Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

geni no mundo

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Feminismo e ecossocialismo

Relatos da Venezuela. Por Juliana Bittencourt, da Caravana Climática

 

 

Semeando petróleo

 

A Venezuela aspirou, durante os anos correspondentes ao governo de Hugo Chávez, ao chamado socialismo do século XXI, um novo modelo a ser construído a partir da revolução bolivariana. Foram criados os conselhos comunais que institucionalizaram o poder popular, empresas estrangeiras foram nacionalizadas e um extenso programa de políticas governamentais implementado. Este processo também significou a ampliação do aparato estatal − com a criação de ministérios e cargos públicos − e o aumento do poder não só político, mas também econômico dos militares.

Não representou totalmente uma ruptura, já que a desarticulação do capitalismo não implicou uma mudança no modelo econômico extrativista, o Estado agora é mais oneroso e suas políticas dependentes dos rendimentos do petróleo.

Entre casos de corrupção e relatos de abuso de poder militar − como as violências cometidas na comunidade de Caño Sagua, lugar que visitamos na região da Guajira (que abarca partes da Colômbia e Venezuela onde vivem os wayuus, povo originário que sempre habitou esta região e tem direito à dupla cidadania), o país vive uma crise de abastecimento de alimentos e inflação provocada por um modelo que não conseguiu semear o petróleo e diminuiu, cada vez mais, a produção de alimentos.

 

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A pouca diversificação da economia, somada ao fato de a região passar por um extenso período de seca, levou os wayuus a envolverem-se com o bachaqueo (contrabando) de alimentos e gasolina da Venezuela para a Colômbia. Diariamente passam caminhões com gasolina (as chamadas Caravanas da Morte) e outros com alimentos (aqueles subsidiados pelo governo são mais baratos na Venezuela e revendidos na Colômbia). Os militares não só estão envolvidos como também se beneficiam economicamente do contrabando, levando a cabo práticas de abuso de autoridade para suposto controle deste delito. Os wayuus são acusados de forma generalizada, inclusive racista, de bachaqueo e muitos são impedidos de comprar alimentos. Caño Sagua, por exemplo, é uma comunidade de pescadores que sofreu, no dia 5 de julho, violações de direitos humanos: os militares entraram na comunidade, queimaram motores, agrediram e maltrataram moradores. Este e outros casos dificilmente são difundidos na mídia, aparecem apenas em alguns meios como a rádio Fé e Alegria, de Paraguaipoa, que pertence aos jesuítas. A mídia comunitária ganhou espaço no país, mas em muitos casos deixou de ser alternativa no momento em que se alinhou ao governo, perdendo espaço para a crítica ou autocrítica. São os chamados meios goburnitários.

As políticas governamentais, ao apostarem no modelo do petróleo, não estimulam formas de desenvolvimento econômico alternativas, e como conjunto, a autonomia e o empoderamento dos cidadãos ficam prejudicados.

Embora “contribuir para a preservação da vida no planeta e a salvação da espécie humana” seja um dos grandes objetivos históricos e nacionais estipulados pelo Plano da Pátria (projeto de governo de Hugo Chávez convertido em lei), ele coexiste, contraditoriamente, com a meta de transformar a Venezuela em uma potência energética mundial. Alcançar este fim implica seguir abrindo privilégios à PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.) e realizar uma série de concessões a empresas transnacionais para produção de energia da forma mais contaminante, ou seja, com a emissão de compostos de carbono por meio da queima de combustíveis fósseis. No cenário internacional, a rearticulação da política externa da Venezuela com a Nicarágua, China, Irã e Rússia implicou assumir uma série de compromissos, entre eles este tipo de concessões. A revolução adquire várias faces, entre elas a ecossocialista, ainda que o discurso se estruture distante das práticas e não esteja isento de contradições.

Pelo tempo em que a Caravana Climática passou pela Venezuela, pudemos chegar a essa avaliação sobre os aspectos sociais, políticos e econômicos em termos gerais. E a revolução iniciada por Chávez, dentro desse contexto, moveu determinados processos fundamentais para entender a situação atual do país. No que se refere à luta pela diversidade sexual, surgiram coletivos e organizações que realizaram uma série de ações a partir do entendimento de que nenhuma revolução será feita sem acabar com a discriminação da população não heterossexual e pela necessária afirmação dos seus direitos e participação. Estas organizações impulsionam transformações nas relações cotidianas íntimas e sociais, nas comunidades, nos meios alternativos de comunicação e espaços de organização popular, a partir do reconhecimento de si mesmos como atores políticos de transformação social.

