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Fogo cruzado

A luta do movimento LGBT de Uganda contra leis homofóbicas patrocinadas por fundamentalistas evangélicos dos Estados Unidos. Por Marcos Visnadi

revista geni cecilia silveira UGANDA DAVID KATO

Foi uma morte anunciada. Por um tabloide de circulação pequena, mas com grande poder de fogo. Em 26 de janeiro de 2011, um dos principais ativistas gays da África, o professor ugandense David Kato, foi assassinado dentro de sua casa a golpes de martelo. Meses antes, o jornaleco Rolling Stone havia publicado fotos de Kato e de dezenas de outrxs LGBT de Uganda com a frase: “Enforquem-nxs!”.

 

Na época, Uganda era considerada pela imprensa internacional como o pior país do mundo para pessoas LGBT viverem. Recentemente, esse título tem sido disputado pela Rússia e outros países do Leste Europeu, no que parece ser uma nova onda de intolerância que ninguém sabe que alcance terá. Na pior das hipóteses, talvez Uganda entre para a história como a vanguarda de um novo tipo de homofobia estatal, pois foi lá que, em 2009, o parlamentar David Bahati apresentou o Projeto de Lei Anti-homossexualidade, também conhecido como Lei de Morte aos Gays.

 

Esse projeto visa endurecer as penas contra a homossexualidade, herdadas da colonização britânica. Atualmente, ser homossexual em Uganda pode render prisão por sete anos (por “indecência”) ou prisão perpétua (por “conjunção carnal contra as leis da natureza”). A proposta de Bahati era de que a prisão perpétua seria a pena mínima, aplicada em casos de “ofensa homossexual”. Para os outros casos, chamados de “homossexualidade agravada”, seria aplicada pena de morte. Estes casos incluem sexo homossexual com menores de idade ou com pessoas com deficiência, mas também o praticado por pessoas que sejam pais, mães, autoridades públicas ou que tenham HIV. Na justificativa da lei, David Bahati escreve que ela visa a “fortalecer a capacidade da nação de lidar com as emergentes ameaças internas e externas à tradicional família heterossexual”, assim como a resguardar os valores “legais, religiosos e tradicionais” do povo de Uganda e – não menos importante – proteger crianças e jovens contra “abusos sexuais e desvios”.

 

Homofobia para exportação

 

Há uma história complicada e sinistra por trás das ações de David Bahati. Parte dessa história certamente pode ser contada a partir da colonização de Uganda pela Inglaterra, iniciada em 1894. Como todos os territórios africanos invadidos e colonizados por países europeus, o de Uganda possuía vários reinos e tribos, que tiveram seus costumes e culturas submetidos à moral e ao poderio militar do país colonizador.

 

Mas outra parte dessa história é bem mais recente. Em março de 2009, Kampala, a capital do país, recebeu a visita de três pastores evangélicos estadunidenses. Um desses pastores, Scott Lively, se diz ex-homossexual e há vários anos milita contra os direitos LGBT. Em 1996, ele lançou um livro chamado The pink swastika (A suástica cor-de-rosa), em que afirma que “os homossexuais foram os verdadeiros inventores do nazismo e são a força por trás de muitas das atrocidades nazistas”.

 

Apesar de não ser levado muito a sério em seu próprio país, Lively parece ter o dom de transformar recalque em política no cenário internacional. Em 2007, ele já havia feito um tour por 50 cidades russas, e, no último dia 24 de setembro, disse em entrevista a um programa de rádio dos Estados Unidos que as últimas ofensivas homofóbicas do governo russo são um dos feitos de que ele mais se orgulha em sua carreira: “Eu incluí [a sugestão para a lei antipropaganda gay] na carta ao povo russo que publiquei na última cidade do tour, que foi São Petersburgo, e obviamente São Petersburgo acabou sendo a primeira cidade a adotar essa lei”.

 

Em março de 2009, Lively também fez propostas ao povo ugandense. Dessa vez, ele falou no próprio Parlamento de Uganda, e tem sido acusado de ser um dos autores do texto da lei que David Bahati apresentou em outubro daquele ano.

