movimentos sociais
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Ser índia
Sobre a Resistência Aldeia Maracanã e as mulheres na luta indígena. Por Mônica Lima
Publicado em 21/10/2015
Mônica Cristina Brandão dos Santos Lima também é Tripuira Kuarahy, indígena Manaú, tronco Arawak. Mônica faz parte do coletivo Resistência Aldeia Maracanã, composto por um grupo de indígenas que não aceitou os acordos e conciliações propostos pelo governo durante os violentos despejos do edifício do antigo Museu do Índio, localizado ao lado do estádio do Maracanã. A Resistência Aldeia Maracanã defende o projeto da Universidade Intercultural Indígena Aldeia Maracanã (UIIAM). Ela é professora de biologia afastada sem justificativa por solicitação da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) e com o consentimento da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC), a Thyssen-Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) tentou processá-la por denunciar os impactos socioambientais provocados pela empresa. Fizemos algumas perguntas e sugerimos alguns temas para a Mônica que gentilmente escreveu para a Geni sobre o seu afastamento como educadora, o caso da TKCSA, discriminação, projetos de educação popular, mulheres indígenas, reindigienização, Copa e nos prepara o terreno para as Olimpíadas. Ayaya!
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Educação popular
A Aldeia-Cesac (Centro de Etno-Conhecimento Sócio-Ambiental Caiuré) é uma extensão da Universidade Intercultural Indígena Aldeia Maracanã (UIIAM). Nela desenvolvemos um projeto de educação popular com crianças, jovens e adultos da comunidade do Juramento e da Serra da Misericórdia. Somos um laboratório das resistências, um local de vivência, encontros e articulações para fortalecimento coletivo. Justamente por isso fomos os primeiros a sofrer a violência do Estado por causa da Copa das Exceções. No dia 22 de março de 2013 fomos expulsos do nosso território e até mesmo armas supersônicas foram utilizadas.
Nas manifestações que se seguiram se gritava nas ruas “Aldeia Resiste” e ainda se grita. Apesar da expulsão continuamos a disseminar a nossa cultura na Aldeia-Cesac e na Aldeia Maracanã, a fazer o caminho de resgate da memória e da cultura indígena, de valorização da vida e da natureza, no processo de “indianização”. Tratamos de manter nossas aulas, cursos e atividades em diferentes espaços como nas comunidades, nas praças, nas ocupações, universidades e aldeias.
Entendemos que educação indígena tem que ser protagonizada por indígena, e este é o projeto da UIIAM, onde todos são alunos e professores. Hoje precisamos viver o processo inverso, precisamos nos indianizar e perceber como: “em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a ser índio – isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio – podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armada desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la” (Castro, 2006)
As mulheres e a luta indígena
A invisibilidade das mulheres indígenas é exarcebada pelo caso específico da invisibilidade do próprio índio. A concepção da humanidade degradada do indígena incidiu fortemente sobre as mulheres, nós mulheres indígenas somos duplamente aguerridas, pois além do machismo enfrentado por nós na sociedade ocidental patriarcal também temos de enfrentá-lo e combatê-lo nas comunidades indígenas. Somos muito intuitivas e conhecemos a natureza, entendemos seus sinais, somos livres e não escravizadas pelo trabalho e pelo mercado. Também não somos tratadas como “coisas” e objetos sexuais. Estamos livres de seguir os padrões de beleza que o mercado impõe às mulheres não indígenas, seguimos a nossa cultura que tem muito a ver com a espiritualidade e a ancestralidade.
Além da participação na micropolítica das rodas, troca de saberes, rituais femininos e círculos das mulheres, as mulheres sempre participam ativamente da macro política e das decisões em algumas aldeias, como no caso da Resistência Aldeia Maracanã. Tentamos debater e desconstruir o machismo, o sexismo e as demais opressões nos movimentos de resistência. Recentemente, lideranças mulheres da etnia Guarani-Kaowá foram violentadas e uma foi assassinada em Dourados, Mato Grosso do Sul, por pistoleiros de fazendeiros, e isso deve ser exaustivamente denunciado, assim como a violência contra mulher como um todo.
