entrevista
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A página quase em branco
Jaime Parada, um dos políticos gays mais atuantes do Chile e primeiro vereador LGBT eleito no país, analisa os obstáculos dos direitos sexuais na política latino-americana. Por Victor Farinelli, de Santiago
“Temos uma página em branco, onde falta escrever quase tudo”
O historiador e ativista político Jaime Parada Hoyl foi um dos primeiros intelectuais do Chile a defender sistematicamente a bandeira do matrimônio homossexual na imprensa, com a série de artigos “El Matrominio Gay en Cartas” para o semanário de humor político The Clinic, em meados de 2010.
No ano seguinte, passou a formar parte do Movilh (Movimento Pela Integração e Liberação Homossexual) e ganhou maior notoriedade ao ser a principal voz de protesto após o assassinato do jovem gay Daniel Zamudio, que comoveu o país pelos requintes de crueldade utilizados pelo grupo de neonazistas que cometeu o crime. Nesse mesmo ano, o Movilh conseguiu sua maior vitória como movimento: a aprovação da Lei Antidiscriminação, oportunamente batizada como Lei Zamudio, e Jaime foi eleito vereador no município de Providencia pelo Partido Progressista (um partido semelhante ao nosso PSOL). Com esse cargo, desligou-se do Movilh.
Apesar de exercer um cargo numa esfera municipal, Jaime Parada continua trabalhando atualmente em temas de âmbito nacional que envolvem direitos humanos e direitos LGBT, participando de diversos eventos no Chile e em vários outros países.
No mês das eleições brasileiras, a Geni conversou com Jaime Parada sobre as lutas por direitos LGBT em seu país e na América Latina e sobre o que falta escrever na página em branco da história das conquistas desses direitos.
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Gostaríamos de saber um pouco sobre a sua trajetória política, as eleições que você disputou, o trabalho que realiza como vereador e os projetos que defende.
Minha irrupção na política foi jovem. Comecei como ativista em janeiro de 2012, deixando pra trás a carreira de historiador. Em outubro do mesmo ano, depois de uma série de aparições públicas, me candidatei a vereador em um dos distritos mais conservadores do país, Providencia. No cargo, pude levar adiante projetos interessantes, como a mudança no conceito de família que era utilizado na prestação de serviços à comunidade. Também instaurei cursos de direitos humanos em todos os colégios do distrito durante o mesmo horário das aulas de religião – e os alunos podem escolher a qual aula assistir. Inaugurei um departamento de Diversidade e Não Discriminação.
Você teve que enfrentar alguma polêmica ou resistência de adversários ou outros grupos por conta de algum desses projetos?
Apesar de ter tido apoio da prefeita e de seu gabinete, passei por momentos desagradáveis. Sofri homofobia por parte de um vereador de centro-esquerda, que terminou expulso do seu partido por conta disso.
Como você avalia o espaço que os homossexuais têm em diferentes países da América Latina? Considera necessária uma lei específica (como a de cotas para mulheres que o Chile debate há tempos) ou acha que as LGBT devem ganhar espaço de outra forma?
Acho que os espaços estão sendo criados. Na América Latina há cerca de 70 políticos gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais. É verdade que poucos estão em cargos onde se tomam decisões em nível nacional – somos muitos em administrações locais de municípios e afins. No entanto, estão aparecendo lideranças interessantes que podem ajudar a dar impulso à agenda da diversidade e dos direitos humanos.
Apesar disso, ainda é preciso avançar muito. O machismo na política é um flagelo no mundo inteiro, especialmente na América Latina, onde a diversidade sexual ainda é vista com estranhamento.
O que você pensa do avanço político de grupos religiosos contra projetos importantes para a população LGBT? No Brasil, por exemplo, líderes religiosos e partidos vinculados a grupos evangélicos pressionaram o governo a retroceder em um projeto de educação contra a homofobia. Como enfrentar politicamente o lobby religioso?
Acho muito grave que governos, especialmente os de esquerda, sejam tão temerosos e obsequentes diante do poder das igrejas, não importa qual delas. É inaceitável que a religião interfira no âmbito público, da mesma forma que é inaceitável que as autoridades dos países ajam como se isso fosse normal. Dilma e Bachelet [presidenta do Chile] representam, de certa forma, esse medo dos políticos. Um exemplo disso com a Bachelet é que, no seu primeiro governo, dois ou três projetos sobre igualdade para LGTBI foram jogados para baixo do tapete. Por quê? Pressão das igrejas.
O lobby conservador no Chile fica por conta da Igreja Católica e de suas organizações-satélite. A Igreja evangélica, pelo que entendo, concentrou seu investimento antidireitos humanos no Brasil e no Peru, apesar de que no Chile costumam atuar como “comentaristas”.
“Acho muito grave que governos, especialmente os de esquerda, sejam tão temerosos e obsequentes diante do poder das igrejas, não importa qual delas”
Sobre os projetos de políticas LGBT no Chile, é possível notar diferenças em termos de posicionamento político, mais à esquerda ou mais à direita? Você observa semelhanças ou diferenças com o que acontece em outros países?
Como em qualquer lugar do mundo, sempre existe uma ultradireita disposta a bloquear os avanços. Mas não podemos ser ingênuos. O bloqueio por parte da esquerda conservadora pode se transformar numa dor de cabeça até mais forte, porque joga com a ambiguidade.
