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Os feminismos no Oriente Médio

Os movimentos feministas no Irã, assim como no resto do Oriente Médio, devem, mais do que nunca, estar presentes nos debates políticos. Por Lucia Direnberger

Esta matéria foi publicada originalmente na revista
francesa
Altermondes, número 28, em dezembro de 2011.

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No Oriente Médio os movimentos feministas são tão variados quanto seus contextos sociais e políticos. As reivindicações e as correntes políticas, assim como as práticas políticas das militantes, são tão diversas, que seria inútil pensar numa uniformidade de engajamentos. A maioria dos feminismos no Oriente Médio foi, contudo, marcada por grandes etapas históricas, que podem trazer alguns elementos que podem servir de comparação.

 

Três ondas de movimentos

 

No início do século 20, mulheres se organizam para reivindicar direitos na Turquia, no Irã, no Egito, no Líbano, na Síria, na Palestina etc. Essas pioneiras se apoiam em ideias nacionalistas e modernistas da época, e seu objetivo é abrir o espaço público para as mulheres. A escolarização das meninas e o papel da mulher no progresso nacional são reivindicações partilhadas por inúmeros movimentos femininos.

 

Desde 1906, em Teerã, no Irã, mulheres se manifestam na rua para reivindicar seus direitos enquanto cidadãs. No Egito, o primeiro jornal a reivindicar para si o título de feminista é publicado em 1925 (trata-se de A egípcia – Revista mensal de política, feminismo, sociologia-arte). Na Síria, Nazîra Zayn Al-dîn publica a obra intitulada A favor ou contra o véu. Esse primeiro tempo das mobilizações das mulheres no Oriente Médio vê nascer a primeira conferência das mulheres árabes (Cairo, dezembro de 1944), que resulta na formulação de reivindicações políticas dirigidas ao governo: restrições no que diz respeito à poligamia e à prática masculina do divórcio, idade legal do casamento aos 16 anos, educação mista, cuidados médicos para as populações desfavorecidas. Essa primeira onda de movimentos apoia-se em uma abordagem nacionalista do feminismo.

 

A segunda grande etapa acontece entre 1945 e 1980. Estados autoritários (Irã, Egito, Iraque, Síria) conferem direitos às mulheres, e instaura-se um feminismo de Estado, que é assimilado à segunda onda de movimentos. Os governos concedem alguns direitos, sempre limitando as formas de reivindicação. Assim, Nasser, no Egito, concede o direito de voto às mulheres, mas dissolve todas as organizações femininas. Desde os anos 80, em alguns contextos emerge outro movimento político de mulheres: o feminismo islâmico. No Irã, na Jordânia e no Kuwait, algumas militantes se apoiam numa releitura do Corão para defender seus direitos, denunciando a leitura patriarcal que dele é feita e se mobilizando contra as discriminações políticas, sociais, econômicas e jurídicas entre os sexos.

 

Esse passeio, lacunar e generalizante, pelo horizonte histórico permite, contudo, ressaltar a diversidade e a história complexa dos movimentos feministas no Oriente Médio, que são frequentemente ocultadas por imagens “chocantes” de manifestantes que participam das mobilizações políticas recentes nos mundos muçulmanos.

 

Aliança iraniana

 

Movimentos de mulheres iranianas foram particularmente ativos na ocasião da campanha eleitoral de 2009. Diversas organizações e militantes que reivindicavam a igualdade de direitos aproveitaram esse tempo político forte para formar uma aliança chamada União dos Movimentos de Mulheres para a Apresentação das Reivindicações nas Eleições. Pela primeira vez, 700 militantes e mais de 40 associações agiram juntas para levar a questão das mulheres aos debates eleitorais. Algumas, como Azam Taleghani e Shahla Sherkat, podiam estar associadas aos movimentos do feminismo islâmico iraniano; outras, como Mansoureh Shojai, se inscreviam numa perspectiva laica. Como reivindicavam em seus panfletos, essas mulheres – oriundas de formações políticas diferentes (reformistas, conservadoras moderadas e laicas) – vinham também de estruturas diferentes (ONGs, sindicatos, partidos políticos, engajamento individual etc.).

 

O objetivo desse agrupamento heterogêneo, sem etiqueta política a não ser a das militantes pelos direitos das mulheres, era trazer para os debates eleitorais suas reivindicações no que diz respeito à situação das mulheres no Irã. Sem apoiar um candidato à eleição presidencial, elas apresentavam duas medidas-chave para reduzir as desigualdades sociais, econômicas e legislativas que pesavam sobre as mulheres naquele país. Inicialmente, apelavam para que o futuro presidente da República assinasse a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, sem nenhuma emenda. Esse texto já havia sido apresentado ao Sexto Parlamento [poder legislativo iraniano], sob a presidência do reformador Khatami, e ratificado pelos deputados, mas havia, em seguida, sido rejeitado pelo Conselho dos Guardiões [da Constituição, composto de seis membros religiosos e seis juristas, geralmente religiosos também]. Segunda medida: elas encorajavam o futuro presidente, qualquer que fosse sua tonalidade política e seu apoio por parte da população, a suprimir as leis que institucionalizavam as discriminações contra as mulheres (em particular os artigos 19, 20, 21 e 115 da Constituição) e a se comprometer com o respeito do princípio de igualdade entre os sexos.

