Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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“Sexo é política”

Uma lição de Gore Vidal para este 2013. Por Pedro “Pepa” Silva

Em Vassalos da ambição (The Best Man, 1964), Henry Fonda interpreta o democrata William Russell, que disputa com Joe Cantwell (interpretado por Cliff Robertson) a presidência dos Estados Unidos. Cantwell é o segundo lugar na corrida presidencial, bonitão com discurso conservador, casado, e fama de macho pegador. Russell, na liderança, está às voltas com um casamento que beira o fim e vê o adversário usar contra ele o fato de, no passado, ter tido uma depressão – algo que o tornaria “emocionalmente instável” e incapaz de ser presidente. A situação muda quando Russell e seus assessores recebem o que poderia ser um trunfo contra o adversário: em sua época de exército, Cantwell teria sido um “degenerado”, como diz o roteiro. O conflito passa a ser este: Russell deve ou não usar a seu favor um suposto passado homossexual do adversário?

 

Focalizando os bastidores do poder, com toda a fauna de tipos insanos, o roteiro de Gore Vidal (1925-2012) é cáustico – como tudo mais que teve a mão do escritor. Mas, embora pudéssemos falar longamente de Vassalos…, ele é apenas o ponto de partida para apresentar um texto em que o mesmo Vidal desenvolveria melhor as relações entre sexo e política.

 

“Sexo é política” é o nome do ensaio publicado na revista Playboy em janeiro de 1979 e que aqui circulou somente em 1987 (salvo engano), no volume intitulado De fato e de ficção. Para o lançamento, o autor veio ao Brasil, hospedando-se – ele e sua ironia aristocrática – no Copacabana Palace, o qual chamou de “confortável e decadente” (segundo relato de Sérgio Augusto sobre essa passagem de Vidal pelo Rio). Também, para quem morou boa parte da vida numa espécie de castelo na Itália, tudo devia parecer ou decadente ou chinfrim. A vida distante do ar estadunidense não o fez menos crítico a seu país, e o nome de Gore Vidal vinha ao lado dos de Susan Sontag e Noam Chomsky no seleto grupo de intelectuais críticos às trilhas e tramas políticas dos EUA. Narcisista, elitista, de humor ácido, Vidal escreveu peças de teatro, roteiros para cinema e televisão, romances e muitos ensaios – gênero com o qual ele alimentou algumas boas polêmicas.

Quando “Sexo é política” foi publicado no fim dos anos 1970, as questões de gênero estavam pululando nos Estados Unidos. Gore Vidal identifica que, nos discursos políticos, diminui a oposição entre capitalismo e comunismo e crescem valores conservadores e pregações da moral e dos bons costumes. É interessante observar como ele estava atento a um imaginário que gestava uma situação mais conservadora no futuro (não deve ser por acaso que esse espírito da época tenha desembocado na eleição para presidente do republicano Ronald Reagan, que reinaria de 1981 a 1989). Ao longo de seu texto, o escritor retoma alguns dos temas que iam se tornando polêmicos no campo político – o aborto, a Equal Rights Amendment (emenda que garantia direitos iguais para mulheres e homens na Constituição), a questão dos homossexuais e as reações conservadoras, como a campanha “Save our Children” liderada por Anita Bryant (lembram do filme Milk?).

 

(Um parêntese: Bryant é das figuras bizarras dos EUA – ex-cantora, liderou a campanha contra uma lei que proibia a discriminação por orientação sexual e, numa coletiva de imprensa, levou de um ativista gay uma torta na cara! Como se fosse uma personagem do Zorra Total, respondeu que “pelo menos era uma torta de frutas” e seguiu rezando pela libertação da alma de quem a atacou. Devia ser inspiração pras nossas Senhoras de Santana, grupo que fez sucesso no Brasil no começo dos anos 1980 – mas esse é um assunto pra outra ocasião.)

 

Botões quentes

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Para Vidal, a preocupação com questões sexuais representava antes de tudo um estratagema político. Isso porque:

 

“Em qualquer momento dado na vida de uma sociedade, há determinados botões quentes que um político pode apertar para obter uma resposta previsivelmente ‘quente’. Há uma década, se você perguntasse ao presidente Nixon o que ele pretendia fazer com a questão do desemprego, provavelmente ele responderia ‘A maconha é apenas uma etapa para coisas piores’. Falar contra o pecado é uma boa política […]”.

 

Assim, o pecado e a Bíblia passam a figurar ao lado de questões raciais, dos problemas da previdência social ou da questão cubana. Gore Vidal aponta, no discurso dos políticos moralistas, uma visão conservadora do poder e das esferas da vida social a partir da eleição da “família” como categoria favorita:

 

“Salvem a Família é a palavra de ordem deste ano. Como é muito difícil que alguém chegue a questionar abertamente o valor da família nas questões humanas, qualquer grupo que deseje salvar essa instituição supostamente ameaçada recebe apoio entusiástico”.

 

E, obviamente, por trás da defesa da família estava o repúdio aos homossexuais.

