Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

resenha

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Multidão

A visibilidade lésbica anônima retratada em Muito prazer: vozes da diversidade, de Karla Lima. Por Marcos Visnadi

Eu sou sua mulher
Chave de cadeia
Buraco do ladrão
Rabo de sereia
Juba de leão”

Vange Leonel, “Rabo de sereia”

resenha

 

 

“De acordo com os estereótipos que a grande mídia vomita em cima da gente, durante a infância e adolescência eu tinha aquela visão de que lésbica nunca era uma mulher feminina, era sempre a feia que ‘virou’ lésbica por não conseguir pegar homem por estar acima do peso, ter bigode e outras construções sociais escrotas.”

 

 

Igual Alexandra Peixoto, só que diferente, eu também tinha muita dificuldade em me encontrar entre os estereótipos durante a infância e adolescência. Afinal, as bichas que eu via eram sempre magrinhas, delicadas, divertidas, bonitinhas. Nada a ver com um menino grande, gordo, tímido, cheio de espinhas como eu. O mais próximo que eu tinha como referência de gay desengonçado e inadequado era o Renato Russo, que não por acaso virou meu ídolo naquele período complicado.

 

 

A fama e a cama

 

 

Renato Russo disse uma vez, numa entrevista, que os únicos gays assumidos do Brasil eram ele, Rogéria e Clodovil. Um pouco de pose de star, mas muito de verdade. Se no começo dos anos 80 Angela Ro Ro saiu do armário sem meias palavras, se desde os anos 90 Cassia Eller nunca escondeu os seios nem os sapatos, entre xs famosxs brasileirxs, de um modo geral, impera uma espécie de “Don’t ask, don’t tell”, aquela política do Exército dos Estados Unidos que até permite que você seja queer, desde que não se diga uma palavra a respeito. Não pergunte, não conte.

 

 

Em alguns casos, isso pode ser visto como uma corajosa negação de identidades forçadas, mas, na maioria das vezes, é só covardia mesmo, bem amparada por um mercado homolesbofóbico que pode puxar o tapete de qualquer pessoa que se atreva a reivindicar os temidos nomes. Lésbica! Gay! As celebridades escolhem evitar a cama para poder descansar na fama que nós damos a elas.

 

 

Logo na introdução do livro Muito prazer: vozes da diversidade (editora Litros de Letras, 2013), Karla Lima bota esse problema na vitrine. Ao se propor a escrever um livro que contivesse diversos depoimentos de mulheres que contribuem para a visibilidade lésbica no Brasil, a autora se voltou para as pessoas que a maioria de nós observa o tempo todo: as famosas. Adriana Calcanhoto, Maria Gadú, Zélia Duncan, Bárbara Gancia, Thammy Miranda e muitas outras cantoras, atrizes, jornalistas e esportistas foram contatadas por Karla, que nomeia todas elas. As respostas ao pedido de entrevista foram muito variadas, mas todas tiveram em comum o veredito: não, nenhuma estava disposta a ser entrevistada para um livro sobre esse tema.

 

 

Logo Karla percebeu que essa negativa em uníssono não dizia tanto sobre a disposição de cada mulher abordada, mas dizia muito sobre sua própria proposta de livro-reportagem: “Exceto pelo potencial de venda, que diferença faz ter ou não gente famosa entre as perfiladas?”. Para a autora, a resposta se tornou óbvia: “Como grupo que ainda luta por direitos que aos heterossexuais são garantidos a priori, muitas de nós, lésbicas, ainda enxergamos a homossexualidade das figuras públicas como um selo de qualidade ou carimbo de valor: uma chancela de aprovação aos nossos amores, à nossa libido, à nossa vida”. Foi então que Karla decidiu por uma viravolta em sua pesquisa que tornou o livro muito mais interessante do que qualquer coluna social.

 

 

Vozes diversas

 

 

São 20 perfis de 23 brasileiras com idades que variam de 18 a 75 anos. Uma atriz que interpretou uma lésbica na TV nos anos 80, uma advogada que trabalha com direito homoafetivo, uma editora. Empresárias, professoras, militantes, mães, mulheres diferentes que têm, em comum, a coragem de contribuir para a visibilidade e a sobrevivência das lésbicas no Brasil. Elas não estão em manchetes de jornal, não têm seus rostos estampados em revistas, não arrastam multidões. Elas são a multidão.

 

 

Chamá-las de anônimas é um jeito de encarar a coisa. A opção de Karla é expor suas personagens sem alarde, quase num papo de comadres, e assim a gente vai conhecendo detalhes bobos, historinhas de infância, vontades frustradas, doenças de familiares, tudo aquilo que todo mundo tem, mas que não faz sentido contar a pessoas desconhecidas. Narrativas desinteressantes para o público em geral, mas interessantíssimas quando estamos entre amigxs, atravessando dias e noites na banalidade do prazer. Karla transforma essas 23 mulheres em nossas amigas.

 

 

Se, para o governo e as políticas públicas, LGBT é (no melhor dos casos) um segmento da população, para nós, LGBTs, essa sigla é sinônimo de comunidade. Boa parte de nós é violentada diariamente nos diversos espaços públicos e privados em que outras pessoas passeiam sem grandes problemas. Somos alvos – às vezes mais visíveis, às vezes menos, mas sempre alvos. E é frequente que só encontremos alguma cumplicidade, algum carinho – que logo se traduz em algum amor-próprio – entre xs diferentes, nossxs iguais.

 

 

O livro de Karla Lima representa bem esse sentimento comunitário. Nas histórias dessas mulheres – lésbicas em sua maioria -, a gente se encontra um pouquinho, se reconhece. Com toda a gratidão e respeito que sinto por figuras públicas como Angela Ro Ro, Cassia Eller e Renato Russo – e com toda a vontade que tenho de que a coragem dessas pessoas se repita cada vez mais –, quem mais importa para a diferenciada que está na pista, diariamente levando pedradas, são as pessoas que não foram sorteadas Garota do Fantástico, as que estão ao nosso lado, amigues íntimes ou não, ampliando e melhorando nosso conceito de família.

 

 

Ainda que fosse interessante ler sobre a vida da Maria Bethania, o que me deixou muito feliz no livro Muito prazer foi encontrar o sorriso e a brabeza da Alexandra Peixoto, que citei no começo deste texto, e com quem eu dividi patrão, ônibus e chão de fábrica há uns anos em São Paulo, mas que não vejo desde que ela mudou pra Floripa. Karla Lima consegue fazer com que todas as desconhecidas entrevistadas sejam tão interessantes e queridas, cada uma a seu jeito, como a Alê é para quem a conhece de perto.

 

 

 

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Ilustração: Paloma Franca Amorim.

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