voo alto, não dá um mergulho fundo. Eu gosto mais dessa outra turma porque ela é muito mais obscena, no sentido que eles fazem tábula rasa do mundo.

 

Você acha que a pornografia é didática? Ela nos ensina sobre o sexo?

 

Esta conversa, que a gente está tendo, é presidida por uma questão: o que é pornografia? Ou melhor: quando falamos de pornografia, estamos entendendo o quê? Porque existe um senso comum que separa pornografia de erotismo, que eu acho uma imensa bobagem. “Pornografia é em cima do genital; erotismo é uma coisa velada, romântica…”, isso eu acho uma tonteria, é um critério moral. Se a gente tira esse critério, só nos resta dizer que os dois são sinônimos.

 

Eu vou falar de literatura, que é a minha área. Tanto Os 120 dias de Sodoma, de Sade, como O caderno rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst, quanto a História do olho, de Georges Bataille, são literatura erótica ou pornográfica. Como são o Cinquenta tons de cinza e a Bruna Surfistinha. Qual a diferença? É que estes últimos são péssima literatura, e os outros são excelente literatura. É uma diferença estética. Então você me pergunta: a pornografia ensina? A pornografia comercial é didática, mas não ensina. Porque ela é uma fôrma na qual você coloca o seu erotismo, e ela dá pouca possibilidade de você fantasiar. O erotismo é criação também. Por isso a criação e a erótica estão sempre juntas. Então isso que eu chamo de fast-food do sexo é uma forminha pra sua fantasia. É didático no pior sentido. Ele te abre uma porta? Não. Ele captura o teu desejo.

 

Agora, tem outro tipo de texto que te transtorna e te coloca num lugar de interrogação, que pode ser intelectual, mas que é sempre pra si mesmo. Ele talvez nem seja didático, mas vai te abrir uma porta do conhecimento do teu corpo, do mundo…

 

Mas esses romances, que são best-sellers, eles chocam determinado público, abrem também.

 

Isso é uma questão importante. Mas o choque, se você pensar, é um choque previsto. Aliás, eu me pergunto: será que choca? Eu sei que foi proibido, sei lá, num estado brasileiro, que ainda tem aquela coisa da moral e dos bons costumes. Mas vamos pensar aqui, São Paulo, um meio mais urbano, 2013. São milhões de pessoas lendo, não chocou.

 

Eu fui obrigada a ler o livro porque um amigo meu, editor do caderno Ilustríssima [da Folha de S.Paulo], me pediu uma resenha. Achei uma coisa horrorosa do ponto de vista literário. Mas, gente, é uma história superconvencional, de amor ingênuo, de uma mocinha virgem – em 2013, entende? –, ela está apaixonada por um milionário lindíssimo. Ela está ambientada num cenário meio S&M [sadomasoquista], mas é a história mais tradicional que existe. E sabe qual o objetivo da mocinha? É casar com o milionário! É curar ele – pra usar essa palavra que está em voga no Brasil.

 

Então, quando a gente vai olhar, vê que esse é um choque falso, porque ele está reafirmando uma série de valores que são bem tradicionais.

 

Igual àqueles livros de banca, como Bianca, Sabrina…?

 

É. O Cinquenta tons de cinza é a atualização disso. E isso, por sua vez, é a atualização de uma coisa muito antiga. Quando você vai estudar o começo do romance moderno, começa a ver essas narrativas muito românticas. Na França do século 17 elas se chamavam histoires tragiques, as histórias trágicas, que são o quê? Uma mocinha pobre, sofredora, de ótimos sentimentos… e aí você já sabe que do outro lado tem: um homem muito forte, rico, que em algum momento vai salvá-la. É uma trama que captura a imaginação, e esse é o foco de identificação com a leitora: “Ai, essa mocinha sou eu, e vai aparecer o príncipe…”.

 

O Marquês de Sade pega essa trama e faz Justine. Só que ele desarma essa bomba romântica.

 

Como é Justine?

