Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Notícias japonesas

As novas conformações do trabalho feminino e da indústria pornográfica no outro lado do mundo. Por Lia Urbini, do Japão

 

 

Entre 13 e 19 de julho aconteceu em Yokohama, segunda maior cidade do Japão, o 18º Congresso Mundial de Sociologia, organizado pela International Sociological Association. Foi a primeira vez que o congresso aconteceu na Ásia, o que possibilitou a muitxs sociólogxs da região participarem também. Por compromisso acadêmico e muito interesse geral, eu e Aline Sodré fomos pra lá acompanhar o evento e conhecer algo da cena LGBTQ, imigrante e/ou feminista do Japão.

 

 

Ainda preciso digerir e processar muita coisa, aprofundar muitas informações, mas não poderia deixar de aproveitar o momento para enviar algumas notas iniciais sobre esses 20 dias passados entre Tóquio, Yokohama, Osaka e Hiroshima. No momento em que chegamos, havia duas discussões quentes envolvendo o debate de gênero por lá: reverberações acerca da nova regulação sobre pornografia e a questão do “empoderamento feminino” estimulado pelo governo para melhorar a economia. Muitas outras coisas nos chamavam a atenção, mas por ora vou me concentrar nessas duas.

 

Pornografia: arte, expressão e indústria

 

Desde junho deste ano, o Japão considera crime portar material relacionado a pornografia infantil. Sendo o último país do G7 a adotar a medida, ele ainda enfrenta dificuldades para aplicar e interpretar essa e outras regulamentações envolvendo sexo.

 

Uma vasta gama de mangás e animações se vale do universo de tabus sexuais (o que inclui incesto, pedofilia, estupro etc.) e, por enquanto, não será afetada, uma vez que não envolveria, segundo a lei, pessoas reais. Há organizações de direitos humanos apoiando essa decisão, e outras contestando essa justificativa com o argumento de que esses materiais fomentariam o desejo por pornografia infantil real. De todo modo, em 2013, a indústria de mangás e animes teve lucro estimado de US$ 5,9 bilhões, o que definitivamente explica a defesa da liberdade de expressão dos desenhos por parte do governo.

 

Outra controvérsia em torno da nova lei foi a prisão da artista plástica Megumi Igarashi, que estava fazendo uma vaquinha virtual para financiar um novo projeto. Para os maiores apoiadores, ela oferecia imagens em 3-D de sua vagina para download. O debate é complexo, envolve muitas questões – e, para quem chega de fora, a coisa parece mais incompreensível ainda. É relativamente fácil se deparar com as propagandas do festival da fertilidade, o Kanamara Matsuri, ou com representações explícitas de órgãos genitais em locais públicos. Como, então, compreender a prisão de Megumi (que já foi solta, mas ainda está sendo processada e, se condenada, pode ficar presa por até dois anos)? Os artistas seriam os próximos alvos da censura? Ou o caso de Megumi foi uma exceção, uma aplicação indevida da lei? O problema está na distribuição pela internet? Mas qual seria a diferença entre o molde 3-D da vagina da artista e as incontáveis bonecas infláveis e outros artigos de representação? Parece algo controverso dentro do próprio Japão.

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Japoneses em extinção: economia e empoderamento das mulheres

 

O segundo tópico, bastante discutido também no congresso em que estive, dizia respeito aos atuais pronunciamentos e medidas do primeiro-ministro, o liberal Shinzo Abe, com relação ao estímulo do crescimento do número de mulheres no mercado de trabalho. Shinzo e boa parte do governo anunciam hoje que esse é um dos principais pontos para políticas públicas, mas há tempos o governo japonês busca, por meio de leis, reverter algumas tendências sociais, com os planos para a igualdade de gênero, de 1996, e a lei de igualdade de oportunidades no emprego, reformulada em 1997, por exemplo.

 

Para se ter uma ideia do cenário vivido pelas mulheres japonesas, o país hoje possui a maior expectativa de vida do mundo, ocupa as primeiras posições dos índices de desenvolvimento econômico e social e, no entanto, está no 104º lugar no World Bank Gender Gap Index, indicador de desigualdades de gênero. Ao mesmo tempo em que forma um dos maiores números de mulheres universitárias do mundo, tem apenas 63% delas trabalhando, média bastante baixa em comparação com países de economia semelhante. E mesmo considerando as mulheres que trabalham, 70% delas deixam de trabalhar por dez anos ou mais depois de ter o primeiro filho – nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa é de 30%.

 

Outro índice bastante dissonante é o de nascimentos fora do casamento, de apenas 2% no Japão, em comparação com os 30% ou 40% de outros países “ricos”. Esses e outros dados sobre a produção e a reprodução dos japoneses levam especialistas a estimar que 500 cidades ou mais do país podem desaparecer por conta das reconfigurações populacionais necessárias para reproduzir o padrão de vida nos moldes atuais.

 

Esse cenário vem sendo interpretado por muitos como negativo, em termos de perspectivas de futuro. O fato de o país estar envelhecendo anuncia a necessidade de transformação das bases produtivas, o que torna o momento propício para que o discurso de emancipação feminina seja canalizado nos termos de igualdade de gênero como sinônimo de igualdade de condições de trabalho. No entanto, ainda que seja uma via clássica, pela qual mulheres de outros países conquistaram outras igualdades a partir desta, parece importante conectar essa ação de “empoderamento por cima” das mulheres com outras posturas do governo japonês, como por exemplo o desejo de expandir a força de trabalho sem necessariamente abrir as fronteiras para estrangeiros.

 

Outro fator a se observar pode ser a tendência de medir tudo a partir de uma única régua inquestionável – nesse caso, a positivação da mulher trabalhando fora de casa. Que fatores ajudariam a explicar a desigualdade de gênero nesses níveis? Quanto dessa desigualdade é indesejável? Quem deseja o quê? Questões para pesar na balança antes de avaliar determinadas políticas escoradas em pretensas demandas universais.

Para saber mais:

– site estadunidense de ONG em defesa da livre expressão nos mangás e animes: http://cbldf.org/2014/06/what-does-japans-new-child-porn-law-mean-for-manga-and-anime/

– site da Unicef, uma das organizações que contesta a permissão de pornografia infantil nos mangás e animes: http://www.unicef.org

– link para reportagem da CNN que traz informações traduzidas pro inglês do mercado de mangás e animes: http://www.cnn.com/2014/06/18/world/asia/japan-manga-anime-pornography/

– foto em Creative Commons do Kanamara Matsuri: https://pt.wikipedia.org/wiki/Kanamara_Matsuri#mediaviewer/Ficheiro:Kanamara_Matsuri_2007_(phallus_festival)-crop.jpg e link para texto do festival da fertilidade escrito por um cara que conheci lá: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/04/090406_japaofertilidademl.shtml

– site de Megumi Igarashi, com todas as suas obras sobre vaginas: http://6d745.com

– site da embaixada do Japão no Brasil, com informações sobre as leis de igualdade de gênero e de oportunidades de emprego: http://www.br.emb-japan.go.jp/

– link para o World Bank Gender Gap: http://data.worldbank.org/topic/gender

Agradecimentos especiais à acolhida sensacional e fundamental de Thamires e Ivan em Tóquio, às conversas com Diego, de Nagoya, ao povo do karaokê do bar lésbico Goldfinger, ao Stefan, ao Ruy e ao povo do congresso, à Gabi e aos Itocazos todos, ao Poneis, à Bianca Muto, à Aline Sodré, companheira de viagem, e em geral a todos os bons encontros que possibilitaram um estar em casa desde tão longe.

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Ilustração: Helliot.

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