Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

resenha

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Lou e Leo

Que nada nos defina, que nada nos limite. Por Márcio de Deus

De 18 de junho a 11 de julho de 2013, a peça documentário Lou e Leo ocupou o palco do Centro Cultural São Paulo com direção de Nelson Baskerville e dramaturgia de Baskerville e Leo Moreira Sá. O espetáculo conta a história de Leo (que nasceu Lourdes Helena e, aos sete anos de idade, em seu primeiro dia de aula, já se recusava a vestir uma saia que era parte do uniforme de escola, pois não se identificava com o gênero feminino).

marcio_11Leo interpreta elx mesmx. Durante a apresentação, acontecimentos autobiográficos são expostos e feridas antigas são abertas quase liricamente em relação aos percalços sociais que umx transgênerx precisa (mas não deveria) enfrentar. Em 2011, Baskerville e Moreira trabalharam num outro projeto que tratava sobre a adaptação do corpo de acordo com o gênero com que a pessoa se identifica. Nesse período, Leo estava prontx para se submeter a uma cirurgia para retirada dos seios, fazer implante capilar de barba, além de algumas outras modificações estéticas faciais para tornar seu corpo mais masculino.

O cenário da peça e os figurinos dxs personagens lembram os clubes dos anos 80. Referências a clubes gays da noite paulistana abundam, e xs espectadorxs mais nostálgicxs riem, pois sua própria história mistura-se ao relato de Leo. A atriz Beatriz Aquino (que se desdobra em várixs personagens na peça para dar apoio à narração) e Leo Moreira também não decepcionam quando o assunto é cantar. Elxs animam o público com hits como “Candy”, de Iggy Pop, “Smoke on the Water”, de Deep Purple, entre outros.

A história não tem começo, meio e fim bem definidos. Na maior parte do tempo, a memória parece tomar conta do espaço e, talvez por isso, o efeito é uma ausência de linearidade. A subjetividade da memória parece repetir os acontecimentos mais importantes, trazendo-os de volta à cena mais de uma vez.

A organização de fatos aqui, portanto, é apenas didática e cronológica. Vejamos alguns acontecimentos que a narração traz: o início, descrevendo uma cena no interior – a visão ou o testemunho de um objeto incandescente que elx não sabe explicar o que era. Seu primeiro dia na escola, em que fora obrigadx a vestir-se como uma menina. As aventuras de infância de Leo (que ainda era Lou), que, ao ver seu amigo “brincar” com a empregada, é tomadx pelo desejo de poder fazer o mesmo. Sua mudança para a casa de familiares onde fora abusadx sexualmente. A mudança da família para São Bernardo do Campo e a sua possibilidade de anonimato ao menos temporário. Sua entrada no curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP) e sua mudança para o campus da universidade, onde conheceu as famosas festas uspianas e teve acesso a ferramentas teóricas para entender mais sobre sexualidade, sobre seu corpo e suas possibilidades. Mais tarde, sua entrada na banda As Mercenárias, primeira banda punk rock feminina no Brasil; o uso de drogas; sua união breve com uma linda modelo; o rompimento para juntar-se à travesti Gabriella; posteriormente, seu pedido negado de casamento no religioso e o casamento consumado no civil (com seus nomes de batismo); e como essa última relação escandalizou o meio gay, fazendo-xs serem alvos de fofocas e críticas (o que poderíamos interpretar como preconceito). Depois, o fim da união do casal com a prisão de Leo por tráfico de drogas em 2004 e seus cinco longos anos de pena, sua acolhida por amigos e sua oportunidade de recomeço na companhia de teatro Os Satyros.

É possível dizer, numa leitura quase brechtiana, que a peça faz uso de recursos épicos como a narração, a legenda, a quebra da quarta parede de tempos em tempos, a historicização, mas com ênfase no autobiográfico.

Mesmo com essa ênfase há um grande ganho para o público na representação da discussão de assuntos que são normalmente varridos para debaixo do tapete por uma sociedade que ainda vive nos moldes patriarcal e burguês, na qual apenas dois gêneros são definidos de forma rígida como aceitáveis. Por exemplo, quando Leo expõe sua dificuldade de utilizar um banheiro público, elx narra um episódio no qual estava utilizando o banheiro feminino e, ao sair, estava sendo esperadx pela segurança. Elx teve de mostrar seu documento de identidade para ser liberadx. X personagem ainda explica que não utiliza banheiro masculino por temer por sua integridade física. Isso nos faz pensar nessa divisão dicotômica entre masculino e feminino e no quão comum essa dificuldade e constrangimento devem perpetuar-se entre transgêneros.

Além disso, a peça traz também um episódio que nos leva a pensar na vulnerabilidade infantil. Leo é estupradx por um familiar que estava cuidando delx com o consentimento de seus pais. Poderíamos entender que era alguém confiável para a família. A narração começa tranquila e audível, quase como se estivéssemos numa cena romântica, ao som de Elton John. De repente, a música torna-se mais alta do que a voz do narrador e apenas podemos entender o que se passa através da legenda no telão. A representatividade e a teatralidade da cena dão conta de mostrar como a voz de uma criança ou adolescente que sofre abuso é silenciada principalmente por medo e culpa.

Essa peça documentário tem outros desdobramentos tanto estéticos quanto temáticos, mas para não contar tudo e deixar as melhores cenas em suspense ficamos por aqui. E para aqueles que perderam e ficaram com vontade de assistir, a peça volta em cartaz no Espaço dos Satyros, neste mês de agosto.

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