Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Pra lantejoulizar

Em defesa das pintosas, femininas & pão com ovo! Por Pedro “Pepa” Silva

Nos anos 1980, a dupla Kleiton & Kledir fez sucesso com deliciosas composições irônicas e ambíguas. Tachados como bregas por quem sempre anda armado de “bom senso” e “bom gosto”, são um caso único na MPB. Sua mistura de elementos gaúchos, de humor e sensibilidade singulares fazem das composições da dupla algo ímpar – basta ouvir “Paixão”, “Nem pensar” ou “Tô que tô” pra adentrar um pouco esse universo. O que pouca gente deve conhecer (e que eu também só descobri recentemente) é um projeto anterior desses irmãos: um grupo chamado Almôndegas.

 

Os Almôndegas eram Kleiton e Kledir Ramil unidos a mais três amigos (Gilnei, Quico e João Batista), e apostavam numa sonoridade rock com aquela fusão setentista bem característica. Entre 1975 e 1978, eles lançaram quatro discos – o que me fisgou de cara foi o último, Circo de marionetes, no qual lançaram esta faixa fantástica:

 

Androginismo

 

Quem é esse rapaz que tanto androginiza?
Que tanto me convida pra carnavalizar?
Que tanto se requebra do céu de um salto alto
E usa anéis e plumas pra lantejoulizar?
Que acena e manda beijos pra todos seus amores
E vive sempre a cores pra escandalizar?

A minha mãe falou que é um tipo perigoso
Que vive sorridente fazendo quá, quá, quá
O meu pai me contou que um dia viu o cara
Num cabaré da zona dançando tchá, tchá, tchá
Quem é esse rapaz que tanto androginiza?
Que tudo anarquiza pra dessocializar?
Com mil e um veados puxando seu foguete
Que lembra um sorvete pra refrescalizar?

Cuidado aí vem ele, é um circo, é um cometa!
Abana, abana, abana, que é o Papai Noel!

Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…”

 

Com a música na cabeça, fiquei o mês inteiro cantarolando e pensando no “tipo perigoso” que é a figura do gay afeminado.

 

Mil e um veados

 

A bicha louca. A feminina. A afetada. Quantos epítetos inventamos para ela? Ela é a coisa que incomoda, como bem definiu nossa amiga Claudia Celeste. Incomoda os homens héteros por recusar a macheza como algo determinado pelo seu corpo de homem. Incomoda algumas mulheres por incorporar um lance feminino, colocando-o num lugar distinto. Incomoda gays por não assumir o discurso da necessidade de ser “discreto”. A bunita enfrenta todos os dias uma batalha. Às vezes, faz da fechação (esse ato de dar pinta exageradamente) seu momento de maior poder, de escracho dessa sociedade que quer dominar seu corpo. Ela sabe que sua performance no palco da vida é usada como motivo pra hostilidade – que ela ouve, mastiga, engole e às vezes apreende como única coisa que o mundo lhe oferece –, mas também pode ser sua arma. Afinal, porque a fechação não pode ser política?

 

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O antropólogo Edward McRae tematizou essa questão em um artigo de 1982, intitulado “Os respeitáveis militantes e as bichas loucas”, no qual mostrou como grupos gays afastavam as quá-quás de algumas discussões por elas supostamente não estarem providas de uma seriedade para os debates. O problema era supostamente o seu cinismo (essa forma de ver o mundo à distância, sem nele se envolver, e que não deixa de ser uma herança que esse próprio mundo engendrou). Permanece, porém, a questão dos limites entre a fechação como atitude política (mais ou menos deliberada) e o quanto ela é passível de sofrer um esvaziamento quando reduzida à caricatura.

 

Conhecemos esse último caminho, afinal é assim que muitas vezes o homossexual é representado em produções culturais – o que foi muitas vezes questionado. O problema é quando se quer apenas a substituição da incômoda imagem do gay afetado pela imagem aceitável (digerível?) do “gay discreto”.

 

Esse ponto é daqueles que dão nos nervos de discutir, porque exige uma paciência infinda pra tentar convencer o interlocutor do absurdo de naturalizar a associação entre os termos “gay” e “discrição”. Ninguém diz por aí que prefere se relacionar com “heterossexuais discretos”; no entanto, o pseudoconceito do “gay discreto” parece ganhar força a cada dia. Para atingir esse estágio, não faltam dicas na internet de “bom comportamento”, de como “ser gay sem aparentar”, ou como “evitar um comportamento afetado” etc. (Sim, acredite, há muito chorume desse tipo jogado por aí.)

