Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

, , , , , , , , ,

A recuperação do corpo como território de defesa

Geni conversa com Lorena Cabnal sobre ecologia a partir da perspectiva do feminismo comunitário. Por Juliana Bittencourt

Publicado em 28/10/2015

 

 

ilustra_lorena_2

 

 

Lorena Cabnal é feminista comunitária xinka-maya da Guatemala, uma das fundadoras da AMISMAXAJ (Associação de mulheres indígenas de Santa María de Xalapán em Jalapa)  e teceu um pouco das suas palavras e práticas com a Geni. Lorena conversou sobre o tema da ecologia política a partir da sua perspectiva como mulher e como indígena, sobre o feminismo comunitário, a pluridimensionalidade dos corpos além de apresentar categorias de análise para pensar o patriarcado e o colonialismo hoje. Ficamos extremamente agradecidxs de escutá-la e armar esta trama.

 

***

 

 

Como você percebe o tema da ecologia, da ecologia política?

 

Eu acho que como mulher indígena e feminista comunitária tenho a minha percepção de como interpreto a ecologia. A princípio,a interpreto como uma categoria ou como uma proposta teórica e prática desenvolvida a partir do ocidentalismo. No entanto, penso que a ecologia que faz uma análise relacional da vida, do meio ambiente e da natureza tem outras etapas. Você pode argumentar que a ecologia neoliberal muitas vezes foi configurada para interpretar e justificar a pilhagem massiva de recursos naturais e mercantilizar a natureza. Também existem outros pensamentos, outros sentimentos e outras propostas de uma ecologia política que põe em questão precisamente muitos dos termos que são utilizados para nomear a natureza mercantilizada, mas gostaria de manifestar minha interpretação como feminista comunitária e como mulher indígena, eu não falo sobre ecologia mas sobre a reciprocidade da teia da vida. Se você perguntar para uma indígena ou, neste caso, para mim, se sou ecologista, respondo que não sou mas compartilho a ecologia política emancipatória como uma proposta. Tenho uma interpretação como mulher indígena porque ela é toda uma evolução histórica do conhecimento e está relacionada com os elementos do cosmos, então eu entendo que a relação dos corpos com a natureza é uma relação recíproca, é uma relação que faz a vida, que tece a vida, portanto, os corpos não tem poder sobre a natureza e a natureza não tem poder sobre os corpos. Ambos elementos, tais como a natureza, o sol, as montanhas, a lua, a água são parte da energia vital na teia da vida, a energia vital que regenera a vida. Nós indigenas falamos de bens naturais e não de recursos naturais e, ainda assim, é um termo que precisa ser debatido para analisar como usamos alguns termos para compartilhar nossos pensamentos. Eu acredito que os bens naturais têm muito a ver com a vida real e estão relacionados com o bem-estar mais do que com uma propriedade. Eu prefiro chamar de elementos naturais do cosmos porque há vários elementos que tecem.

 

Neste sentido, as contribuições que vieram dos povos indígenas e as contribuições das feministas comunitárias, mais especificamente das feministas comunitárias da Guatemala, foi criar uma categoria que nos permite relacionar os corpos com terra. Chamamos esta categoria de território-corpo-terra porque entendemos tudo dentro de uma abrangência. Para nós não existe ecologia separada da política ou da sociologia, tudo é tecido para nós, tudo está relacionado. É uma proposta que surge no início de 2005, quando começamos a fazer uma forte luta nas montanhas de Xalapán para denunciar a violência sexual que as meninas e as mulheres vivem. Mas em 2008, quando levantamos a luta contra a mineração nas montanhas percebemos que havia uma forte posição de vários colegas e outros movimentos indígenas chamando as mulheres a priorizar e colocar nos debates e ações político-territoriais o que era verdadeiramente urgente, e urgente, para essa época, era a defesa do território-terra. Então nasce, neste momento, e mais fortemente em 2008-2009 a categoria e defesa do território-corpo-terra. Para nós, a recuperação do território-corpo é uma recuperação histórica e não podemos adiá-la e não podemos dizer que a defesa do território-terra é mais iminente. Para as feministas comunitárias – nós mulheres indígenas – são realmente lutas simultâneas que não podem ser adiadas. Seria uma inconsistência cosmogônica não defender a terra e os corpos de meninas e mulheres que vivem a violência sexual dentro do território-terra na sua defesa contra a mineração. Este tem sido parte de nossas contribuições, a recuperação do corpo como território de defesa, porque para nós, como feministas comunitárias, algo que é muito importante é que não pode ser realizada qualquer teoria política ou feminista enquanto as expressões dos corpos de mulheres não estiverem ligadas a um ser e estar que é um lugar único, a terra. Nenhuma proposta feminista será politicamente sustentável se não ligar a emancipação dos corpos da emancipação da natureza.