 

É um romance em que Sade era tão interessado que ele o escreve três vezes, aumentando a cada vez. É a história de duas irmãs: Juliette e Justine. Elas são de uma família muito rica e ficam órfãs muito cedo. Como toda moça rica na França no século 18, elas são criadas num convento – que, obviamente, é o maior antro de corrupção que pode existir, pra Sade. Então, assim que as duas meninas ficam pobres, a diretora do convento faz as piores coisas com elas, expulsando-as, inclusive. E isso vai dar dois destinos completamente distintos, que são dois livros. Um é o Juliette, ou as prosperidades do vício, e o outro é Justine, ou os infortúnios da virtude.

 

Justine é o tipo completo da virtuosa. Tudo pra ela é virtude, ela acredita em todo mundo – obviamente acredita em Deus. E a Juliette é ateia, não acredita em nada, é uma moça superesperta. A Juliette se torna uma grande libertina. Tem uma carreira muito bem-sucedida na prostituição, mata vários de seus amantes, acumula uma enorme fortuna. Ela é, segundo o poeta Apollinaire, “o ser mais livre que já existiu sobre a face da terra”.

 

A Justine tem a carreira oposta, ela é o protótipo daquela moça que tem um destino trágico. Então ela encontra uma velhinha, que parece muito boazinha, que vai ajudá-la… mas essa velhinha na verdade é uma cafetina de um grande bordel, e ela vai ser seviciada lá! Então ela consegue fugir, e está numa floresta, sozinha, quase desfalecida, e vê no alto de uma montanha um mosteiro, e ela chega lá e diz “eu vou me refugiar aqui pro resto da minha vida!”. Ela bate… e abre a porta um monge, que diz pra ela: “Entre, minha filha. Não há casa na França onde se formem moças como aqui”. E ela entra nesse mosteiro, que era uma capelinha pequenininha, e ele tem sete andares subterrâneos, onde os monges se entregam às piores lascívias [risos]!

 

E assim vai indo. Até que no final dos dois livros, que são imensos, elas se encontram. E, depois de Justine ter passado pelas piores coisas que existem na terra, a irmã a convida para uma orgia. Justine quer fugir, abre uma janela e o corpo dela é atravessado por um raio! Ela morre dessa forma cósmica. E Juliette ainda se vale, com os libertinos, do corpo da irmã para uma orgia particular. Mas isso é uma sinopse, né.

 

Justine é esse mito, que está aí até no Cinquenta tons de cinza, e que Sade desmonta.

 

Mas isso não é político?

 

É. Mas quando eu digo que Sade não é imediatamente político, é que ele não tem um projeto mais imediato. Por exemplo, o grupo [de teatro] Os Satyros – que são meus amigos, com quem aprendo muito –, eles costumam fazer uma leitura muito política de Sade. Os 120 dias de Sodoma, que é um livro que vai retratar todas as fantasias sexuais, terminava na peça como se se passasse em Brasília. A corrupção que está em Sade não é a mesma de Brasília! Não tem nada a ver. Nesse sentido me grila essa leitura política.

 

É que eu pensei na política como o desmonte de um status quo. Que acho que é a nossa visão na Geni: a política não só como a coisa institucional, mas uma atitude de não conformidade.

 

Concordo. Essa liberdade inconcebível de Sade atinge o sentido mais profundo da política.

 

E o filme do Pasolini, Salò ou os 120 dias de Sodoma, o que você acha dele?

 

Eu tenho uma atitude ambivalente em relação ao filme. Pegar essa estrutura que está em Sade, essa fantasia, e transportá-la para a República de Salò [Estado fascista criado por Mussolini no norte da Itália] é um reducionismo. A violência que está no fascismo não é a que está em Sade. A violência de Sade é poética, ele quer rivalizar com as forças da natureza. O libertino de Sade está olhando o vulcão Etna, que está em pleno trabalho, e diz: “Eu queria ser esse vulcão”. Por isso eu digo: ele está falando daquilo que o homem não é. Então pegar essa violência poética e transferi-la para o fascismo, eu acho uma leitura equivocada, a princípio.

