Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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A Bíblia que condena os homossexuais ou Na cama com Levítico

Levítico no dos outros é leite e mel. Agora, tente aplicá-lo a si mesmo e depois me conte. Por Wilson Gomes

Levítico é um dos meus livros preferidos da Bíblia. Não exatamente por ser um tratado sobre a ternura entre os seres humanos ou sobre um Deus amoroso, que disso nele nem vestígio há. Gosto é da experiência etnográfica que esse livro proporciona, porque nele estão fixados e expostos, sem disfarces, filtros ou peias, as mentalidades, o sistema moral e legal de um povo antigo e do modo como conecta tudo isso com a sua experiência religiosa. O retrato não é bonito, longe disso, mas é muito interessante.

 

Em tempo: é Levítico o livro que provê a “autorização bíblica” mais recorrente para a homofobia evangélica. Os católicos não curtem muito esse livro, usado contra eles pelo proselitismo dos evangélicos populares há muitas décadas, principalmente por causa da proibição de imagens. Na verdade, é um livro judaico por excelência e as referências são exclusivas para “os israelitas”, mas os evangélicos adoram se sentir parte de passado nobre e remoto e entendem que, mediante algum hocus pocus cujo sentido me escapa, ganharam como herança o direito de se incluir entre os israelitas do Antigo Testamento. O livro é simplesmente o código sacerdotal e teocrático da comunidade política de Israel (parte do conjunto legal do Pentateuco) e refere-se a uma experiência histórica que terá acontecido lá por 1.200 a.C. (segundo uns) ou 1.400. Faz um tempinho, né?

 

Como Levítico é base do argumento “a Bíblia condena”, deixem-me dizer alguma coisa sobre esse livro, ainda que não dê para fazer isso de maneira muito breve. Vejam aí se vocês gostariam, como querem os evangélicos populares, que esse livro fosse a norma e o farol moral das suas vidas.

 

Um livro ameaçador e sem concessões

 

Primeiro, o livro é uma lista de interdições sociais e morais, atribuídas diretamente a Deus (ordem cósmica) e a Moisés (ordem política) – “Disse Deus a Moisés…” está para os israelitas como o “a Constituição diz” está para nós. Só que há mais ou menos 2.900 anos antes que a civilização cogitasse distinguir entre comunidade religiosa (o liame social estabelecido pela fé e pelos laços étnico-religiosos) e comunidade política (ou Estado, em que o cimento social é dado pela lei). E numa fase em que leis sobre pureza e impureza se misturam com regras de higiene e normas sobre agricultura, tudo junto, misturado e coordenado pela autoridade dos sacerdotes (levitas). É como se hoje prescrições religiosas fossem ao mesmo tempo Código Penal, políticas públicas e material ideológico para formar a ideia de povo. Puxado. Em Levítico, violações leves das regras, todas descritas em detalhes, podem ser purificadas com rituais (em geral, sacrifícios de animais e de produtos agrícolas), e as graves são resolvidas com penas de morte mesmo, que 3.400 anos atrás não estavam para brincadeira.

 

Segundo, é um livro duríssimo, ameaçador, sem concessões. O “Deus” que empresta voz às prescrições é, por consequência, um sujeito assustador, ciumento pra caramba (“te salvei do Egito, você é meu, mas vou te botar na linha” é o mote) e ameaçador. Não tem a menor noção de direitos humanos e misericórdia. Terceiro, não tem hierarquia nas regras, não, vem tudo misturado – pecou, perdeu! Quarto, 98% das regras se aplicam a homens. É um mundo masculino. Peca-se com mulheres, mas mulheres não pecam. Fora a obsessão com menstruação, quase não se menciona punição a mulheres.

 

É bom lembrar que esse Levítico que abomina “homens que se deitam com homens como se fossem mulheres”, admite a escravidão numa boa, viu? Só avisa que um israelita não pode escravizar outro. De resto, está liberado. Lv 25, 44-46: “Vossos escravos, homens ou mulheres, tomá-los-eis dentre as nações que vos cercam; delas comprareis os vossos escravos, homens ou mulheres. Podereis também comprá-los dentre os filhos dos estrangeiros que habitam no meio de vós, das suas famílias que moram convosco dentre os filhos que eles tiverem gerado em vossa terra: e serão vossa propriedade. Deixá-los-eis por herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam plenamente como escravos perpétuos. Mas, quanto a vossos irmãos, os israelitas, não dominareis com rigor uns sobre os outros”. Não é certamente uma boa premissa para um livro considerado tão santo e tão verdadeiro que dele não pode se desviar uma vírgula quando se trata de condenar os homossexuais. Então, não se enganem, meus amigos, o mesmo Levítico hoje usado para a “condenação bíblica” dos homossexuais foi secularmente usado para a “autorização bíblica” à escravidão dos não cristãos.