A partir da década de 1990 as mulheres indígenas começam a criar suas próprias organizações ou departamentos de mulheres dentro de organizações indígenas já estabelecidas na amazônia brasileira. Ao lado disso, encontros de mulheres de diferentes etnias têm acontecido nos âmbitos nacional e internacional. O que elas buscam no momento atual é a reivindicação de seus direitos e o fortalecimento de antigas lutas de seus povos, o que faz com que negociem com diferentes atores no contexto interétnico. Seria bom refletirmos sobre como a prática política realizada pelas organizações de mulheres indígenas complexifica a configuração das identidades étnica e de gênero no momento atual do movimento indígena.
Prezamos pela interculturalidade, mas queremos o protagonismo dos projetos que dizem respeito aos indígenas, nós queremos fazer do nosso jeito, sem a cultura opressora e dominante intervindo. Hoje estamos em um momento de processo de indianização (retorno ao ser índio) para manter a humanidade. Somos um ser de ação e ações diretas, e aí ressalvo que não são violências, são autodefesas. Lutamos pelas retomadas de nossas terras. Outros tipo de ação direta, são as aulas e cursos em diversos espaços acadêmicos e não acadêmicos que ministramos, e aulas nas ruas porque na Aldeia é assim: aprendemos com a vivência e necessidade real. Sofremos muita discriminação, não somente dos homens, mas de mulheres que folclorizam nossa cultura que é real e “nossa”.
“Aquela índia”
Eu mesma estou sofrendo um processo de perseguição política-ideológica e assédio moral por parte do Estado, pois sou professora da rede estadual da Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas (DIESP) e fui afastada dos colégios em que ministrava aulas dentro dos presídios. Também sofri ameaça policial por ter sido vista na frente do Complexo Gericinó, em Bangu, na saída dos presos políticos da Copa em julho de 2014.
Sofremos muita discriminação, por exemplo, o diretor da DIESP [Robson Lage] se referiu a mim como “aquela índia” no final do ano passado, quando aconteceu o meu processo de afastamento por perseguição política-ideológica. Além disso, nós indígenas, principalmente as mulheres com seus filhos, vivemos um processo de favelização na cidade. Por isso, a questão do índio urbano é bem problematizada pelo movimento de Resistência Aldeia Maracanã, pois os índios atualmente estão nas favelas e muitas índias estão criando seus filhos sozinhas com dificuldades.
Copa das Exceções
No dia 16 de dezembro de 2013, fomos expulsos sem mandado de nosso território apesar de ter sido emitida neste mesmo dia uma sentença parcial de manejo indígena que nunca foi cumprida pelo governo do estado do Rio de Janeiro. Neste dia Urutau Guajajara subiu em uma árvore e resistiu sem alimentação por mais de 48 horas, os bombeiros se negaram a oferecer alimentos e o enforcaram no momento da retirada. Com Urutau e Ash fui levada ao antigo prédio da Lanagro, ficamos aprisionados e sofremos vários tipos de ameaças e violências. Na época todas estas violações foram executadas em nome da FIFA no contexto da Copa das Exceções.
Para minimizar os prejuízos provenientes dos estádios construídos para a Copa do Mundo – o qual o Maracanã é o estádio em situação mais crítica – a Odebrecht, empreiteira gestora do Complexo Maracanã quer transformar o nosso território ancestral em um estacionamento. A polícia militar e a guarda municipal usam da violência sempre que nós, indígenas, os verdadeiros donos daquele território, nos aproximamos para realizar o manejo indígena, expressar nossa cultura e ministrar nossas aulas, ou seja, vivenciar nossa tradicionalidade e cosmologia, através de nossos rituais, costumes e aulas de vivência e resistência. Durante uma das aulas da UIIAM em 2014, dois seguranças da Odebrecht me agrediram violentamente, jogaram barras de ferro sobre mim o que ocasionou uma lesão crônica em meu pulso mas o Ministério Público Estadual simplemente arquivou o processo, como sou indígena o caso deveria ser tramitado na Justiça Federal.
São muitos os que vêm sendo assassinados pelo Estado e sua política de extermínio de pobre, de populações tradicionais e povos originários, tanto no campo quanto nos territórios de exceção que são as favelas e os presídios! Somos UM! Aldeia REEXISTE!
A TKCSA
Minha militância também ocorre na área socioambiental, a Thyssen-Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) que está em funcionamento desde o segundo semestre de 2010 no bairro de Santa Cruz [Rio de Janeiro] iniciou um processo contra mim por denunciar os impactos socioambientais e na saúde provocados pelo pó emitido por esta empresa. A denúncia de que o pó contém substâncias tóxicas foi realizada em conjunto com outros pesquisadores e publicada em um relatório pela Fiocruz. A Comissão de Direitos humanos da OAB intermediou e tensionou a empresa, inclusive internacionalmente, para que retirasse o processo.