 

No entanto, esse filme é tão bem-feito que não para aí. Ele vai entrando nesse imaginário, e, quando você chega no fim do filme, ele está em outro lugar. E aí o Pasolini se conecta com Sade. É o lugar do impossível, do insuportável, daquilo que perde a medida. Ele lança aquilo tudo a um ponto de fuga que você não captura mais, que não cabe mais ali.

 

É um filme interessante, mas ele reduz a violência cósmica de Sade a um evento que foi vivido. Eu acho que Sade trabalha com o plano do inconcebível, que se mantém assim. E a violência do fascismo e do nazismo é da ordem do impraticável, mas que foi praticado.

 

Em uma entrevista, o Michel Foucault fala que o Sade estava sendo considerado, nos anos 60, precursor da libertação sexual. Mas que ele achava que o Sade era precursor dos campos de concentração. O que você acha disso? Por que a violência do nazismo também é inconcebível, mas foi posta em prática.

 

Eu acho que Sade não é nem precursor do nazismo, nem, de jeito nenhum, da liberdade sexual. Eu leio a obra dele como uma espécie de teatro do desejo, onde se pode tudo como teatro. Ela é uma fantasmagoria, nunca um projeto pra prática. No teatro do meu desejo, eu sou um déspota – que não é Hitler! Eu sou um déspota porque posso manipular, nesse teatro, com toda a liberdade que eu quiser. Como isso pode se conectar com a prática, isso é outra coisa.

 

Até porque, só pra te dar um exemplo, um libertino de Sade, antes de ir pra uma orgia com 400 pessoas, ele toma de 50 a 100 garrafas de vinho [risos] e faz uma refeição com carne humana. Coisa que, pra qualquer um de nós, por mais atlético que você seja, não é praticável. Qualquer um de nós que tome dez garrafas de vinho vai pra um coma alcoólico. O nazismo concebeu o impossível, o colocou em prática e tornou-o possível. A partir do momento em que se criaram fornos, com aquela racionalidade, para cremar corpos, aquilo se tornou o nosso possível como humanidade. O que o Pasolini faz é dar estatuto de realidade ao voo mais alto da fantasia. Mas esse teatro do desejo, em que o sujeito é soberano, e até déspota, isso não tem dimensão de realidade.

 

Eu até acho que a elaboração desse lugar tão radical permite que a gente, na nossa vidinha comum, não queira partir para a prática. Mas isso revela um pouco de medo da fantasia, como a gente quer imediatamente aprisionar a fantasia.

 

Eu acho que Sade não é nem precursor do nazismo,
nem, de jeito nenhum, da liberdade sexual.
Eu leio a obra dele como uma espécie de teatro do desejo,
onde se pode tudo como teatro

 

O Cinquenta tons de cinza não dá medo, né?

 

Dá um medinho [risos]. Mas não dá medo. Em Sade, não existe sadomasoquismo, não é possível no universo dele. A última coisa que o sádico quer no mundo é encontrar um masoquista, porque a fantasia soberana dele é infligir dor em todo mundo! Se aparecer alguém que diz “bate, que eu gosto”, pra ele já não interessa.

 

E se você pegar lá o Vênus de peles, do grande escritor do século 19 que foi o Leopold von Sacher-Masoch, o masoquista é que quer constituir o sádico, a fantasia dele é que é soberana. Esse casamento entre o sádico e o masoquista é impossível pela literatura, porque são fantasias absolutas e soberanas. A ideia S&M não tem a ver nem com Sade nem com Masoch, ela é o combinado de outra coisa. Ela é pragmática.

 

Eu acho que um clube S&M pode até me chocar, mas ele é uma pragmática, não está voltado ao sentido maior dessa fantasia, não é nem pode ser voltado ao absoluto. Ou não sobraria ninguém de cada noitada.

