Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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O x da questão

Uma língua pode ser machista? Leia o segundo texto do debate sobre o binarismo de gênero na língua portuguesa. Por Ligia Xavier

“A língua portuguesa é machista.” Na minha vida pós-ensino superior, essa afirmação nunca me fez sentido. Sou bacharel em linguística e adoro aprender idiomas estrangeiros.

 

Embora eu reconheça a importância de marcar no discurso a igualdade de gêneros ou sua neutralidade, ainda me pergunto: o quão isso é pertinente para a real conquista da igualdade de gêneros? E por que motivo a marcação linguística é tão valorizada?

 

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A princípio, caracterizar uma língua como machista (ou não) me incomoda, e muito. A oração “A ração comeu o gato”, embora gramaticalmente correta, não faz sentido, pois o verbo “comer” não aceita como sujeito seres inanimados.

 

Já “O gato comeu a ração” faz sentido, pois “gato” é um ser vivo, animado, com capacidade de comer (se fosse “a rosa” em vez de “o gato”, também não daria certo, pois, apesar de a rosa ser um ser vivo, ela é desprovida da capacidade de comer).

 

Explico essa característica semântica de determinadas palavras pois acredito que “machista” é um adjetivo que não pode ser atribuído a qualquer substantivo.

 

Assim como para mim não faz sentido a oração “A ração é machista”, não vejo sentido em “Tal língua é machista”.

 

Quando ouço argumentos sobre o (português) brasileiro ser uma língua machista, normalmente eles tratam sobre a norma gramatical do uso do plural ser predominantemente masculino e do gênero de palavras, como, por exemplo, “poder” ser masculino, mas “fraqueza” ser feminino. Também ouvi argumentos filológicos, que remontam a origem de palavras, como o exemplo de Marcos Visnadi na edição anterior da Geni sobre “pátria” vir de pater (pai, em latim).

 

Em latim, assim como em alemão e no grego moderno, há três gêneros: neutro, feminino e masculino. O fato de haver um gênero neutro torna essas línguas menos machistas?

 

Então, seguindo a linha de pensamento desse argumento, línguas como o japonês ou o húngaro não são machistas? Essas línguas não têm marcação de gênero (nem no substantivo, sequer em adjetivos, artigos ou pronomes).

 

Em húngaro, por exemplo, não há “ele(s)/ela(s)”, há apenas ö, terceira pessoa do singular, e ök, terceira pessoa do plural. “Poder” e “fraqueza” não são palavras nem femininas nem masculinas, são apenas dois substantivos. “Pátria” é szülőföld ou haza, que, em uma tradução livre, significam “terra de nascimento” e “lar”, respectivamente.

 

Com os exemplos apresentados, pela lógica aristotélica, conclui-se que húngaro não é uma língua machista.

 

Mas pensemos numa língua com a qual temos mais contato: o inglês. Apesar da existência dos pronomes he (ele) e she (ela), não há marcação de gênero predominante em substantivos nem em adjetivos. E há it (comumente ensinado como utilizado para objetos, abstrações ou animais, embora você possa utilizar para se referir a bebês). Falantes de inglês não têm, então, noção de gênero? Sim, eles têm. Um exemplo é o livro, que virou filme, de Stephen King: Christine – O carro assassino. Christine se chama Christine, um nome tipicamente feminino em inglês, pois, um carro, se personificado na língua inglesa, receberá um nome feminino. Se houvesse marcação de gênero no artigo em inglês, carro seria “a carro”.

 

PS: em inglês, quando se quer neutralizar o gênero, usa-se they e theirs em vez de she/he e hers/his.

 

Determinismo/relativismo linguístico

 

Em tupi antigo há substantivos que não podem ser possuídos. É impossível dizer “Eu tenho uma árvore” exatamente com essa estrutura linguística (verbo ter + objeto).

 

Isso significa que os falantes de tupi antigo não tinham noção de propriedade?

 

Acredito que não – nem que essa noção fosse a mesma dos colonizadores.

 

Entretanto, muitas pessoas acreditam que sim e acham isso uma conclusão óbvia. Por quê?

 

Para mim não é óbvio que a língua e suas características gramaticais ou lexicais definam se quem a fala será conservador, machista, comunista, libertário ou se faz parte de qualquer ideologia. Essas características também não (de)limitam como seus falantes interpretam o mundo.

 

Já ouviu a história de que “saudade” só existe em português? Ou de que há 15 (ou 40) palavras para “neve” em esquimó, mas em português só há uma?

 

Esses são exemplos de como uma teoria, a do relativismo linguístico, criada/defendida pelos linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, resumiu-se a: “A língua determina a visão de mundo de seu falante”.

 

É fato que não há um substantivo equivalente a “saudade” em diversas outras línguas, mas isso não isenta seus falantes de terem esse sentimento ou os limita ao expressá-lo.

 

Gênero linguístico e gênero social

 

Lembro-me da primeira vez que estudei francês e aprendi a palavra mer (mar). Achei que o livro continha um erro, pois lá estava la mer (“a mar”). Na prática, aprendi que gênero varia de língua pra língua e de grupo linguístico pra grupo linguístico. No Brasil, tem gente que fala “o personagem”, tem quem fala “a personagem”; também tem quem fale “a pipa” e tem quem fale “o pipa”.