 

 

Que corpos são estes? São os corpos das mulheres que estão mais próximas da terra ou corpos diversos, são corpos outros? É o corpo da comunidade? Acredito que há um debate entre as ecofeministas que vinculam a mulher à natureza e outras que tentam desvincular dizendo que isto não é necessariamente assim. Como é o diálogo de vocês com outros feminismos?

 

Vou compartilhar algumas das minhas reflexões mas não são reflexões do grupo de feministas comunitárias da Guatemala pois todas temos diferentes processos na construção dos espaços políticos feministas comunitários. Brevemente compartilho que existem hermanas que leem e escrevem em castelhano e outras não, mas não quer dizer que não contribuam com seus saberes. algumas de nós passamos por diversos espaços feministas para nos fortalecer nossa proposta política e participar de debates e, neste caso, assumo a responsabilidade política do que vou propor porque não é o pensamento de todo o espaço ou grupo de hermanas feministas. Ao final, vou compartilhar um pouco que, dada uma situação de risco e insegurança – eu não estou na montanha, não estou na AMISMAXAJ (Associação de mulheres indígenas de Santa María de Xalapán em Jalapa), que é a organização que contribuí a fundar, mas seguimos de outros espaços com o feminismo comunitário.

 

Faço uma interpretação da pluridimensionalidade dos corpos e quando falo dos corpos, não falo dos corpos heterossexuais, do corpo masculino e feminino que vivem em uma comunidade indígena, pois interpreto que hoje muitas das nossas comunidades originárias são construídas em uma hétero realidade cosmogônica. Acredito que em todos os corpos, em nossos corpos, está tecida e habita a energia vital da vida, que não passa pelas construções sociais de gênero. Esses corpos pluridimensionais e estou falando dos corpos com suas dimensões eróticas, plurissexuais, afetivas, de saberes, espirituais e físico-corporais, para mim, são uma complexidade linda, um lindo tecido em cada corpo quando nascemos na rede da vida. Nesse sentido, acredito que a relação dos corpos com a natureza tem alguns elementos. Um deles é que acredito que o sistema patriarcal efetivamente atribuiu aos corpos das mulheres, nesta construção social de mulheres ou dos corpos, certos papéis para os relacionar com a natureza em função de que parecia que muitas mulheres somos guardiãs da natureza, mas neste papel atribuído. E também neste papel atribuído somos reprodutoras da natureza de tal forma que parece que são as mulheres as que devem conhecer os saberes das plantas, das formas de plantar, sim? E também neste papel atribuído da designação doméstica do corpo das mulheres, somos as mulheres as que tem uma relação doméstica com a natureza. E uma relação doméstica porque são as mulheres, e neste caso majoritariamente as indígenas, as rurais ou camponesas as que tem que ir ao rio para trazer água para a comida; tem que juntar a lenha para o fogo para fazer a comida; tem que ir ao campo para trabalhar, tem que… Existe uma relação e este é um elemento de análise. Acredito também que exista outro elemento de análise importante e que não passa precisamente por essa atribuição patriarcal; acredito que as mulheres também historicamente demonstram outros relacionamentos e outras afetividades, e considero que nossos corpos têm diferentes relações afetivas e eróticas com a natureza. O fato de que foram as mulheres as inventoras da agricultura é porque também – contrariando a atribuição patriarcal de nossa relação com a terra – é uma relação linda porque é afetiva com a natureza e nos permite ter a possibilidade de gerar a relação da vida em outra dimensão. Por exemplo, quando lembro dos saberes de minha avó, umas das avós que me ensinou muito os caminhos de cura, das plantas, das ervas, das pedras, de caminhar com elas pelas comunidades, pois era uma mulher curandeira, herbeira. Então essa relação amorosa e afetiva com a natureza não passa pela dominação patriarcal. Hoje há mulheres cuidadoras, curandeiras, parteiras pois há uma bela relação entre os corpos com a terra, pois na terra e na natureza estão os elementos que nos acompanham para revitalizar a vida. Sinto que existem belos afetos, por exemplo, é bonito sentir quais são os afetos e as preocupações que temos os corpos com a terra quando vamos ao campo semear. No caso da minha família semeamos milho e feijão, quando se iniciam as primeiras chuvas em maio, começamos a trabalhar um pouco a terra, a preparar para plantar. Começam as primeiras chuvas, molham a terra e estamos felizes, há uma energia linda que nos habita porque está chovendo, então vamos e semeamos. Veja, isso eu senti: quando chegamos no campo e vemos que brotaram há uma afetividade linda com a vida e com a terra e as mulheres. Aprendi com minha avó a aproximar minhas mãos das plantas e dialogar, agradecer a terra, acender velas, fazer nossos exercícios de consciência cósmica para a vida. Essa é outra relação dos corpos, entretanto, sim tenho hermanos que também tem seus afetos, hermanos indígenas ou camponeses… É diferente de como algumas mulheres os manifestamos, mas os hermanos também tem seus afetos pode ser que alguns sejam mais públicos ou não, mas entre as mulheres, te digo, sem passar pelo estigma patriarcal me parece que como fazemos as interpretações dos corpos em relação à afetividade com a terra, com a natureza, é lindo.