 

Acho que o problema que está aqui na nossa conversa é qual a ligação entre fantasia e corpo. Em Sade, você está só no plano da fantasia. Como eu disse: você não consegue tomar 50 garrafas de vinho e depois ir pra orgia com 400 pessoas. Você não consegue nem um papai e mamãe [risos]! O corpo é um limite, é a questão do praticável. Um personagem de Sade fala assim: “Ah, eu gostaria de ser como Alexandre, deixar a terra toda devastada com os meus cadáveres”. Qual a diferença entre isso e efetivamente matar, o George W. Bush mandar as tropas americanas matarem metade do Iraque? Qual a diferença entre essas duas soberanias? É o praticável. É também a diferença entre eu imaginar a maior orgia, em que todas as pessoas estariam munidas de canivetes, uma coisa sangrenta, e realizar isso. O clube S&M é um espaço de realização. Como se conecta essa experiência da dor que você está infligindo ou sentindo com a fantasia disso?

 

Eu queria entender um pouco mais esse paradoxo, que você mencionou, de abandonar o feminismo e ir pro Sade. Quais são as suas críticas ao feminismo?

 

Eu acho que essa literatura faz uma defesa tão profunda da liberdade… eu não gosto muito desta palavra, porque ela está muito comprometida, mas da liberdade individual. Não do indivíduo burguês, mas pensando em individualidade mesmo, de onde você aloca a sua liberdade, a singularidade do seu lugar no mundo.

 

Quando eu digo que no meu desejo – não na minha prática sexual, é diferente – eu sou um déspota, estou dizendo de uma singularidade minha que não quero que seja aprisionada em nenhum lugar. É a partir dessa singularidade que você cria alguma coisa no mundo. E Sade representa isso.

 

Todos os feminismos foram importantes no sentido de reivindicar uma liberdade para a mulher, como os movimentos gays, né? Reivindicam um lugar, um direito, uma voz. Mas esses movimentos reivindicam uma particularidade – ser mulher, ser gay, ser transexual – que, no momento da reivindicação, é uma particularidade coletiva. É uma noção de identidade. Quando eu deslizo pra Sade, a afirmação é de uma singularidade, não há identidade coletiva nele. E a partir desse lugar você pode criticar esses movimentos. A ação afirmativa é muito importante, mas o risco dela é também dar uma fôrma, o que outra vez é limitador.

 

Você acha que nesses últimos 30 anos, desde que você começou seus estudos, a gente encaretou, como algumas pessoas dizem?

 

Eu não concordo que a gente tenha encaretado. Vejo muitas pessoas da minha geração falando “nós, da época de Woodstock e tal”, eu não tenho essa idealização de ter sido da geração 68. Obviamente a presença do mercado, nas nossas vidas todas, é muito mais ostensiva hoje. Mas quando me falam “nós encaretamos” eu falo “nós quem, cara-pálida? Quem encaretou?” [risos]. Esta conversa que a gente está tendo talvez fosse mais difícil há 30 anos, estávamos começando a ter essas conversas.

 

Vou contar uma coisa singela pra vocês, uma das coisas que mais me tocou, logo que comecei a trabalhar com sexualidade e erotismo. Uma vez me ligou um jovem, que era de algum grupo gay que estava começando, me chamando pra dar uma palestra. Eu fiquei superanimada! A gente estava falando ao telefone e teve uma hora que ele começou a falar bem baixinho, e disse: “Olha, não estou podendo falar agora, porque estou no meu trabalho e tem gente ouvindo”. Aquilo me tocou tanto! Uma pessoa não podia convidar uma careta professora universitária que nem eu pra um debate sobre literatura! O nível de cerceamento… ele não estava me convidando pra uma orgia, nem pra tomar uma cerveja! Nesse sentido, a gente melhorou. Nossos desafios hoje são diferentes, mas não acho que encaretamos.

 

A gente tem o desafio do mercado. E de pensar as ligações entre as fantasias e as práticas. Eu assino qualquer documento contra a pedofilia! Agora, eu adoro O caderno rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst, que são as memórias sexuais de uma menina de oito anos de idade. E eu adoro Lolita, de Nabokov. Como é que eu faço pra lutar contra a pedofilia e a favor de Lolita e de Lori Lamby? Isso é o nosso desafio. Como nós podemos lutar para que o impraticável não seja praticado, e ao mesmo tempo pelo direito da literatura de dizer tudo?