 

O santo livro também se ocupa imensamente de purezas e impurezas morais, religiosas e físicas (não há qualquer distinção entre os níveis). Lv 11 estabelece os animais que podem ou não ser comidos. Não podem ser comidos coelhos, lebres, porcos, peixes sem escama, assim como avestruz, cisne, cegonha, garça, morcegos (viu, Ozzy?), toupeira, rã e camaleão. Réptil de nenhuma espécie, “uma coisa abominável” (Lv 11,41). Banha de porco e toucinho, mesmo de gado, torna você impuro também (Lv 7, 22-23). Sarapatel, chouriço, molho pardo ou qualquer coisa que leve sangue são, literalmente, pecado (Lv 7,26; 17,11). Aposto que Feliciano e Marisa Lobo nunca tocaram num torresminho ou costeleta. Porque basta encostar em um desses animais proibidos, vivos ou mortos, no todo ou em parte, e você fica automaticamente impuro. Para ficar puro de novo só sacrificando algum bicho ritualmente. Se uma linguicinha que seja cair no fogão, tem que destruir o fogão (Lv 11,35).

 

Sabe o que mais é impureza total segundo o livro santo e verdadeiro? Mulheres que deram à luz. Sim, senhoras. Mas o nível de impureza varia, viu. Se o bebê for homem, a mulher fica impura por sete dias; se for uma menininha, por duas semanas (Lv 12, 2, 4-6). Entenderam a sutileza da dosimetria? E só passado o tempo em que é “imunda” (sorry, it’s the Bible!) é que poderia matar algum bicho “em sacrifício pelo pecado”. Pecado, sim, senhora, tá pensando o quê? E sabe quando mais as mulheres são impuras? Acertou quem pensou “todo mês”. Menstruou, pecou (Lv 15,19) – impura por sete dias, viu? Se alguém tocar nela (não é transar, não, é só encostar a mão mesmo) naqueles dias, fica impuro até o fim do dia; se uma mulher menstruada sentar em algum lugar, o lugar fica impuro (Lv 15,24). Se algum parceiro na secura transar com ela nesse período, pega sete dias de gancho de impureza também, que é para aprender a não mexer com impuras.

 

A parte sobre homossexualidade vem no meu capítulo favorito, Lv 18, que é todo para garantir que os israelitas não copiem os costumes dos egípcios, de onde fugiram, nem dos cananeus, cujas terras eles invadiram, numa boa, “porque Deus mandou”. Por isso, a lista é aleatória, acho que alguém foi vendo do que não gostava nos costumes dos outros povos e saiu proibindo tudo.

 

O versículo 20 diz que os homens não devem ter relações sexuais com a mulher dos outros. Notem, contudo, que no século 14 a.C. não há norma sobre o comportamento sexual das mulheres, exceto uma regra que proíbe que copulem com bichos. Além disso, como veremos adiante, um homem transar com uma escrava é, digamos assim, uma contravenção, e não um crime. Parece, portanto, que o problema consiste no fato de a mulher ser “dos outros”.

 

Moloc e os moleques

 

Prestem atenção agora a três versículos seguidos de Lv 18. Lv 18,21 diz: “Não darás nenhum dos teus filhos para ser sacrificado a Moloc”. Ok, eu gosto dos meus filhos e não conheço nenhum Moloc, então, nada de sacrificar um deles. Sim, meus pagãos, Moloc deve ter sido um deus, e nesta época a Bíblia admitia haver outros deuses, o que distinguia o dos israelitas é que era exclusivo daquele povo. O único requerimento do deus particular do antigo povo de Israel era que, já que ele foi legal e os retirou do Egito, fosse considerado o maior de todos (Ex 20, 3: “Não terás outros deuses diante de mim”). Lv 18,22 salta bruscamente da competição com Moloc para “Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação”. Estão no mesmo nível: nada de degolar o meu moleque para agradar a Moloc e nada de ser passivo numa transa gay – a pena, inclusive, é a mesma. Com a mesma incompreensível coerência, Lv 18,23 proíbe que homens transem com animais. E, pela primeira vez, acha que é melhor estender a interdição também às mulheres. A galera por lá devia andar a perigo, não é? “Uma mulher não se prostituirá a um animal: isso é uma abominação.”