 

Coloco outro elemento: o da erotização com a natureza. O sistema patriarcal mutila os corpos, assim, só erotizamos  entre-corpos, entre-corpos heterossexuais e não erotizamos com a natureza! E isso é uma coisa tão fodida, essa é uma mutilação patriarcal gravíssima da relação  dos corpos com a terra, com a natureza.

 

Defendo que os elementos para revitalizar nossos corpos para a vida de um mundo tão fodido, construído por um sistema patriarcal, com as formas patriarcais indígenas, as formas patriarcais que vieram a nós do ocidente, a colonização, o capitalismo, agora o neoliberalismo, com os empobrecimentos, com a criminalização, com tudo o que é fodido que vivemos, justamente as energias para revitalizar nossos corpos estão na natureza.

 

Seria interessante ter os espaços para conhecer os corpos intersexuais, os corpos em sua pluridimensionalidade, como sentem, como dialogam, como tem este sentir com a natureza. Estou falando agora com uma visão também muito heterossexual das mulheres e dos homens, mas também conheci hermanas maias lésbicas com as quais convivemos e compartilhamos e quando vejo os afetos das minhas hermanas lésbicas e maias com a natureza, com a água, como erotizamos com os pores de sol, com os banhos de ervas, isso é lindo.  Acredito que aí temos também uma proposta para desconstruir, de como também temos uma relação muito heterossexual com a natureza, da relação de seus corpos com a natureza.

 

 

Isto tem relação com sua proposta da cura como ação política?

 

Propomos a cura como caminho cósmico político. Cósmico porque acredito que os saberes realmente têm essa relação histórica de cura também vem de avós e avôs, ancestrais; há todo um tecido de saberes, uma leitura dos tempos diferente, uma leitura do corpo com a terra diferente, um templo de ciclo de semeaduras e colheitas diferentes, então há toda uma linda sabedoria e por isso é cósmico. Enquanto não abracem essencialismos étnicos creio que são elementos importantes para a emancipação e para curar. E político por acreditar que esse caminho tem uma intenção e uma intenção é justamente assumir de maneira voluntária, de maneira consciente, como estão construídas todas as opressões sobre nossos corpos e como são construídos sentimentos que criam doenças, que são somatizadas.

Então me parece que para nosotras falarmos de machismo, falar de misoginia, de violência sexual como um efeito do sistema patriarcal, não passa somente por montagens de pensamento mas também dos sentimentos internalizados, das opressões internalizadas. Isso é acompanhado por elementos de cosmogonia, com elementos de interpretação das mulheres. Por isso que tece-se a cura como caminho cósmico político, para falarmos de capitalismo não é apenas o que está construído atualmente para interpretar – das suas diferentes categorias até chegar ao neoliberalismo e como vivemos nas comunidades indígenas – mas também acredito que propomos que as desmontagens  do capitalismo sobre nossas vidas é uma prática cotidiana e uma prática amorosa.

