Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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PEGA NO MEU POWER | A ovelha que dançava com os lobos

Pude entender que minha raiz étnica era muito mais rica do que eu jamais imaginara. Por Sueli Feliziani


A primeira vez que me chamaram de negra foi à mesa de almoço de Natal.

 

Bastou um olhar ao redor… Eu era completamente diferente deles. Olhos, boca, cabelos, nariz. Me perguntava: seria diferente por dentro também? Eu tinha 11 anos. E respondi: “Você quer dizer, eu, sua neta!”. Minha matilha me observava, perplexa, curiosa.

 

Essa sensação de estranhamento sempre me acompanhou. Até aquele momento não havia entendido por que os trabalhos mais pesados me eram destinados, mesmo os não dedicados às outras mulheres. Por que eu nunca podia falar à mesa. Ou por que meu cabelo era ruim e nunca podia ser usado solto. Realmente me fizeram acreditar que eu era diferente e que talvez eu pensasse sempre de forma diferente, e inferior, por conta disso.

 

Foram muitos anos. Mesmo fora de casa. Os lobos mudavam. A ovelha não.

 

Dali ao contexto escolar, coisas mudaram um pouco. Mas muito pouco.

 

Numa vizinhança elitista, apenas algumas poucas crianças, um tanto desajustadas, queriam contato próximo com a Negra. A moça grunge do fundão, a menina nerd de aparelho.

 

Cresci com poucos amigos e minha família atribuía isso a minha falha étnica. Negros eram inábeis em socializar com pessoas de bem, pessoas normais e de sucesso.

 

Era interessante ver como, para o imaginário preconceituoso deles, toda incompatibilidade causada justamente pelo contexto racial excludente se tornava uma falha minha, do excluído, e não do sistema imposto.

 

Deparei-me várias vezes com essas constatações absurdas, vindas de vários lugares, mas o contexto familiar era o campeão.

 

Em uma época, especialmente agitada na busca por empregos, me lembro de minha mãe atribuir as muitas recusas de efetivação ao meu cabelo cheio, cacheado, que eu recusava alisar, e não ao grande número de entrevistas que consegui com meu bom currículo e experiência, em contraste com um mercado racista e excludente.

 

Isso me barrou durante muito tempo na busca por oportunidades de crescimento profissional e acadêmico. Do fim do ensino médio ao começo da universidade foram sete longos anos, pulando de subemprego em subemprego, até juntar o suficiente para subsistir sem ajuda e ir em busca do meu sonho da universidade pública. Minha família não acreditava na educação como forma de ascensão social e de realização pessoal, portanto não havia apoio algum para que eu atingisse meu objetivo.

revista geni cecilia silveira SUELI FELIZIANI 

Eu não tinha ideia de quanto o acesso a mais informação, e a informação de qualidade, teria impacto nessa minha autoimagem, nessa minha construção social e na minha autoestima quanto a ser capaz de contribuir para a sociedade de modo efetivo e positivo, a despeito de meu fenótipo característico. Em contato com literatura específica, a história e a literatura dos países de origem da minha etnia, pude entender que minha raiz étnica era muito mais rica do que eu jamais imaginara. E que ser negra não trazia em si apenas os desconfortos que um contexto de incompreensão e intolerância podiam carregar.

 

Aos poucos formei a imagem de mim que mais me agradava e tentei ao máximo não me separar dela. E aos poucos deixei de dançar a dança do outro, para criar o meu próprio estilo. Passei a reorganizar minha identidade e a eliminar o preconceito internalizado que me acompanhava desde a infância.

 

Aprendi a buscar empregos em locais com regras de vestuário e aparência que permitissem a expressão de meu eu e de minha riqueza étnica natural sem grandes problemas. Locais onde ser magra, alta e caucasiana não fossem valores essenciais. Minha maquiagem, vestuário e comportamento agora seguiam as minhas cores, o meu biótipo e o meu humor. E minha família já não tinha tanta influência no que eu pensava ou não das minhas relações, apesar de olhar estupefata meus turbantes e meus colares, se perguntando, provavelmente, de onde eu arranjara tanta negritude, uma vez que eles a esconderam de mim tão bem por tantos anos.

 

E continuei dançando. As outras ovelhas que encontrei no caminho me aproximaram ainda mais do que eu acreditava. A partir da minha entrada na universidade e do contato com os estudos de gênero e com o movimento negro, pude reforçar essa redescoberta da identidade negra. Do ser negra de fato e do que isso representava numa sociedade de lobos.

 

Discutir junto a outros em mesma situação, em um movimento organizado, foi fundamental no meu processo de organização da identidade. Vencer a discriminação internalizada e construir uma nova forma de enxergar, uma nova forma de encarar o acontecimento que é ser negra. A minha identidade passou a ser constitutiva de um eu significativo, com função social, com uma história, um cabedal cultural.

 

Ao me afirmar como mulher, e como mulher negra, eu solidifico minha construção identitária de posicionamento político. A partir dela é que consigo atuar para reivindicar direitos para o nosso grupo. É a partir disso que construo minha voz, minhas necessidades, minhas forças, minhas fraquezas, minhas preocupações enquanto ser social. E ainda como mulher-mãe-africana me dou o direito de levar meu filhote lindo nessa descoberta comigo. Quero que minha história me ultrapasse.

 

É a partir do ser mulher e do resgate do ser negra que eu criei o meu próprio ritmo. Já não danço mais com os lobos. Continuo dançando. Mas hoje, hoje danço ao som do ilu até o dia clarear.

Ilustração: Cecilia Silveira.

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