Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Mulher, bicicleta e autonomia

Nós não somos frágeis. Nos impuseram esse papel. Por Talita Noguchi

 

“Mulheres de bicicleta ainda remetem muitos à imagem de uma tripla fragilidade: de gênero, transporte e vida. Valorizamos esta última, mas combatemos as duas primeiras”.

 

Há alguns anos, recebi essa explicação de Drielle Alarcon, uma das fundadoras do coletivo de pedal feminino Pedalinas. Essa construção lógica é gritante dentro da nossa sociedade e se tornou cada vez mais alarmante para mim, conforme fui digerindo o assunto ao longo dos anos.

 

As fragilidades citadas não nos são inerentes, mas construídas e legitimadas por determinadas camadas da sociedade, que ganham com a falta de autonomia dos indivíduos e de grupos constituídos.

 

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A bicicleta, um dos elementos frágeis dessa imagem, é coincidentemente um dos maiores instrumentos de libertação que conheço. Ela possibilita uma independência frente a várias necessidades de consumo e faz da pessoa o motor do próprio deslocamento, o que eu entendo como fundamental em um processo de aquisição de autonomia.

 

Ela abre alternativas de mobilidade num sistema já lotado de velhas respostas e que sempre ganha com a marginalização e a imobilidade do ser humano. A maior beleza da bicicleta é essa: ser libertadora e, por isso, capaz de gerar em seus usuários uma nova sensibilidade dentro de cenários gastos e que primam por respostas prontas.

 

O outro elemento supostamente frágil é a mulher. Cotidianamente somos colocadas num lugar onde nosso potencial é subestimado ou mesmo reprimido, de maneira consciente ou não. Como mecânica de bicicletas, minha autonomia era sempre questionada e usurpada em pequenos gestos, desde a oferta de ajuda relacionada à destreza ou força física – argumento mais recorrente -, até o comentário de homens sobre como nunca tinham visto uma mulher mecânica. Muitos clientes quiseram colocar no estande a bike que eles consideravam pesada, pois achavam que aquilo era demais pra mim. Cheguei a ter homem parado na porta da oficina, observando meu trabalho por minutos a fio, pois “nunca tinha visto uma mulher fazendo esse tipo de trabalho”.

 

Experiências como essas me levaram a crer que é a alienação do potencial de trabalho manual e autônomo que fragiliza tanto a mulher quanto a bicicleta, e qualquer outro elemento que venha a romper com as estruturas que se alimentam da dependência do ser humano. É cada vez mais claro que não é interessante a autonomia das pessoas, pois ela não gera lucros obscenos nem subserviência.

 

Para mim, a força inerente a uma mulher que não somente usa um instrumento libertador, mas também é autônoma em relação à manutenção dele e tem essa manutenção como ofício, era uma realidade cotidiana. Mas descobri que ainda era uma questão para muitos. Ao longo do tempo, essas questões deixaram cada vez mais claro em que mundo eu vivo: um mundo disposto a questionar sempre a liberdade daqueles de quem não se espera uma independência. Um questionamento que muitas vezes não era propositivo e um deslumbramento em cima dessa profissão que, por trás, deixava claro quanto atos simples podem ser tão dissidentes e perigosos.

 

Há estudos que mostram que o nível de viabilidade ciclística de uma cidade pode ser medido pelo número de mulheres pedalando. A primeira vez que eu li isso pareceu positivo. Hoje em dia fico frustrada ao entender exatamente o porquê da necessidade de ruas mais bem iluminadas e de vias melhor estruturadas para que mulheres pedalem. Mulheres “precisam” de estruturas mais seguras.

 

Não somos frágeis

 

Quando eu ouço “tem poucas mulheres no cicloativismo” ou “poucas mulheres têm esse tipo de trabalho”, minha reação imediata não é ficar triste com as mulheres por elas não se engajarem, mas sim refletir sobre a forma como a sociedade cria suas mulheres e quais os cenários que nos são apresentados desde que somos pequenas. Como mulher, eu aprendi que nenhum lugar é seguro, algo que nem passa pela cabeça de muitos homens. Não tem nada de errado em chamar sua filha de linda desde cedo, mas por que não somar a isso outros adjetivos como independente, livre, inteligente, questionadora, forte, dona de seu próprio destino?

 

Essa opressão cotidiana aparece sob diversas formas e se efetiva na demarcação de limites. Qualquer pessoa pode até se sentir protegida dentro dessa delimitação, mas no dia a dia esquecemos de pensar o porquê desses limites e pra quem eles trazem benefícios.

 

As pessoas mais fortes que tenho ao meu redor são mulheres, e são elas que com mais frequência recebo chorando no bar que tenho hoje. Essa imagem construída de fragilidade impõe a necessidade de uma força multiplicada, de uma energia e de uma sensibilidade ímpares. E o choro não é a fragilidade, é o extravasar das pequenas violências que todas sofremos no dia a dia.

 

O uso da bike, a mecânica da bike e a experiência da coletividade me trouxeram uma noção de companheirismo com outras mulheres, da importância do apoio que devemos dar umas às outras. E a noção do quanto essa fragilidade imposta, essa opressão cotidiana diluída no mar gigantesco do mundo, nos protege menos que nossa própria força, nosso foco, nossa organização, nosso senso de comunidade.

 

Nós não somos frágeis. Nos impuseram esse papel, nos violentaram e agrediram, aberta ou sutilmente, ao longo de anos, até muitas de nós acreditarmos nisso. A bicicleta é um começo do processo da libertação de muitas mulheres, por isso ela é perigosa. Assim como a mulher ter consciência da sua força é perigoso.

 

A quem interessa manter essa imagem de dupla fragilidade? Quem sai ganhando com a submissão das mulheres ou da bicicleta? Quem sai ganhando com a submissão de uma mulher de bicicleta?

 

 Ilustração: Larice Barbosa

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