 

O que você viu de produção recente, nesses últimos 30 anos, que mexeu com você assim como o Sade mexeu?

 

Pegando o gancho do que eu estava falando, acho que a nossa tarefa ética hoje é estabelecer diferenciações, não falar de forma genérica. Eu fiquei muito contente de conhecer a Geni, por exemplo, de encontrar pessoas que estão pensando parecido, e isso acho que tem mais a ver com as interrogações colocadas do que com as respostas.

 

Pra quem estuda literatura – vou falar especificamente – aconteceu muita coisa legal. Tem o Roberto Piva, com um trabalho muito bom, o Glauco Mattoso, o Waldo Motta, a própria Hilda Hilst, que escreveu a pornografia dela nos anos 90. Esse pessoal fez um trabalho incrível, porque, além de enfrentar a indústria pornográfica, enfrentou um momento de maré baixa da sexualidade, que foi a aids. Quer dizer, de um lado tinha a doença, do outro essa saúde robustíssima da indústria cultural.

 

Sempre tem coisas muito legais. O que a gente tem que fazer é procurar, mesmo. Você acha uma coisa aqui, outra ali. Na área de vídeo, hoje tem o Renê Guerra, o Marcelo Caetano, muita gente fazendo coisa boa. Não sou pessimista. A grande indústria pornográfica está aí, e tem a internet, mas há pontos de resistência – e resistência também pela alegria. O sexo pode ser pensado pela via da morte, do desfalecimento, mas é força de Eros também, é alegria, energia.

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E os seus estudos de agora, sobre prostituição? Você está estudando a prostituta como personagem?

 

Também, mas mais do que isso. É a prostituta como forma de pensar. O Georges Bataille diz: “Eu penso como uma prostituta que se despe”. Que jeito é esse? É um jeito que não é idealizado, é pensar junto com o corpo.

 

Prostituição e literatura andam lado a lado. A própria palavra pornografia quer dizer “escrito sobre prostituta”. Desde sempre a prostituta é um tema, é um jeito de pensar, ela faz parte da literatura. E aí não dá pra ter um discurso moralista.

 

É muito importante a gente ouvir a prostituta, não só quem fala sobre ela. Porque muitas prostitutas defendem seu próprio ofício, e eu vou falar o quê? Que eu sou iluminada e vou falar por elas? Não, você tem que ouvir. Claro, existe o tráfico de mulheres, que é uma barra-pesadíssima, mas as prostitutas têm uma fala delas.

 

E têm uma escrita?

 

Têm, tem escritoras também. E há escritoras e escritores que falam sobre prostitutas, ou com as prostitutas, que acho mais interessante, de uma forma notável. O Nelson Rodrigues dizia que a prostituição não é a profissão mais antiga do mundo, é a vocação. E é uma coisa interessante, esse lugar do sexo que não precisa ter amor, casamento, aliança, comprar uma casa junto.

 

O problema do dinheiro na prostituição também é muito moralizado. A partir do século 19, o dinheiro é muito moralizado. Por que o sexo não pode ter dinheiro junto? Nos grandes livros sagrados da humanidade, a Bíblia, o Gilgamesh, existe a figura antiga da prostituta sagrada, que também recebia. E a prostituta sempre dá muito mais do que recebe. O que ela recebe, você pode quantificar: são dez reais, são mil dólares. Mas o que ela dá você não pode quantificar. É igual ao artista. A partir do modernismo, o que os artistas se identificam com a prostituta é um negócio incrível. O artista pode vender sua obra por mil reais ou por 1 milhão, mas o que a obra nos dá não é quantificável.

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Confira ainda nesta edição: Eliane recomenda 35 livros para uma biblioteca erótica!

*Colaborou Carolina Menegatti.

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