 

Levitico01

 

Aliás, há apenas quatro pecados “só para mulheres” em Levítico: parir, menstruar, transar com animais e fazer adivinhações. Faz sentido para vocês, meninas? As lésbicas, entretanto, tiveram algum lucro, já que não há qualquer interdição que mulheres se deitem com mulheres. Que tempos! Adoro as listas supercoerentes de Levítico: parir no mesmo nível que copular, sacrificar o filho é praticamente o mesmo que sexo entre homens.

 

O Antigo Testamento hebraico não tem uma palavra para “homossexualidade” ou “homossexualismo” – a preocupação é com o comportamento. Não se pode transar com parentes, não se pode transar com bicho (nem as mulheres podem, está confirmado), não se pode transar com a mulher de outro homem e não se pode transar com outro homem “como se fosse mulher” (em Canaã a preocupação era só com o sexo homossexual passivo, viu meninos?).

 

Depois de cuidar do sexo, no capítulo 18, Levítico dá regras sobre agricultura (não se pode misturar dois cereais diferentes no mesmo campo) e dispara mais um monte de mandamentos no capítulo 19, dentre os quais dois dos meus prediletos: a proibição de xingar surdos (v. 14) e a de dar rasteira em cegos. Isso me parece aquelas proibições que se leem por aí em locais públicos, como a de urinar no chão do banheiro ou de cuspir no metrô. Como ninguém proíbe o que as pessoas naturalmente não fariam, derrubar ceguinhos e dizer palavrões a surdos devem ter sido duas das diversões locais no século 14 a.C. O meu terceiro mandamento predileto está em Lv 19,27: “Não cortareis o cabelo em redondo, nem rapareis a barba pelos lados”. Se eu fosse Moisés, completaria com um mandamento só para mulheres “Não abusareis do animal print nem vos enfeitareis com mais de cinco acessórios dourados ao mesmo tempo”. Cada um com seu gosto: Moisés curtia um barbão, eu não curto peles de répteis.

 

Acho particularmente interessante o Lv 19,20, especificamente sobre sexo com escravas. Notem que se o cara for para a cama com a mulher de alguém, tem que morrer, ele e a mulher. Pois bem, “se um homem se deitar com uma mulher escrava desposada com outro, mas não resgatada nem posta em liberdade, serão ambos castigados, mas não morrerão, porque ela não era livre”. Basta oferecer um carneiro como “sacrifício de reparação” e está liberado. Alegrem-se, meninos: é só controlar quantos carneiros ainda se tem no pasto e se jogar na fornicação; só não se pode fazer com a mulher que pertence a outro homem. É a origem do “lavou [com sangue de cordeiro], tá novo”.

 

Na lista do proibidão ainda tem: usar roupas tecidas com duas espécies de fio, comer os frutos das três primeiras colheitas da sua roça (a agroindústria deve praticar muito isso em Israel hoje) e fazer tatuagens com figuras (“Wilsão, amor para sempre” está superliberado).

 

No capítulo 20, o santo livro que os homofobíblias querem que substitua o nosso Código Penal trata das penas pela violação das interdições. Sacrificar filhos a Moloc (acho um nome digno para um deus), amaldiçoar pai e mãe, fazer adivinhações, transar com mulher casada, madrasta, nora, ou outro homem “como se fosse mulher” (v. 13), com sua mãe ou sua filha, ou com bicho, tudo isso se paga com a morte. Incesto, adultério masculino, sexo homossexual masculino, práticas divinatórias, zoofilia e amaldiçoar os pais estão todos no nível máximo da transgressão. E há penas de excomunhão, como no caso de se transar com uma mulher menstruada, comer sangue de animais (Lv 17), fazer sacrifícios fora do templo. No capítulo 21 tem uma dessas penas adoráveis da lei mosaica (Lv 21, 9): se a filha de um sacerdote tiver relação sexual sem ser casada “será queimada no fogo”. Nice and sweet! Em Lv 24, 17-20 se apresenta, enfim, toda a doçura da Lei do Talião, a que manda cobrar olho por olho e dente por dente. Tão levítico!

 

Excomunhão e pena de morte são para os indivíduos, mas se essas doces leis não forem aplicadas, o deus de Levítico manda dizer que vai detonar geral. E o diz sem palavras suaves nem misericordiosas no final do livro (Lv 27): mandará doenças, soltará feras “que devorarão vossos filhos” (v. 22) e animais de criação, lançará a peste, entregará o povo aos seus inimigos, destruirá as cidades e, por fim, “comereis a carne dos vossos filhos e filhas” (v. 29). Canibalismo total no horizonte.