 

E aí há outro elemento que também se abraça a essa cura como caminho cósmico político que é recuperar também a ternura, não a ternura que temos construída do amor romântico e burguês, mas recuperar a ternura como energia vital, de desmontar a relação de poder que há entre os corpos e contra a natureza; pois parece que não existem afetividades com a natureza, nem com os animais. Esse é um elemento que nos convoca, pois a ternura é um elemento que também oferece a energia vital na rede da vida. A partir destes mesmos caminhos é que penso o erotismo como energia vital na rede da vida e como um elemento que também vai abraçar esses caminhos de curacomo caminho cósmico político. Não há só uma maneira de emancipar-se, de cura-se, mas acredito que as emancipações estão muito ligadas com intenções cósmicas e políticas feministas, em curar os corpos a partir de sua relação com a terra.

 

 

Lorena, é todo um caminho sensível sua trajetória, não? Gostaria de saber se você poderia falar um pouco de como cresceu, como você se envolveu pouco a pouco com esses temas.

 

Nasci em um bairro marginal de um dos primeiros assentamentos urbanos marginais da Cidade da Guatemala, e se conhece esse contexto a partir das migrações que tiveram meu avós, os maias, por uma expulsão de onde viviam. Desalojados, meus avós vieram sem saber falar castelhano e nesse lugar onde poderiam passar a noite, seguiram vivendo ali. Minha avó xinca também migrou para a Cidade da Guatemala pela situação de empobrecimento, migrou para trabalhar em casa particular. Dessas histórias nasceu meu pai maia q’eqchi’, minha mãe. Eles se conheceram nesse contexto e nascemos aí. Minha família é deslocada por empobrecimento, por falta de terra, acredito que se dá uma vida também com elementos indígenas, minha avó maia q’eqchi’ com seu idioma, seu sotaque; minha avó xinca como curandeira, então cresço nesse contexto, nessa história também. Tenho a possibilidade de estudar, vou a escola primária, vivo o racismo, vivo os efeitos da guerra urbana, e também vivo os efeitos da violência sexual desde criança e isso me marca muito a vida. Estudei por conta própria, digamos, pois comecei a trabalhar aos catorze anos para pagar meus próprios estudos. Gostaria de ser médica mas  recomecei a estudar mais adulta pela questão econômica, e o mais próximo foi estudar psicologia, foi como cheguei a universidade. Devo dizer que nesse caminho encontrei mulheres-chave na minha vida, da minha mãe e avós até uma médica que me apoiou em uma carreira técnica. Na universidade conheço outra linda mulher, que será uma mulher histórica feminista na Guatemala, Mayra Gutiérrez, foi minha professora e foi desaparecida. Um dia disse algo que ficou gravado em mim, ela perguntou se sabíamos que para cada um de nós havia cem indígenas que jamais viriam àquela universidade e nunca iriam se sentar em um escritório. Isso me marcou muito,  disse “sou indígena”, eu não nasci como meus irmãos na área rural, eu aprendi a ler e escrever, estou aqui, eu sou privilegiada como mulher indígena. Essa foi uma energia muito forte na minha vida pessoal. Ainda estudei um curso técnico em arte e lá conheci outra mulher linda, Maria Rosa Padilla, uma mulher filósofa que me impressionou muito, foi quem me deu um primeiro texto sobre cosmovisões. Havia movimento de mulheres, chego a universidade e escuto essa professora – até hoje seu corpo não foi encontrado – e tive esse enorme privilégio de conhecer a Mayra Gutiérrez.

 

Tudo isso e mais todos os caminhos que eu trazia comigo. Eu queria curar a violência sexual que vivi de meu próprio pai e tinha uma preocupação muito grande em todos esses anos, sou a única mulher entre cinco irmãos, e tinha que fazer algo, falar com meninas e meninos para que não vivessem o que vivi. Há 16 anos fui para a montanha de Xalapán por que queria e me vinculei, nesse tempo, com a CONACMI, Comissão Nacional contra o Maltrato e Abuso Infantil; nesse momento não sabia que mulheres se organizavam, não sabia absolutamente nada de mulheres. Nesse contexto de acompanhar processos de situações de violência sexual infantil é que nasceu a organização na montanha, e foi somente em julho deste ano que praticamente saí do território de Xalapán; são 16 anos deste caminho.

 

 

Como se sente agora que muitas pessoas conhecem seus textos, suas práticas? Como se sente nesses diálogos, com as pessoas que conheceu na sua trajetória, as mulheres em seu território?