Um exemplo é o presidente do Partido Socialista chileno, Osvaldo Andrade, que disse publicamente que “o Chile não está preparado para o matrimônio igualitário” – o que também é uma forma de dizer que ele não está preparado ou que é claramente homofóbico. Esse tipo de declaração é uma armadilha discursiva, porque todas as pesquisas de opinião revelam que o apoio ao casamento igualitário é superior a 50% no Chile. E mais: uma pesquisa realizada por um instituto público, com jovens, revelou que o apoio chegava a 70%. O que chama a atenção é que essa declaração vem do presidente de um partido no qual está a própria presidenta da República! Nesse ponto, o Chile não está muito longe de países que estão em dívida quando se trata da coerência de seus políticos.
“Como em qualquer lugar do mundo, sempre existe uma ultradireita disposta a bloquear os avanços. Mas não podemos ser ingênuos. O bloqueio por parte da esquerda conservadora pode se transformar numa dor de cabeça até mais forte, porque joga com a ambiguidade”
O que falta para que os países latino-americanos alcancem altos níveis de proteção aos direitos LGBT?
Penso que vários países têm muito, nenhum deles tem tudo. A Argentina tem o casamento igualitário, mas sua lei antidiscriminação não protege a população LGBT. A Colômbia, especialmente Bogotá, não tem lei de identidade de gênero, mas existe uma consciência inédita de que a população trans deve ser incluída. O Chile quase não tem leis de proteção à nossa população, mas tem uma opinião pública majoritariamente favorável a elas.
Conhecer as experiências de outros países nos permite repetir as boas práticas e os esquemas dos modelos de luta. Mas, sobretudo, nos ajuda a entender que, em termos globais, continuamos tendo uma página em branco, onde falta escrever quase tudo.
Você apresenta na sua página na internet suas atividades e intercâmbios de experiências em outros países, mas na lista não aparecem eventos no Brasil. Que motivos você apontaria para a falta de diálogo entre instituições brasileiras e de outros países latino-americanos em temas relacionados à sexualidade?
Acredito que o Brasil seja visto pelo resto da América Latina como uma cultura diferente, o que também é alimentado pela barreira do idioma. Isso gera um problema, pois a falta de integração impede o aperfeiçoamento das estratégia regionais, que estão começando a se articular nas lutas pelos direitos LGBTI. A segunda década deste século trouxe consigo – acho – uma maior consciência global sobre a necessidade de que promoção dos direitos humanos seja algo planetário, e eu lamento que o Brasil não seja convidado com mais frequência aos fóruns de intercâmbio. No entanto, individualmente, mantemos contatos. Com o Jean Wyllys [deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro], por exemplo, eu tenho uma comunicação fluida, mas é mais pessoal que institucional.
No ano passado, Camila Vallejo (ex-presidenta da Federação de Estudantes Chilenos) foi eleita deputada pelo Partido Comunista, aos 25 anos. Vallejo foi – e ainda é – alvo frequente de declarações machistas, como a do historiador Gabriel Salazar, que ironizou sua capacidade intelectual e a sua beleza, dizendo ainda que o PC manipula sua carreira política. O cientista político Pablo Lira também disse que a gravidez de Vallejo foi uma estratégia eleitoral para emocionar o público e conseguir mais votos. Quais são os efeitos políticos desse tipo de declaração? Como reagiram os movimentos feminista e LGBT a essas declarações?
Declarações desse tipo, vindas da esquerda ou da direita, têm um efeito espelho, ou seja, voltam para quem as emite. Apesar de movimentos feministas – que, lamentavelmente, não são muito fortes no Chile – e LGBT não terem reagido especialmente, os cidadãos organizados reagiram. O repúdio às declarações de Salazar e Lira foi muito forte nas redes sociais e chamou atenção da imprensa na mesma hora. Principalmente a declaração de Lira, que tem fama de ser polêmico.
E nessa história há ainda duas questões. A primeira é que existe um forte anticomunismo no Chile, em setores de direita e de esquerda. Acredito que a rejeição de Salazar e Lira é mais ao Partido Comunista que a Camila, mas, como ela é a cara mais visível do partido, acaba sendo mais difamada. Além disso, muitas pessoas se irritam com o fato de que ela, uma mulher, uma jovem inteligente – e além de tudo bonita –, tenha sido líder do movimento que hoje está no centro do debate. Para uma cultura machista, anticomunista e em certo ponto misógina como a chilena – ou parte dela – é difícil digerir um fenômeno como a Camila.
“é possível ver colaborações entre ativistas cannábicos, LGBT, pró-aborto, mas não é uma articulação de movimentos […]. Isso é consequência de uma sociedade despolitizada pela ditadura e que atravessa hoje um lento processo de repolitização”
Há coletivos LGBT chilenos que trabalham de maneira transversal e a favor das lutas de classe, gênero e sexualidade?
No Chile não existe uma consciência de que a luta é algo transversal. Cada movimento tem a sua agenda e as suas estratégias. Excepcionalmente, o movimento estudantil conseguiu reunir muitos grupos excluídos ao redor de uma causa, mas acho difícil que isso se repita a curto prazo. Hoje, por exemplo, é possível ver colaborações entre ativistas cannábicos, LGBT, pró-aborto, mas não é uma articulação de movimentos, sequer de coletivos, mas sim algo pessoal, individual. Isso é consequência de uma sociedade despolitizada pela ditadura e que atravessa hoje um lento processo de repolitização.
Muitos de nós entendem que as causas teriam maior densidade se se transversalizassem, mas isso não é possível. O próprio movimento estudantil, e seus líderes em particular, não tiveram a sensibilidade de convocar com convicção o apoio a causas diferentes das suas. E, insisto, isso tem uma origem profunda no dano que a ditadura provocou ao tecido social.
Ilustração: Bruno O.
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