 

Não se pode fazer uma moral seletiva

 

Eis o espírito da “Bíblia que condena os homossexuais”. Quando alguém me diz que organiza todo o seu julgamento moral sobre a homossexualidade a partir de Levítico eu só consigo pensar que ele nunca leu ou entendeu Levítico ou não tem a menor ideia do que seria organizar sua vida e a experiência social por esse livro. Ao pé da letra, Levítico é arcaico, anacrônico, cruel. Muito cruel. Como alguém pode sequer imaginar que uma sociedade de 3.400 anos atrás poderia prover a norma moral e legal para sociedades democráticas do século 21 é algo que me escapa ao entendimento. E como se pode sequer suspeitar que um livro escrito por sacerdotes e para justificar o domínio social dos sacerdotes (claramente, o livro é feito para colocar a tribo de Aarão no topo do poder político) possa ser base moral, intelectual e legal para sociedades laicas, baseadas no conhecimento científico, na tolerância moral, no Estado de Direito, na ideia de direitos humanos e no princípio da igualdade entre todas as pessoas?

 

E, se alguém diz que o livro deve ser seguido ipsis litteris porque é fruto da revelação de Deus, eu só consigo pensar que essa pessoa não tem a menor ideia do que possa teologicamente significar “revelação”. Uma pessoa dessas só pode ter uma concepção infantil da fé, segundo a qual um deus que tem semelhança aos homens teria ditado, palavra a palavra, e já em sua forma final, cada letra dos livros sagrados do judeo-cristianismo. Uma compreensão dessas está para a teologia como a crença em dragões e unicórnios está para o universo científico.

 

De qualquer modo, o teste definitivo a que devem ser submetidos os que querem fazer de Levítico a régua e o compasso para a sua decisão moral (e a dos outros) é exigir-lhes coerência. Primeiro, não se pode fazer uma moral seletiva: não há razão aceitável para dizer que vale a regra da “abominação homossexual” e não a outra centena de regras que abominam milhares de comportamentos humanos, práticas, pessoas e coisas, inclusive os tabus alimentares. Segundo, não se pode ficar só com as proibições, então temos que assumir todo o quadro moral: passaremos os dias fazendo sacrifícios rituais pelos nossos pecados matando ovelhas e cordeiros nos altares das cidades? Faremos excursões aos povos vizinhos para adquirir escravos e escravas (sexo à vista!) que passaremos aos nossos filhos como propriedade? Toda a tarde reuniremos os adúlteros da cidade para um ritual coletivo de apedrejamento básico? Alguns dias por mês não faremos um carinho sequer nas nossas filhas e não tocaremos sequer as roupas das nossas mulheres para evitar que fiquemos impuros com a sua imundície moral? Proibiremos o abate de porcos e o uso de gordura animal de qualquer espécie? Uma vez ou outra, tocaremos fogo em alguma mulher para honrar a Lei do Senhor?

 

Porque é lícito exigir que se alguém escolhe Levítico como regra moral para decidir o que é certo e errado para os outros, tem que assumi-lo por inteiro para si e viver segundo as suas normas. Mas, não: principalmente essas pessoas, em geral, não aceitam examinar racionalmente a norma moral que eles depreendem desse livro. Não seriam anacrônicas e excessivamente relacionadas a mentalidades que, depois, foram superadas? Será que o propósito do livro, na verdade, não era garantir a fecundidade, e não há razão hoje para mantermos a norma X, uma vez que a norma Y e Z claramente não podem ser aplicadas? Essas perguntas, que caberiam num universo moral conduzido pela razão, são, em geral, recusadas dogmaticamente. Então, só resta a solução contrária: quem crê na norma X de Levítico tem que viver todo Levítico. Aí, eu quero ver. Levítico no dos outros é leite e mel, agora tente aplicá-lo a si e depois me conte.

 

Na verdade, gente que diz “sigo a Bíblia”, antes de cuspir uma condenação à orientação homossexual, faz mais mal à religião do que aos homossexuais. Afinal, se leitores e seguidores da Bíblia não forem moralmente superiores aos do Mein Kampf, mais vale que leiam o livro de Hitler, já que é mais curto. Se os filhos da luz forem mais preconceituosos e malvados e tiverem o coração mais impermeável (que é a definição de “impiedade”) do que os filhos das trevas, melhor seria sair com os segundos, sabidamente mais espertos e mais divertidos. Da minha parte, nunca consegui identificar um único artigo da fé cristã violado pela admissão da homossexualidade como parte da natureza humana. Na verdade, a homofobia de base religiosa parece-me menos um ato de fé do que uma via reta para a impiedade.

 

Wilson Gomes é professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

Ilustrador convidado: Mário César.

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