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Alciana Paulino, Cecilia Silveira, Esculacho, família, mãe, número 4, poesia, religião
ESCULACHO | Quando cai a cruz, entram cores e versos
Estabelecendo outra relação com o divino e redescobrindo a vida e a poesia aos 50. Por Alciana Paulino
Minha mãe sempre foi uma mulher incrível. Generosa, divertida, inteligente e sensível. Levou diversas rasteiras da vida e, com uma religiosidade própria, construiu caminhos e descaminhos. Depois dos 50, resolveu que mais importante que carregar a cruz era botar cor na vida.
Zilda nasceu no interior de Goiás, em 1959. Quando sua mãe ficou viúva, tinha quatro irmãos e apenas 5 anos de idade. Filha mais velha, trabalhou desde sempre para poder ajudar a família, com a qual veio para São Paulo em 1979, ano em que perdeu um irmão. Esbarrou em diversos limites impostos às mulheres pobres, migrantes e negras. Mas sempre carregou com ela uma fé própria. Misturava o kardecismo (religião da família) com uma série de outras filosofias, crendices e religiões. Já perambulei com ela por uma série de igrejas evangélicas, rezas, curandeirxs, centros e orações.
Num dado momento de nossas vidas, com a corda no pescoço, quando os limites já tinham sido ultrapassados – corríamos o risco de passar fome e sofríamos diferentes tipos de violência –, ela se debruçava e rezava. Isso causava em mim muita raiva, não aceitava vê-la naquela posição passiva. Eu e minhas duas irmãs ainda éramos crianças, precisávamos dela! Mas sua sensação de impotência era tamanha que a única relação que conseguia estabelecer era com o sagrado. Toda vez que eu pedia para tomar uma atitude, ela dizia que não podia deixar sua cruz pelo caminho, que isso não era certo.
Ela juntava um monte de referências de religiões que pouco se conversam para embasar a teoria que se saísse daquele inferno estaria abandonando sua missão na terra. Comemos o farelo do pão que o diabo amassou com o rabo. Depois de algum tempo, não suportei e fui morar com minha avó, deixando minhas três amadas naquela condição. Mas, de tão perto, eu não tinha forças para ajudar.
Passados uns anos, minha mãe foi se transformando, ganhando mais confiança e botando as asas para fora. Quando chegou aos 50 anos, fez sua vida virar de cabeça para baixo e tem se descoberto mulher, livre e autônoma. Jogou a cruz fora e, com ela, a culpa e o medo do julgamento alheio. Ela continua com sua mistureba religiosa, mas agora aceita os discursos que a tornam potente, ativa e criadora da própria história. Hoje, estabelece outra relação com a divindade.
Tem se encantado com a vida, ouvido música, dançado e investido em sua autoestima. O resultado de tudo isso é a coragem que tem tido para escrever. Sem o ensino médio completo, morria de vergonha de expressar seus sentimentos em palavras, mas, depois dessa transformação, tem escrito poemas que refletem esse momento. Fala sobre seus desejos, afetos, seu corpo, problemas sociais etc.
Sangue latente
por Zilda Paulino
Sei que não sou uma sereia
Também não sou um saco de areia
Não vivo por barriga cheia
Tenho sangue latente na veia
Que por amor anseia
Não quero quem me pranteia
Basta que não me chateia
Quero alguém que não me arreia
Que não faça do amor cadeia
Que a minha vida clareia
E que o meu corpo incendeia.
Seu sonho agora é que o Gabriel o Pensador musique e grave um de seus poemas. Um dos meus sonhos já foi realizado: vê-la bem, colorida, divertida e pintando e bordando por aí.
Assim como minha mãe, muitas mulheres passam por situações em que parece não haver saída, chegam a pensar que é tarde demais para mudar ou para se reinventar. Se você é umx jovem de 54, 75, 98 ou 103 anos, tanto faz. Nunca é tarde para jogar o que não presta fora e buscar mais cor e tesão na vida.
Vem, vamos juntxs!
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Ilustração: Cecilia Silveira.