resenha
Alfred Hitchcock, Bernardo RB, Cecilia Silveira, cinema, corpo, homens, número 2, resenha
Movimentos de Um corpo que cai (Vertigo), de Hitchcock
O corpo do ator Tom Helmore não relaxa. As pernas estão rígidas e fechadas. Por Bernardo RB
À Laura Torres
comes across all shy and coy
just another nancy boy
Placebo
1. Um corpo
Vamos visitar uma cena rápida. John é detetive aposentado. Um antigo colega de faculdade, Gavin, agora rico empresário, o convida para um drinque em seu escritório. Quando começam a conversa, John recusa dizendo que está um pouco cedo para beber. “Você não deveria estar sentado?”, o empresário pergunta. John não para. Responde que não.
Logo Gavin também se levanta. Em vez de uma situação frente a frente com dois homens sentados – um na posição de dono do espaço, o outro como quem ainda não sabe a que veio –, surge uma movimentação constante de falar andando sem saber qual é o ponto, desviando um tiquinho para ir dizendo. O assunto é inquietante. A mulher de Gavin está possuída por impulsos fantasmagóricos. Ele quer que John investigue isso.
“Quer um drinque?” Gavin está impecavelmente vestido de terno, penteado com gel e barbeado, deixando no rosto um bigode. Ele fala dos bons dias do passado, nos quais os homens podiam fazer “o que queriam”. Eles estão em 1958. Gavin deve administrar os bens da família de sua esposa por obrigação. Não há nenhuma relação do seu fazer com ele mesmo, de quem, aliás, saberemos pouco, pois acabará fugindo.
A cadeira de couro tomba ligeiramente para trás quando as costas se largam. A cabeça de Gavin se projeta controladora para a frente, chegando antes. O corpo do ator Tom Helmore não relaxa. As pernas estão rígidas e fechadas.
2. Vertigo
Digo de quando me ensinaram a sentar de pernas abertas, que é assim que homem faz. Perguntaram por que eu juntava as pernas. Eu achava bonito, não tinha por quê. Depois passei um longo tempo reconhecendo-me exclusivamente no que viam em mim, justamente no ponto de encontro do que está em cima com o que está embaixo no humano. Era um respeito a uma forma de estar junto, não tinha nada a ver com beleza para mim. Era mais uma moral. Mas, para quem via, tinha muita estética. Eu achava que isso garantia algum tipo de comunicação.
Insisti em ficar de cócoras muito mais tarde, quando senti que era bom pra bacia, esse céu com terra. Chão pélvico. Descobri que a pélvis, no homem ou na mulher, é espaço a ser esticado, contraído, relaxado e acarinhado sem que isso tenha que servir a sexo ou a gênero. É livre e não serve a nada.
Há sangue para circular na base da coluna, seja essa qual for, e o que está embaixo não se desliga do que está em cima. A prova é física e emocional – basta ver que qualidade de corpo se faz sob constante automonitoração. É diferente daquela que se faz sem ter que controlar disparidades imaginadas ou criar condições para pertencer.
Estou certo sobre o dia em que teremos uma anatomia mais experienciada. Para isso, basta a própria medida do que cada um faz, não é preciso especialista. Corpo é o que sente como vem, e não porque te disseram. Sentir é comunicação. Que efeitos a longo prazo teria rasurar o sentir? Isso diz muito sobre a vida nas metrópoles pós-American way of life.
Quando fiz do sentir uma prática contínua, um amor por sentar no chão também surgiu. Junto com a visão de um futuro com menos cadeira, em que conversar dançando ou dançar andando não fosse árduo, ou só para bailarinos e atores. Antes eu achava bonita uma presença mais apertada da minha parte. É aí que ecoa a cena de Hitchcock. Sobrevive nela o sopro de um corpo velho, que sabe a muitos. Essa força que vem dos anos 1950 não é nostálgica.
Memória que vejo enquanto ajardinamos outra paisagem. Um amanhã com menos cálculo estético sobre nossos membros. Quando digo nós, penso nas bichas. Entretanto, como Sofia Neuparth, tenho dúvidas quanto ao que seja nós. É como o corpo – toda vez que fixam, sai fora das bordas. É físico, mas também é nuvem. Não é sobre pertencer. Aí está por que estar junto é melhor sem se esforçar para ser um sujeito normal.
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Ilustração: Cecília Silveira