 

Uma à margem

 

A Alianza Sexo-Género Diversa Revolucionaria (ASGDRe) é uma “organização integrada por pessoas de sexualidades e expressões de gênero diversas, cuja principal linha de trabalho é a formação comunitária em sexo-gênero, diversidade, mobilização e articulação com outros movimentos sociais”. No livro Rebeldía en el cuerpo, en la cama, en la calle, publicado pelo Ministério do Poder Popular para a Cultura como parte de uma convocatória para que os movimentos sociais escrevessem a sua história e participação na Revolução Bolivariana, a ASGDRe relata o trabalho realizado para promoção do debate sobre sexo-gênero nas comunidades e dentro dos movimentos sociais. O livro é uma reflexão sobre as atividades do coletivo que levanta a bandeira da diversidade sexual há cerca de três anos. De acordo com xs autorxs, a discriminação é diferente dependendo do setor social e a forma de se referir a uma pessoa não heterossexual “para a classe dominante é gay e lésbica mas para a gente pobre, para lxs dominadxs, é camioneras, cachaperas, machorras, marimachas, maricas, maricones, parchitas, pargos, transfors, taconeras.

A opressão do patriarcado em aliança com o sistema capitalista é evidente no caso da discriminação sofrida pelas transexuais. Um dos casos relatados no livro é o encontro com Roberto, hoje Ángela. Xs autorxs a conheceram durante uma oficina com o coletivo Corredor Nor-Oeste, no qual narrou sua experiência. A família de Roberto tinha vergonha: ele era maricas. Roberto também era pobre e só pôde estudar até o quarto ano do ensino fundamental. Teve que ficar em casa cozinhando, cuidando das crianças e fazendo outras tarefas domésticas “para ganhar o pão de cada dia”, como dizia sua avó. Depois de passar por tentativas de violação e ameaças por sua identidade de gênero, Roberto participou de algumas oficinas que o ajudaram a ser quem sempre foi: Ángela. Duas militantes da ASGDRe, Adriana Castro e Katherine Castrillo, gravaram o documentário Una al margen no qual Ángela nos conta como se sentia antes e depois do processo de afirmação de sua identidade sexual. Em sua primeira fala, Ángela nos diz que não é o mesmo ser Ricky Martin e ser um gay pobre nascido em uma zona de risco.

 

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O Konuko e Hugo Chávez

 

Durante o 5º Congresso de Biodiversidade, realizado na cidade de Maracaibo, estado de Zulia − cujo tema mais polêmico foi o questionamento do modelo extrativista e a luta contra o projeto impulsionado pelo governo de extração de carbono na região da Guajira −, entrevistei Joselyn Ariza, Lourdes Blandin e Victoria Echeverria do coletivo Autana Tepuy. Lourdes também é integrante do coletivo afrodescendente de Barlovento que “pensa o feminismo na sua relação com o feminismo ancestral afrodescendente que parte da cultura e da relação com a natureza através dos tambores, da música e dos cantos. É uma forma de comunicação e intercâmbio de saberes.”

O coletivo Autana Tepuy surgiu há quatro anos com o encontro de estudantes de gestão ambiental da Universidade Bolivariana da Venezuela, com pessoas de outros programas que se juntaram para a construção de um núcleo ecossocialista: um espaço de integração e articulação de estudantes, resguardo de sementes, fomento da agroecologia e também do feminismo: “Nos relacionamos com o tema do feminismo porque entendemos o ecossocialismo como um todo, no qual entra também o papel da mulher como guardiã de sementes, como ela se envolve nas novas relações sociais. No coletivo, a mulher não faz o trabalho frágil: nós semeamos, usamos escardilho, picareta. Não existe a divisão do trabalho por gênero, todos temos habilidades e acreditamos que o feminismo, assim como a afrovenezolanidad e o socialismo estão englobados. É um eixo transversal e o tema da ecologia diz respeito a nós todos, porque são novas formas de sociabilidade e de nos relacionarmos com o ambiente.”