 

Como me sinto agora, sinto que um dia tive que desarraigar minha vida, desarraigar meu ser pois era um questionamento muito profundo da minha identidade como mulher indígena, de reconhecer as formas patriarcais que se teciam e estavam tão naturalizadas. Por outro lado, acredito que quando as experiências passam pela sua vida pessoal, sendo o pessoal político, acredito que colocar seu corpo como espaço onde está toda a comprovação das opressões patriarcais é aí também onde vocè se indigna, e eu também me indignei da violência sexual, do empobrecimento, de não ter as oportunidades, se quiséssemos colocar neste termo. Me indignei de muitas injustiças comigo, com a minha vida e com a vida de outras crianças, de outras pessoas, me indignava, me doía muito e isso me provocou muita rebeldia. Acredito hoje que muitas mulheres e homens que escutam os corpos plurais que escutam algumas de minhas reflexões, creio que hoje é uma contribuição a refletirmos a partir de outras visões, se outros sentires. Atualmente há uma organização fundada na montanha, foi a primeira organização de mulheres indígenas, pois se revitaliza toda uma identidade, contribuo para a retomada dos elementos de uma cosmovisão libertadora e acredito que esses são caminhos que as mulheres convocaram. Hoje outros territórios conhecem elementos do feminismo comunitário com algumas reflexões que contribuí; e acredito que hoje não é fundamental que todas as mulheres indígenas se nomeiem feministas. O que é importante é que as hermanas e as mulheres considerem os corpos plurais, que considerem que existem alguns elementos dessa reflexão que acompanha seus caminhos e seus processos pois abraçarão o que seja fundamental. Então, isso caminhei com outras hermanas no território, atualmente acompanho outras hermanas a outros espaços, defensoras do território terra que estão vivendo a criminalização, a judicialização, as ordens de prisão, situações extremamente complexas em suas vidas, vidas empobrecidas, que vivem o machismo cotidiano inclusive nos movimentos que reivindicam a defesa territorial, de homens que lá manifestavam machismo extremo também; então é esse o caminho que atualmente convoca, da cura como caminho cósmico político.

 

Tudo isso acredito que seja honrar a memória das minhas ancestrais, também reivindicar a memória das minhas ancestrais pois por alguma razão o cosmos foi tecendo outras possibilidades na minha vida e me vejo com esse compromisso muito político, muito pessoal e de uma mulher que nasce em outro contexto. Acredito que é o que me faz colocar bastante o coração nisso.

 

Propor que existe uma forma patriarcal ancestral originária é possível apenas a partir de me conceber, de me pensar, me sentir mulher indígena; inclusive para questionar algumas abordagens de alguns feminismos que se colocam como radicais pois levantam as opressões padronizadas das mulheres pelo mundo. E chego a ter fortes interpelações com companheiras feministas, nesta pluralidade de feminismos, de como as mulheres indígenas também temos uma reinterpretação das opressões sobre os corpos, sobre a terra – antes da colonização, na colonização e depois da colonização – que são importantes elementos de diálogos com outras feministas.

 

Hoje me sinto em uma situação de completa insegurança, de viver a criminalização, a desacreditação pois os essencialismos emergem cotidianamente. Também viver pelo risco das denúncias contra agressores sexuais, contra feminicidas, fazendo a defesa territorial tem sido forte mas também me sinto muito alegre pois a semente está regada e muitas meninas, meninos, companheiras e companheiros de território abraçam elementos dessa abordagem. Então ver pessoas mais velhas, ver mulheres, homens, hermanas lésbicas, hermanos gays, de todas as manifestações dessa pluridimensionalidade que há dos corpos, me faz celebrar a vida e me sentir muito reivindicada e sentir também que outras meninas e outros povos têm possibilidade de seguir caminhando na construção da vida em plenitude.

 

ilustra_lorena_1

 

 

Você falou um pouco do território, de como os movimentos de defesa estão sendo afetados. Gostaria de te perguntar como percebe toda essa fase do capitalismo neoliberal e como o extrativismo provocou tantas fissuras, destruições e violências também nos territórios. Tenho a percepção de que tudo isso é muito forte na Guatemala, ocorre há muito tempo, durante a ditadura de Efraín Ríos Montt, e também agora ocorre com muita força. Como você percebe atualmente essas investidas dos governos em consonância com o sistema na Guatemala?

