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ESCULACHO | “Esta não é a hora de fazer militância”
No afeto entre duas mulheres, como reagir em uma situação de vida e morte? Por Lucy Lima
Primeiro, se quiser fórmulas, não leia este texto. O objetivo neste número da Geni era falar sobre mitos e masturbação, mas não posso deixar de compartilhar o que me derrubou nesse mês de julho. Então utilizarei recursos oníricos para relatar uma das experiências mais duras que passei nos últimos tempos: acompanhar duas mulheres que se amam em um momento de vida e morte.
Tenho que explicar a história do começo: existem no plano real duas mulheres que se amam. Não se definem como lésbicas, bissexuais ou qualquer coisa que caiba em uma sigla. Esse amor e convívio cotidiano beiram os 20 anos. Ambas compartilharam dores, delícias e tudo mais. Educaram os filhos, trabalharam juntas e vivem até hoje uma entrega que invejaria qualquer casal.
Eu sou completamente apaixonada por essas mulheres. São minhas amigas, terapeutas, mestras, gurus e fadas madrinhas. Nada que eu que pudesse elencar aqui deixaria claro a importância que têm em minha vida.
Pela generosidade do destino, em muitos momentos, trabalhamos juntas. E em uma viagem de trabalho a coisa virou:
— Lucy, você pode vir aqui AGORA?
Estranhei o convite, afinal acabava de sair do quarto delas, estávamos hospedadas em um hotel no interior de São Paulo, conversávamos e estava tudo bem. Nem pensei duas vezes e disse “já estou indo”. Quando cheguei ao quarto, uma delas me recebeu com ansiedade e disse: “Ela NÃO está bem”. Fui ao encontro da outra e, quando olhei, ela estava desfigurada. Com a boca torta, parecia bêbada, não tinha controle dos seus movimentos e, acreditem, estava de bom humor, meio piadista (o que não é típico). Pensei: “Não acredito! Minha amiga está tendo um AVC!”.
Acalmei ambas e liguei para a recepção, disse que precisava do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Em 7 minutos a equipe estava lá. O que foram eficientes no tempo não o foram no atendimento. Minha amiga não queria ir ao hospital, não tinha consciência do que estava acontecendo. Os dois rapazes do Samu “rezaram” a regra de que só poderiam levar a pessoa se ela quisesse. Fizemos um minibarraco e eles toparam nos levar ao hospital. Hospital? Por não considerarem o quadro da minha amiga relevante, nos levaram para um lugar que apelidei, carinhosamente, de Auschwitz.
De hospital em hospital
A região inteira sofria com a falta de médicos e de hospitais públicos e, como cereja do bolo, a maioria dos profissionais estava em greve. Em Auschwitz tinha uma médica-residente que disse ter certeza que não era um derrame, apenas um mal-estar. Sabíamos que não era só isso. Discuti com a médica. Mas ela tem um diploma. Passou um remédio que serve pra qualquer coisa e nos mandou pra casa.
Não tínhamos como voltar pra casa, estávamos a 220 quilômetros de distância. Voltamos para o hotel, no limite o Samu chegaria em 7 minutos. Esperamos ela acordar e no dia seguinte a levamos a um hospital particular da região. Ela não tinha plano de saúde, mas o que fazer em uma situação como essa? Bora rachar a dívida com todxs e salvar a vida dela!
Na entrada do hospital fomos recebidas por uma equipe de enfermagem que já reconheceu o caso na hora. Era um AVC e todxs trataram com urgência. Ela foi bem atendida, recebida etc. Mesmo assim, a situação não era nada fácil para quem estava ali para tomar todas as decisões – a esposa dela. Que, desde que chegou, se apresentou como amiga.
Somos vulneráveis
Quando realmente vi que a coisa era grave, cheguei e disse: “Acho importante você dizer que é a esposa, já que, se precisarmos de uma decisão importante, quem a deve tomar é você”. Ela, com aqueles olhos aflitos, me respondeu: “Esta não é a hora de fazer militância, eu não quero expô-la ao preconceito que você sabe que existe”. Ao ouvir isso, eu sofri. Um sofrimento maior do que a própria situação me proporcionava. Como uma pessoa não pode se colocar num momento como esse? Como?
É só lembrar do mundo cão em que vivemos. Qualquer pessoa que não atenda às expectativas heteronormativas pode sofrer sanções a qualquer momento. E como estar suscetível a essas sanções num momento como esse?
Eu sou uma militante. Todo mundo sabe. Mas como levantar essa bandeira e contar com a alteridade dxs profissionais de saúde no seu momento de maior vulnerabilidade? Você acredita que simplesmente aquele semestre sobre ética, que elxs devem ter tido na faculdade, vai resolver o preconceito e a cultura de ódio que existe na sociedade?
Pra você, que nunca pensou nisso: pense. Pois acontece todos os dias. Eu só fui privilegiada de viver um desses momentos.
Até hoje, não sei se faria diferente. Acho que sim. Mas graças às Deusas não houve a necessidade de tomar uma decisão difícil, e elas não tiveram que se expor. Apesar de ficar claro que a relação de afeto entre as duas era distinta durante todos os dias de UTI e internação.
O que tem de onírico nesta história?
Apenas o meu desejo mais profundo de que isso fosse um sonho. Mas não foi.
Conseguiram pagar o hospital. Mas, e se além de tudo isso, nem essa possibilidade tivessem? Passei pelo mesmo apuro com minha mãe há pouco tempo, e a aventura era correr de ônibus de hospital em hospital buscando atendimento. Mas vamos pensar positivo: minha mãe conseguia andar, olha que legal!
Minha Diva agora está em casa, recebendo o apoio de sua companheira e de amigxs. Tem se recuperado das sequelas causadas por esse episódio. Mas, depois dessa, estou reavaliando tudo. E a pergunta que tenho me feito é: como reagir em uma situação de vida e morte? Principalmente se você não é o que muitxs gostariam que você fosse.
Acho que o jeito é seguir a vida e ir militando sempre que dá. O que não rola é isso continuar acontecendo. Seja “isso” o não acesso à saúde pública de qualidade ou a exposição à homofobia.
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