“Leite” é masculino em brasileiro, mas em espanhol é feminino (la leche). Aqui falamos “a morte”, mas quem fala alemão ou norueguês fala “o morte” (der Tod, død, respectivamente).

 

Ou seja, o gênero linguístico não está necessariamente ligado ao gênero social.

 

O x da questão

 

O uso da língua faz a diferença ao expressarmos algo. Vide os poemas, que várias vezes se utilizam da liberdade poética, que nada mais é do que um “passe livre” que dispensa o uso da gramática normativa.

 

A gramática normativa, como diz seu nome, determina a norma. E essa norma foi construída baseada em valores que não contemplam mais nossa atual sociedade – vide a enorme diferença do brasileiro oral com o brasileiro escrito.

 

E estamos aqui para questionar essas normas, não só a gramatical, mas também a política, a moral e tantas outras.

 

Devido a isso, acho importante a inclusão de gêneros (mais que sua neutralização) em um discurso, seja ele oral ou escrito. Isso pode ocorrer com o uso de x em pronomes, artigos, substantivos e/ou adjetivos e também pode ocorrer com o uso de dois plurais e inversão.

 

A grande pergunta que me faço é: qual o impacto disso na luta pela igualdade de gêneros?

 

A sociedade japonesa não é menos machista que a brasileira por sua língua não apresentar gênero. A sociedade alemã ou grega não é menos machista que a nossa por ter um gênero linguístico neutro.

 

O exemplo sueco (?)

 

A Suécia há décadas tem políticas públicas de igualdade de gênero. Desde a isonomia na educação das crianças (não deve haver “brinquedos de menino” ou “brinquedos de menina”) a períodos iguais de licença-maternidade/paternidade, ou igualdade de salários entre homens e mulheres, ou a não objetificação de mulheres em propagandas (98% das propagandas brasileiras de cerveja não seriam aprovadas na Suécia).

 

Na língua sueca há “ele” (han) e “ela” (hon). E, há algum tempo, ativistas começaram a utilizar hen, que é um pronome neutro, criado artificialmente – do ponto de vista linguístico. Quando um membro da família real, em seu discurso público, utilizou hen, ativistas vibraram, a população pró-igualdade de gêneros comemorou: um membro da família real reconheceu em seu discurso um pronome neutro, criado dentro do movimento.

 

E que impacto teve isso? Apesar de todas as políticas públicas, ainda há machismo na sociedade sueca. Claro que não é de se esperar que, só pelo fato de um membro da família real ter utilizado hen, o machismo fosse erradicado.

 

Então…

 

Acredito que a disseminação errônea do relativismo linguístico leve muitos a pensarem que a língua determina o ponto de vista de seus falantes. E que isso é irreal. Mas essa disseminação também leva a preocupações com a língua que não devem ocorrer no nível em que ocorrem.

 

Uma coisa é se preocupar com o uso da língua, outra é com a língua em si. Muitos dos gêneros das palavras do brasileiro foram determinados por sua origem no latim ou, por analogia, por sua terminação (se alguém usa em seu discurso “amigues”, é porque o “e”, em latim, era marcação do gênero neutro): são regras fonéticas.

 

Notem que palavras estrangeiras terminadas em -a (o som) tendem a ser utilizadas com o artigo feminino, já palavras de origem estrangeira terminadas em -e, tendem a variar o uso do artigo. “Alface” termina em -e; apesar de ser de origem árabe, como o nosso sistema fonológico herdou a neutralidade do -e do latim, há quem fale/escreva “a alface”, e há quem fale/escreva “o alface”.

 

Dentro do nosso próprio sistema linguístico é possível incluir todos os gêneros da nossa língua. Em um discurso, por exemplo, é possível dizer “brasileiras e brasileiros”. O uso de dois substantivos, um no masculino e outro no feminino, e o fato de o primeiro ser no feminino, já demonstra essa preocupação de inclusão. Utilizar “x” ou “@” também marca isso (embora foneticamente seja impossível de se reproduzir).

 

No âmbito da língua, ambas as formas têm o mesmo valor; no âmbito do uso da língua, “x” e “@” são mais expressivos.

 

Entretanto, o x da questão, para mim, é: não vale mais a pena gastar energia discutindo quais estratégias podem levar a políticas públicas de inclusão? Pois utilizar “x” ou “@” no discurso escrito pode até incluir pessoas no discurso, mas o objetivo principal não é incluí-las na sociedade?

 

Não quero desmerecer com esses argumentos a inclusão de gêneros no uso da língua. Acredito que ela é importante, e também acredito que ela pode vir posteriormente à inclusão social de gêneros, como sua consequência, e não sua causa.

 

Lígia Xavier é curiosa, tem 1,75 metro de altura, calça 39, joga “preistêixion”, adora línguas humanas e utiliza-se da ambiguidade para fazer piadas toscas.

Ilustração: Bianca Muto.

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