 

Sim, acredito aí que seja também interessante escutar ou ler as abordagens de outra hermana maia quiché, Gladys Tzul Tzul, uma linda mulher feminista que justamente faz uma abordagem de como existe uma disputa fodida, sistemática, sobre a vida dos povos e que teve um continuum complexo que é a disputa pela terra. Há um contínuum histórico das violências contra as mulheres e contra a terra e, portanto, um contínuum histórico de violência contra os povos. Então tudo o que tem que ver com como vão expropriar, retirar a terra, a vida cotidiana dos povos, onde eles construíram toda a sua vida na integralidade é sumamente complexo. Todo o efeito colonizador, como estabelecer os limites e colindâncias e toda forma de como finalmente será organizada para uma nova forma capitalista principalmente toda a territorialidade de Abya Yala. Todos os estados-nação coloniais em tudo o que é América, toda Abya Yala, tem relação, para mim, como uma interpretação complexa do que são esses estados-nação colonialistas e de uma legalidade sobre a terra. Assim, se a isso se une o militarismo é extremamente complexo porque, no caso da Guatemala, vem as complexidades e efeitos da guerra. E muito das expulsões massivas dos povos, no caso do povo maia ixil, muito tem relação com a terra, a disputa pela terra. Todo o saqueio que fazem dos territórios na colônia mas também durante o contexto da guerra da Guatemala, que expulsa milhares de irmãos e irmãs da sua territorialidade originária e a uma apropriação de maneira ilegal desses territórios, baseados na legitimidade deste estado-nação colonial e no militarismo imposto. Teria que lhe contar que muitos dos donos de territórios originários, onde se estabelecem projetos de indústrias extrativistas, são militares ou ex-militares.

 

Entender essa complexidade nos permite ver como desde antes, desde o tempo de Ríos Montts, se criam condições legais, se cria também a ley de titulación supletoria. E nos pequenos espaços que os povos cuidavam de sua vida comunal há uma grande invasão de latifundiários, as leis municipais e os juízes municipais outorgam os títulos supletórios de tudo isso, logo, depois da assinatura de todos os acordos de paz vem um boom para a Guatemala e nesse momento o governo de Álvaro Arzú [presidente do país de 1996 até janeiro de 2000] começou a fazer concessões. Neste momento, as concessões começavam da iniciativa privada, as lutas começam depois do relaxamento que criam os acordos de paz nos movimentos sociais. Começam a ser vislumbrados quando começa a luta contra o tratado de livre comércio mas já haviam muitas concessões operando. O recrudescimento do governo de Álvaro Colom [presidente de 2008 a 2012] e logo esse governo [Otto Pérez Molina presidente eleito em 2012 que renunciou no dia 3 de setembro de 2015] que estabelece toda uma estratégia militar desde que entra, além do roubo e expulsão, isso explica a quantidade de estados de sítios, nós vivemos um estado de sítio na montanha que durou um ano. Como nos territórios há repetidas resistências contra os grandes megaprojetos e territórios com populações indígenas vão sofrer o embate de toda essa complexidade da política militarizada e que se soma à complexidade de viver na Guatemala, porque aumenta a criminalização que desponta com o governo de Álvaro Colom, logo neste governo, creio que isso seja impressionante.

 