 

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A edição número 3 do boletim Konuko do coletivo Autana Tepuy abordou o tema dos saberes e do território e aponta preocupações em relação ao atual modelo econômico:

 

“Chávez nos deixou uma tarefa pendente, mas que tarefa! A da construção de um sistema econômico ecossocialista, estabelecido na Lei Plano da Pátria, que implica repensarmos, refletir sobre o impacto da atual economia rentista e extrativista, que, se bem garantiu o cumprimento dos direitos sociais do nosso povo, atualmente não é uma opção para a construção do ecossocialismo. Temos o desafio de diversificar a economia, retomando e valorizando outros modos de produção libertadores”.

 

Segundo Victoria: “Todos os coletivos são formados por uma diversidade de gênero e expressões de sexualidade. Com a reivindicação do trabalho da mulher e do seu papel na sociedade como construtora teórica e prática, pesquisadora do seu próprio processo e protagonista de processos revolucionários e liberadores. A revolução acredita na inclusão de todos e todas por igual.” Também comentaram que seguem em constante luta pelo aborto seguro e pelo matrimônio igualitário, temas que são tabus para a religião católica, ainda muito influente na Venezuela.

 

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A revolução bolivariana é mencionada como propulsora da atuação destes coletivos. Para Joselyn, “o Comandante Chávez disse em um dos seus discursos, que não poderia haver feminismo sem socialismo nem socialismo sem feminismo. Foi criado o Ministério para a Mulher e a Igualdade de Gênero, porque éramos duplamente ou triplamente excluídas, para receber denúncias e propor como nós mulheres nos vinculamos ao tema produtivo, afinal éramos mão de obra barata e nos violentavam no trabalho, na universidade e na casa. Por meio do Ministério para a Mulher, das políticas de inclusão do Comandante Chávez e tudo o que fez com o Plano da Pátria, e, antes ainda, com Simón Bolívar, se deu o nosso papel na formação da pátria e na construção de um novo socialismo, um socialismo do século XXI.”

Autana Tepuy e ASGDRe são membros da rede Araña Feminista, que articula cerca de cinquenta organizações feministas que realizam diferentes ações. Um exemplo é a campanha contra os transgênicos, que reúne coletivos da cidade e do campo e organizações sociais campesinas que trabalham com o resgate dos saberes ancestrais.

 

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Mais do que acionar um discurso panfletário, exigir do governo a criação de leis/ministérios ou atribuir a Hugo Chávez e Simón Bolívar o crédito de dar o papel da mulher na revolução bolivariana, o importante é que estes coletivos se organizam a partir do entendimento de que atuam ao redor de um eixo que atravessa as lutas que o capitalismo separou. Lutam contra as transnacionais que encarnam o colonialismo, com suas estratégias de desmobilização e desterritorialização, e pela participação protagonista das comunidades na tomada de decisões sobre o destino dos seus territórios. Fazem muitas alusões a Hugo Chávez e sua figura −carismática para xns, populista para outrxs −, mas em relação à luta pela diversidade sexual impulsionam mudanças fundamentais no plano cotidiano e íntimo que pode alcançar o imaginário de uma revolução. Um desafio seria como se apropriar destes espaços e tocar mudanças sem necessariamente se institucionalizar ou converter seus discursos em um discurso oficial, muito distante do que se vive.

 

 

 

 

Agradeço a Joselyn Ariza, Lourdes Blandin e Victoria Echeverria do Coletivo Ecosocialista Autana Tepuy pela entrevista realizada. A Maria Elena pelo livro “Rebeldía en el cuerpo, en la cama, en la calle” doado à Caravana Climática. A José Quintero Weir, bandido que nos guiou por veredas para a compreensão da situação atual da Venezuela. A organização Maikiralasalii, que nos recebeu e compartilhou a sua luta contra a exploração do carbono e em defesa do Rio Sucuy e a família que amavelmente nos recebeu na Guajirita, na cidade de Maracaibo.

 

Juliana Bittencourt é integrante da Caravana Climática.


A Caravana Climática é uma gira de ação pela América Latina. O objetivo é chegar a Lima, no Peru, para a COP20 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. No caminho, realizaremos algumas visitas a comunidades em luta por justiça climática e um projeto de documentação audiovisual que será publicado na nossa página web. Para a Geni, escreveremos uma série de textos a partir do encontro com associações de mulheres, coletivos e individualidades feministas e outros temas afins que compartilharemos durante o trajeto.

 

 

 Ilustração: Nara Isoda

 

 

 

 

 

 

 

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