 

Discretamente invisível

 

Mas o que esse conceito de “gay discreto” esconde? Pra mim, trata-se de uma estratégia de diluição ou esvaziamento do discurso gay mais autoconsciente (basta pensar na expressão correspondente em inglês: straight acting – ou seja, “agir como hétero” – é o termo usado para se referir ao comportamento do “gay discreto”). Uma estratégia de invisibilidade e higienismo. E, pior, assumida pelos próprios homossexuais como algo “natural” em frases feitas que são um #primor do “machismo nosso de cada dia”. Afinal, quem nunca ouviu por aí coisas do tipo:

 

“Não sou e não curto afeminados.”

“Nada contra afeminados, mas não curto amizade com eles.”

“Andar com essa bicha é queimação de filme.”

“Ele é tão mulher! Depois apanha na rua e não sabe por quê!”

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Sim, são frases originais da língua portuguesa! E o interessante nelas é que a pintosa é sempre a outra. Para garantir a sobrevivência, o negócio é se camuflar na maior quantidade possível de performances tidas como masculinas. O masculino dominante é visto, então, como a forma de se conseguir “respeito” – afinal, “essa bicha-pão-com-ovo não sabe se dar ao respeito! Fica frescando o tempo todo! Por que não ser mais engessado?”. Qualquer traço feminino passa a ser inquietante, algo a ser recusado no modo de agir, de se vestir, de falar – como se o feminino sempre fosse algo menor.

 

Além de facilitar um tipo de invisibilidade, a noção do “gay discreto” é ampla para abarcar também outros preconceitos históricos, como o nosso classismo (nunca se ouve falar em “gay discreto” de classe baixa). E, assim, vamos vendo surgir gays conservadores, assumindo a visão de mundo e o modo de agir daquele que antes era o seu opressor (a figura dominante do homem branco heterossexual, urbano, consumista, elitista etc.).

 

O que não fica sempre evidente é o quanto o discurso pernicioso da normalidade do masculino paira sobre a forma como o afeminado se vê. Para ele, é inquietante apenas ser como é, como gosta de ser. O afeminado carrega sempre uma culpa enorme: ele vive num mundo que o culpa por ser hostilizado, que o culpa por não seguir um parâmetro de objeto de desejo (afinal, quantos por aí “não curtem afeminados”, não é?). Também não é raro que sua condição seja tomada como exemplo de patologia. Na escola, é o menino afeminado que leva sempre pra casa um recadinho da coordenação “por ser diferente”. O recado geralmente redunda em gritos ou sussurros dos pais, preocupadíssimos porque “esse menino não é normal!”. Resulta ainda na procura por psicólogos, por uma “ajuda especializada”.

 

Perigosa”

 

Que grande perigo está por trás desse homem feminino? E por que sua característica principal passa a ser essa? Isso sempre me inquietou. E já me trouxe muito sofrimento conhecer de perto a opressão entre homossexuais baseada no repúdio a tal “afetação”. O caso mais recente foi no último mês. Vi muitos gays falando do ator pornô brasileiro Harry Louis como sendo “afeminado demais”. Para os adoradores de suas atuações, ter visto sua entrevista a Marília Gabriela resultou numa “decepção” e “perda de tesão”, já que ele era sempre “muito macho” nos filmes e, na vida real, “muito mulherzinha”, “falava gesticulando demais”, com “voz fina” e muito “vocabulário de bicha”… Claro, não faltou quem dissesse que o imaginava “mais macho, mais discreto”.

 

Por que isso? Se há algo que não consigo entender é essa opressão interna na comunidade gay. Compartilho aqui mais inquietações e perguntas do que propriamente respostas, mas fico a me perguntar sobre como gays também podem incorporar e refletir valores e pensamentos de uma sociedade machista.

 

A artista estadunidense Barbara Kruger diz numa de suas obras: “Seu corpo é um campo de batalha”. Que a perigosa afeminação seja, pois, uma das armas na guerra.

 

Pintosas de todo mundo, uni-vos!

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Ilustração: Bianca Muto.

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