Atualmente é preciso reconhecer duas coisas: uma é que a luta histórica dos povos originários é uma luta histórica que não começa no dia 16 de abril deste ano, o que acontece é que essa luta também, que dada às complexidades do racismo na Guatemala, das elites e das classes sociais, pareceu ter o cume da indignação no 16 de abril; quando realmente são lutas históricas e a sociedade guatemalteca se indignava. E você não sabe a luta que foi colocar em meio destes processos cidadãos, que levantaram a população da Guatemala contra a impunidade e a corrupção, que  também deveriam se indignar com a violência contra as mulheres, a violência sexual, o saqueio de territórios. Um dos primeiros cartazes que nós levantamos nas primeiras manifestações… Justamente o que pedia a população era que os impunes e corruptos Otto Pérez e a vice presidenta fossem encarcerados por corruptos e ladrões, mas logo os hermanos e hermanas maia ixiles levantavam [cartazes] por genocidas. Corrupto, ladrão mas matam também, tudo isso! E quando nos demos conta desse clamor popular, dissemos “sejamos astutas, puxemos o clamor popular e coloquemos o que também queremos colocar”. Então começamos a fazer cartazes, a levantar, a dizer, a denunciar: “sim, políticos corruptos na cadeia/ liberdade aos presos políticos e às presas políticas pela defesa do território terra”. Começar a vincular a liberdade das presas e presos políticos pois ninguém lembrou-se disso, apenas hermanas e hermanos dos movimentos geralmente e digo muito honestamente, hermanas e hermanos que vivem nos territórios. De repente jovens, feministas vão a rua contra a impunidade e corrupção e quando viam [os cartazes] sobre território diziam “ah sim, é preciso dizer isso”. Então inicia-se uma nova configuração dos movimentos sociais na Guatemala, atualmente há uma indignação que possui grandes desafios porque alcançou o que alcançou, mas acredito que ainda são elementos importantes na luta contra as formas patriarcais internas que se gestam aí; e como não deslocar e postergar lutas históricas mas como tecer todas, fazer algo complexo para caminhar em direção a outros caminhos emancipatórios.

 

 

O que representa  para você a renúncia deste governo caracterizado pela corrupção e aliança com os setores econômicos? Acredita que é uma vitória?

 

É complexo pois não posso anunciar como uma vitória. Não pode ser vitória se o sistema se reconfigura e voltam a se rearticular no poder uma pessoa que vem dos partidos da direita. É uma sociedade que sob a perspectiva de fortalecer a democracia, a legalidade e o estado de direito sente como vitória [a renúncia do general Otto Peréz Molina]. Digo-lhe como mulher indígena, como uma mulher vivendo múltiplas opressões, eu não sinto como uma vitória. Acredito que seja uma etapa importante que se tivermos astúcia política podemos tornar visível como se articulam as opressões e porque atualmente milhões de mulheres, homens, meninos, meninas e corpos plurais seguem vivendo em situações tão indignantes e desumanas. Hoje é uma forma de aproveitar das possibilidades; dentro desse sistema tão nefasto, a possibilidade de articular outras possibilidades de gerar mudanças profundas em uma sociedade como a guatemalteca, tão racista e tão misógina.

 

Colocamos também um cartaz que dizia que a Guatemala ocupa os primeiros lugares em nível mundial de feminicídios. Quando vi que caiu esse governo pensei que apesar de que se passa a conhecer publicamente e se concretam os processos de investigação, as vinculações e os processos judiciais contra estas pessoas e se começa a demonstrar como estão as articulações, a cooptação do Estado “realmente, o sistema de estado-nação colonial não funciona”. Isso é uma prova de que não funciona. E ainda que agora tenham eleições só há duas opções e nenhuma dessas duas tem os elementos que realmente necessitamos; então o que fazemos? Seguimos entrando nesta via partidista para chegar ao poder, alguns hermanos e hermanas querem fazer isso mas acredito que a construção de novas formas de vida com dignidade, onde realmente se assumam compromissos da sociedade para denunciar, expressar, manifestar contra o racismo, a discriminação, o machismo e tudo que temos; acredito que passa por um tecer plural e um plural que reconhece as divergências pois muito da sociedade pode não estar de acordo com as feministas, com nossas propostas, com toda estigmatização ao que se propõe… É bem complexo e é nesta sociedade que estamos.

 

Acredito que nessa etapa, a saída do governo desse senhor [ex-presidente Otto Peréz Molina], dessa senhora [ex-vice presidente Roxana Baldetti] e todos os funcionários que começam a sair; se eu quero o fim do estado de direito democrático eu posso dizer que é muito positivo; se eu quero ver como mulher indígena, como feminista, vejo como uma etapa que poderia permitir a possibilidade de seguir visibilizando a complexidade de problemáticas e as co-responsabilidades da sociedade guatemalteca, tem que entrar realmente em outro estado de consciência para possibilitar outra vida na Guatemala.

 

 

E as articulações e diálogos com feministas de outros lugares, pois o feminismo comunitário vem de um diálogo com as mulheres na Bolívia também, não? Como está nestes diálogos o tema do estado-nação? Como é o diálogo de vocês com as feministas comunitárias na Bolívia?