 

Por esse motivo, em março de 2012 o grupo Minorias Sexuais de Uganda (Smug) abriu um processo contra Scott Lively na Justiça dos Estados Unidos por crimes contra a humanidade. Lively tentou impedir judicialmente o andamento do processo, mas, no último mês de agosto, o juiz federal Michael Ponsor negou seu requerimento. Segundo Ponsor, “a perseguição generalizada e sistemática a pessoas LGBTI constitui um crime contra a humanidade que viola, sem dúvidas, as normas internacionais”.

 

Ao lado de Lively, outros dois ativistas homofóbicos pregaram em Kampala. Um deles, Don Schmierer, era integrante do grupo Exodus, organização que se dedicou à “cura gay” por 37 anos, até que encerrou suas atividades em junho deste ano, com um pedido de desculpas pelos “anos de pré-julgamento da Igreja como um todo”.

 

revista geni cecilia silveira UGANDA RACHEL MADDOW

 

A influência da direita estadunidense em Uganda se complica ainda mais com as denúncias da jornalista Rachel Maddow de que um poderoso grupo, conhecido como A Família – um misto de máfia, igreja e organização secreta, que conta com integrantes do Partido Republicano (a oposição ao Partido Democrata, de Barack Obama) –, também estaria envolvido na articulação das políticas homofóbicas ugandenses, capacitando e enviando recursos econômicos para vários políticos do país africano, incluindo o presidente, Yoweri Museveni (no poder desde 1986), e o parlamentar David Bahati.

 

Resistência kuchu

 

Acuadas por essa ofensiva pesada, as pessoas LGBT de Uganda passaram a viver um cotidiano de medo e insegurança. Segundo o diretor executivo do Smug, Frank Mugisha, em entrevista à Geni, a homofobia no país piorou muito desde que a lei de Bahati foi apresentada. “Antes de 2009, as pessoas gays de Uganda não eram tão atacadas. Tinha homofobia e medo, mas não tanto quanto agora. Naquele tempo, gays eram xingados, mas não eram presos ou atacados nas ruas.” Mugisha se tornou uma das principais referências do movimento LGBT ugandense após a morte de David Kato, seu amigo próximo.

 

revista geni cecilia silveira UGANDA FRANK MUGISHA

 

Esse cenário aterrador, por outro lado, fez emergir um dos movimentos LGBT mais corajosos e combativos do mundo. O documentário Call me kuchu (Meu nome é kuchu) conta essa história, inclusive acompanhando os últimos anos de vida de Kato. Kuchu é como são chamadas as pessoas LGBT em Uganda.

 

Em 2012, a comunidade internacional assistiu surpresa à realização da primeira Parada do Orgulho LGBT daquele país, algo que parecia impossível de acontecer, em meio a tanta perseguição. A polícia interveio e várias pessoas foram presas, mas, em 3 de agosto deste ano, ocorreu a segunda edição da Parada, que reuniu mais de cem pessoas.

 

Além das Paradas, Frank Mugisha ajuda a organizar campanhas para erradicar a homofobia. Segundo ele, há mais de 50 organizações não LGBT em Uganda que apoiam sua luta, assim como líderes religiosos e políticos, mas são poucos os que ousam se declarar publicamente.

 

A ajuda internacional também é importante, mas pode ser problemática, como no caso de declarações do chanceler canadense, John Baird, que criticou a Lei de Morte aos Gays dizendo que ela feria “valores canadenses” e que seu governo deveria interferir diretamente para que não fosse aprovada. A fala de Baird teve efeito contrário ao desejado, e por pouco o Parlamento de Uganda não aprovou às pressas a lei como afirmação de soberania nacional.

 

A situação é delicada e requer cuidado e persistência da comunidade internacional. “Há ugandenses que dizem que a homossexualidade é uma agenda política patrocinada por doações e uma importação do Ocidente”, diz Frank Mugisha. “Mas nós ficamos felizes com intervenções diplomáticas apropriadas. Não queremos que parceirxs e amigxs de outros países se calem frente à violação de direitos LGBT.”

revista geni cecilia silveira UGANDA

*Colaboraram Aline Gatto Boueri, Clara Lobo e Lia Urbini.

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Ilustração: Cecilia Silveira.

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