 

Ao mesmo tempo, o poder de síntese desse discurso conservador (a ideia de que a decadência social é reflexo da promiscuidade, do “fim da família” e dos bons costumes) é o “botão quente” que aproxima grupos distintos:

 

“[…] política, como sexo, frequentemente aceita estranhas alianças. Este ano os cristãos militantes estão lado a lado com os judeus militantes apertando o tipo de botões quentes que imaginam que irão fortalecer o domínio do país através da solidificação da família. Aparentemente, a família só pode ser fortalecida se as mulheres não tiverem direitos iguais aos dos homens, nem no mercado de trabalho nem relativamente a seus próprios corpos (Não abortarás)”.

 

Com essa ironia, não faltam no texto argumentos contra a visão do sexo baseada nas Escrituras, além de outras tantas farpas à hipocrisia dxs estadunidenses (que pregam um comportamento, praticam outro e ainda moralizam a política). Sobra até para Freud, que segundo Vidal “era incapaz de conceber uma sociedade boa (virtuosa?) que não fosse dominada pelo homem, o pai”.

 

Qualidade ou substância: a política possível

 

Num dos trechos mais interessantes do ensaio, Gore Vidal rebate a fala de um jornalista para quem a condição homossexual (e é importante destacar que na tradução de 1987 usa-se sempre “homossexualismo”) estaria sendo “politizada” e transformada em “um fato social e uma forma de pressão social”. A ideia, que aparecerá em outras declarações do escritor sobre sexualidade, é a de que não haveria uma essência especificamente homossexual, mas diferentes práticas sexuais – para ele, não se deveriam tomar os termos como substantivos (isto é, como uma essência), mas como adjetivos (ou seja, como uma extensão de sentido):

 

“Na realidade, não existe isso que se chamaria uma pessoa homossexual, assim como não existe isso que se chamaria uma pessoa heterossexual. As palavras são adjetivos que descrevem atos sexuais, não pessoas. Esses atos sexuais são perfeitamente naturais; se não fossem, ninguém os executaria. […] Hoje, os militantes gays afirmam que existe algo chamado sensibilidade gay, sintoma externo e visível de um novo tipo de ser humano. […] Muitos seres humanos gostam de ter relações sexuais com [pessoas] de seu próprio sexo; muitos não gostam; muitos gostam dos dois. Essa pluralidade é intrínseca à nossa natureza e não vale a pena se preocupar com ela”.

 

Ora, senhor Vidal, temos de concordar e discordar em partes. Se há aí uma crítica válida a movimentos e grupos ativistas que se pautam numa (falsa) ideia de que há uma “essência gay” (assim, como haveria uma “essência feminina”, uma “essência masculina” etc.), por outro lado, fica a dúvida: como fazer política se o sistema fecha os olhos para essa pluralidade de práticas? Quem vai lutar ao lado dxs que estão à margem desse sistema? Usar essa (falsa) essência é, ainda, a política possível para muitos…

 

O que pensar disso quando vemos, por exemplo, a luta de diversxs trans* para terem direito a um bom atendimento em hospitais públicos? Sexo é política – e a política deve reconhecer essa “pluralidade intrínseca à nossa natureza”. Mas como, se cada um lutar somente por si?

 

A revolução é queer!

 

A lição de Gore Vidal não ficou nos anos 1970 nos EUA. Mais do que nunca, em diversos lugares sexo é política. Claro que não dá pra elencar e analisar aqui todas as questões que ligam uma coisa à outra. Mas para rememorar alguns, lembremos, por exemplo, que o enredo de Vassalos da ambição reflete muito a campanha de Marta Suplicy para a prefeitura de São Paulo, em 2008, quando a candidata atacou seu adversário questionando a sexualidade dele, ao perguntar ao eleitor se sabia se Gilberto Kassab era casado e se tinha filhos. E que figuras seriam hoje a nossa Anita Bryant? Miriam Rios ou Marisa Lobo (aquela que luta “pela família” e contra tudo que a ameaça – até mesmo a “teoria queer”)?

 

Na Rússia, no Egito, em Uganda, no Brasil. Na luta pela criminalização da homofobia, na luta para que mulheres tenham direito sobre seus corpos, na luta contra o binarismo de gênero. Sexo é política. Na festa inspirada no filme Shortbus e que propõe o sexo público; no julgamento de Chelsea Manning, em que se apelou à questão de gênero; no caso Glenn Greenwald e na presença irritante e higienista do termo “companheiro” ou “parceiro”, que jornais adoram usar para se referir ao marido, David Miranda; no machismo, no cissexismo, na misoginia e na transfobia que diariamente colhemos no que se convencionou chamar de “opinião pública”… Tudo isso mostra o quanto sexo ainda é política.

 

Por isso mesmo, voltar ao texto de Gore Vidal neste momento pode ser interessante para pensarmos os discursos que nos rondam neste ano confuso. Da nossa parte, vamos acompanhando e alimentando os debates. Pra Geni, sexo é política – e a revolução é queer!

 


Clique aqui e leia na íntegra o ensaio “Sexo é política”, de Gore Vidal

 

Para saber mais:

“A passagem de Gore Vidal pelo Brasil”

“Gore Vidal, o político que nasceu escritor”

 

Leia outros textos de Pedro “Pepa” Silva e da seção Memória.

Ilustração: Bruno O.

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