 

Movimento Verde

 

No Irã, os movimentos de mulheres reúnem diferentes gerações, mas permanecem limitados às classes médias instruídas e urbanas. Eles se apoiam amplamente na utilização da internet (Facebook, Twitter e blogues) e dos telefones celulares para organizar as mobilizações coletivas e difundir suas reivindicações políticas. Shirin Ebadi, prêmio Nobel da Paz em 1993, havia, aliás, acusado as empresas Siemens e Nokia de ter ouvido conversas telefônicas de oponentes políticos, o que teria colaborado com as interpelações de militantes à época das manifestações pós-eleitorais de 2009.

 

As mulheres iranianas haviam massivamente participado dos protestos e do Movimento Verde, que havia contestado o poder de Ahmadinejad logo após as eleições de 2009. Depois disso, inúmeras militantes foram detidas e presas, algumas tendo sido colocadas em prisão domiciliar (como Zahra Rahnarvard, feminista muçulmana, universitária e esposa do candidato reformador Moussavi). Outras, por fim, tiveram que acabar se exilando, como Shirin Ebadi e Parvin Ardalan, redatora do jornal feminista Zanân e membro da campanha Um Milhão de Assinaturas. O combate dos movimentos feministas no Irã, assim como no resto do Oriente Médio, deve, mais do que nunca, estar presente nos debates políticos.

Azam taleghani feminismo oriente medio

 

Primavera Árabe: recuo dos direitos?

Os movimentos de mulheres do mundo muçulmano seguem de perto a Primavera Árabe. Entrevista com Fatou Sow, coordenadora da rede internacional Women Living Under Muslim Laws (WLUML) [Mulheres vivendo sob leis muçulmanas]. Por Marie Devers

Qual é o posicionamento político da WLUML?

Fatou Sow. A WLUML visa reforçar as lutas individuais e coletivas das mulheres pela igualdade e pelos seus direitos, sobretudo nos contextos muçulmanos. Nós trabalhamos em cima das leis, dos costumes e das realidades concretas da vida das mulheres e sobre os efeitos dessas leis e da interpretação dos textos religiosos sobre a vida das mulheres. É preciso saber que as leis variam de um país para o outro e que a aplicação do Corão é muito distinta de acordo com cada lugar. Os países criam leis que eles dizem ser muçulmanas, mas que apenas interpretam o Corão. Ora, se essas leis são interpretações, para nós, então, isso significa que é possível discutir. Uma de nossas principais missões, portanto, é fazer com que as mulheres conheçam seus direitos. Na verdade, nós nos demos conta de que não existe uma, mas muitas charia [lei islâmica]. Existem, assim, grandes diferenças sobre questões como o direito a voto, o adultério ou o estupro de acordo com os países. O Sudão – país muçulmano que aplica a charia – considerava até recentemente que um homem não podia ser condenado por estupro a não ser que quatro testemunhas (que fossem homens muçulmanos) jurassem sobre o Corão terem testemunhado o fato. Em outras palavras, o estupro era totalmente impune. Além disso, se a mulher fizesse uma queixa, mas fosse incapaz de apresentar tais provas, ela era, então, acusada de adultério e condenada a levar cem chicotadas (se não fosse casada) ou à morte por lapidação (caso fosse). Trabalhamos ativamente em campo, com mulheres mobilizadas para que essa lei fosse reformada. Elas a destrincharam e trabalharam sem descanso para obter a requalificação do estupro, contornando a charia.

Como você vem acompanhando as evoluções nos países das Primaveras Árabes?

Evidentemente, nós ficamos muito sensíveis às Primaveras Árabes e nos mobilizamos muito com relação à situação das mulheres e de seus direitos nos países concernidos. A WLUML, assim, se posicionou muito rapidamente no Egito, enviando uma de nossas representantes ao Cairo para ver o que estava acontecendo, desde o começo do movimento. A rede também publicou uma declaração sobre a situação na Líbia, preocupando-se com o fato de que o primeiro ato público do Comitê Nacional de Transição da Líbia foi o de proclamar a anulação de algumas leis para substituí-las pela charia. Publicamos comunicados e declarações, pois, para nós, é muito importante insistir que não é preciso, de forma alguma, que as revoluções, que em princípio eram populares, façam os direitos das mulheres recuarem. Não queremos que os direitos já adquiridos acabem sendo desprezados, e até mesmo suprimidos nos países em que as Primaveras Árabes aconteceram, ou que haja uma reinstauração da charia.

CONTATO
Women Living Under Muslim Laws, PO Box 28445, Londres, N19 5NZ, Grã-Bretanha
www.wluml.org

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Lucia Direnberger é pesquisadora da Universidade Paris 7 Denis Diderot.

Tradução: Cícero Oliveira.

Ilustrações: Cecilia Silveira.

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