Também fui ameaçada junto com pescadores e moradores da região por milicianos e recentemente esta empresa – que ainda não tem sua licença definitiva – ameaçou os pescadores de Santa Cruz que se colocaram contra a barragem que a empresa construiu no Canal de São Francisco. O Termo de Ajuste de Conduta (TAC) da empresa está para vencer e não podemos permitir que o mesmo seja renovado com mais de 300 condicionantes não cumpridos.
As resistências e articulações
Da articulação passamos a ação revolucionária. Assim, para nossa organização e plano de ação organizamos no ano passado o COIREM (Primeiro Congresso Intercultural da Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraká’nà) na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Naquela ocasião sofremos vários ataques do governo e de índios governistas com objetivo de desarticular o COIREM, dada sua importância. O COIREM iniciou algumas articulações e consolidou outras, como por exemplo, a relação com Aty-Guasu (povos Terenas e Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul), Tupinambás de Olivença dentre outros povos, no qual cacique Babau está incluído, com os Mundurukus (Pará) na luta contra as hidrelétricas do Rio Tapajós, dentre outras etnias em resistência. O Tribunal Popular (SP) e suas etnias construíram o COIREM conosco, assim como os Terenas, Guarani-Kaiowá, Tupinambás de Olivença (Bahia) e indígenas da Aldeia Tekohaw em Brasília.
A UIIAM em sua sede, antes da expulsão, além de receber etnias do mundo inteiro, recebeu professores das Universidades Indígenas da Bolívia e do Equador. Recebemos também Oscar de Oliveira, liderança da luta contra a privatização da água na Bolívia. Realizamos parte do Encontro da Articulação dos Países do Cone Sul, onde muitas etnias estiveram presentes, como maias e incas. Recebemos lideranças africanas na resistência contra os mega eventos, já que vivíamos a mesma situação devido a Copa do Mundo. Em junho de 2015, a Resistência Aldeia Maracanã também recebeu, na Aldeia Maracanã e na Aldeia Cesac, a Caravana 43 pela América do Sul, que denunciou o Estado mexicano no caso do desaparecimento forçado de 43 estudantes de Ayotzinapa.
A conjuntura nos impõe a necessidade de aglutinar forças com os diversos setores oprimidos para garantir os direitos constitucionais ou minimizar os impactos dos vorazes ataques dos setores abastados e dos intolerantes que dominam o Estado, colocando-o contra os seus cidadãos mais vulneráveis e oprimidos.
Atual cenário político
Nossa resistência é cultural e na ação. Nosso atual projeto de resistência é o projeto FRIDA, uma escola popular feminista inspirada em um projeto semelhante que acontece no México, em Oaxaca. Uma companheira nos relatou sua experiência naquela realidade, explicando-nos o teor e intenção dos módulos do curso que já está caminhando para a terceira geração, organizado em encontros de 4 horas, totalizando 22 sessões. Existe, portanto, um modo de formação política e teórica, que se pauta na troca de experiências e na discussão dos feminismos a partir da sua atuação concreta nos movimentos sociais, não se configurando em modelo de aula estritamente teórico e estático. A crítica de um feminismo hegemônico se coloca com reflexões acerca das possibilidades de colonização dentro do feminismo e a desconstrução do âmbito privado como espaço do não-debate. Ressaltamos a importância da adequação de conhecimentos de acordo com o contexto local, e a importância de se falar do racismo no feminismo.
Mônica Cristina Brandão dos Santos Lima ou Tripuira Kuarahy é trabalhadora, mãe, avó, filha, irmã, amiga e militante. Além disso é bióloga, pesquisadora do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora da Rede Estadual de Ensino, especificamente do sistema prisional, entretanto foi afastada desde de outubro do ano passado (2014) por perseguição política-ideológica. Leciona na Universidade Intercultural Indígena Aldeia Maracanã, nas Aldeias e nos espaços de educação popular nas comunidades do Complexo do Alemão pela Aldeia-Cesac (Centro de Etno Conhecimento Sócio Ambiental Caiuré) e na comundiade do Metrô-Mangueira pela ADEP (Coletivo de Ação Direta em Educação Popular).