 

Nosotras sem saber, por outras histórias nos tornamos feministas comunitárias, sem saber ou conhecer as hermanas na Bolívia. Nós nos conhecemos em dezembro de 2010, tínhamos elaborado alguns elementos – nesse tempo na montanha não tínhamos acesso a internet – e foi interessante pois já tínhamos elaboramos alguns pensamentos na Assembleia Nacional Feminista, onde participamos, e começamos a colocar elementos de debate como mulheres indígenas e feministas. Logo ficamos sabendo que viria uma companheira da Bolívia e nos convidaram para dialogar, pois as feministas guatemaltecas e algumas lésbicas feministas diziam “que interessante o que estão abordando em Xalapán e, que interessante, vocês não se conhecem??”, não. “Nunca se viram?”, não; mas acredito que foi um momento histórico muito bonito de conhecer o momento político histórico das irmãs bolivianas. Acredito que isso permitiu em algum momento articular alguns caminhos, compartilhar alguns processos, compartilhar alguns elementos de análise e de reflexão, inclusive categorias; elas falavam em patriarcado pré-colonial pré-colombiano; nós dizíamos porque o denominávamos patriarcado ancestral originário. Logo, nós falávamos sobre as reconfigurações de patriarcados quando queríamos falar sobre uma configuração do patriarcado indígena, antes da colonização; e queríamos falar de um patriarcado que vimos com a colonização. A isto elas chamam de junção de patriarcados e nós abraçamos essa categoria e fomos compartilhando os espaços, processos, debates, momentos.

 

Um elemento que agregamos foi a categoria de território corpo terra por nossos caminhos na Guatemala. Logo, estão as diferentes etapas políticas que caminhamos, no caso da Guatemala devo dizer que nossos caminhos vão de acordo às intenções políticas territoriais e temos uma divergência com um espaço, com um convite mais oficial da Bolívia para suas abordagens e temos um distanciamento. Devo dizer-lhe assim muito honestamente. Seguimos compartilhando importantes elementos, seguimos compartilhando com hermanas feministas comunitárias de vários outros lugares que se nomeiam mas no caso da Bolívia aconteceu isso. Também recebemos críticas na Guatemala e como feministas comunitárias, posso estar equivocada,  mas acredito que uma das primeiras interpelações feitas a nível continental ao “bem viver” como projeto político é a que fazemos da sua proposição em alguns espaços, temos um forte debate e colocamos alguns elementos de análise e reflexão; também de como se reconfiguram dentro de um estado plurinacional as manifestações das opressões das mulheres indígenas e quando um estado plurinacional propõe uma temporalidade das formas patriarcais e isso é bastante complexo, então acredito que os tempos e momentos nos levarão a seguir fortalecendo o diálogo, são irmãs potentes que ajudaram muito a interpelar muito da hegemonia dos feminismos ocidentais, brancos, heterossexuais; e acredito que seguimos abraçando sua energia, seus saberes dos caminhos que estão nos levando agora.

 

 

Você gostaria de agregar algo?

 

Acredito que dos diferentes territórios que estamos, no caso do Brasil que é um território extremamente ancestral, com uma riqueza de vida plural, originária; uma riqueza em toda a natureza, acredito também que é uma riqueza plural em termos políticos, de movimentos e de reflexões também. Ser consciente em como agregar a importância da recuperação da vida, a recuperação dos corpos, a recuperação e defesa da terra como ato político, ato que justamente nos direciona  a seguir contribuindo para a rede da vida. Acredito que hoje, em qualquer lugar do planeta terra, a vida nos convoca, nos convoca à possibilidade de contribuir de maneira consciente à vida. Na riqueza da pluralidade de saberes e de fazeres, acredito que se pode voltar a tecer a vida. Tecer reconhecendo que muito de nossos corpos tem essa relação patriarcal com a terra, a dominaram, a mercantilizaram. Qual é a concepção que temos de habitar a terra, de expandi-la e de explora-la? Ou de como seguir recriando padrões de subjugação da terra. Atualmente nos convoca e nos convida a sermos críticas e críticos, a questionar que a vida só é possível a partir do momento que nós gerarmos essa reciprocidade para a vida. Agradeço muito suas intenções e seu desejo de que minhas palavras, de alguma maneira, acompanhem os espaços de reflexão na revista.

 

 

Leia outras entrevistas da Geni

Tradução: Carolina Menegatti e Juliana Bittencourt

Ilustração: Aline Sodré

, , , , , , , , ,