Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

corpo & política

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Tecnoxamanismos etc.

 Movimento de rede. Por Fabiane M. Borges

 

Publicado em 28/10/2015


 

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Eu vejo o tecnoxamanismo assim: como a expressão da potência de um movimento. Para deixar mais claro, o tecnoxamanismo é um movimento de rede, que de certa forma se engaja em problemas que nosso contemporâneo tem levantado, entre eles aquecimento global, fim dos recursos terrestres, desenvolvimentismo humano x sustentabilidade global, entre outros.

 

O tecnoxamanismo se apresenta como mais uma das coisas que tem sido feitas, elaboradas hoje em dia, para tentar dar conta de pensar nisso tudo, que quer apresentar algumas alternativas, ou buscar algumas saídas. Na tentativa de mostrar o que vejo daqui, vou enumerar algumas dessas questões e comentá-las, lembrando que elas não representam tudo que esse movimento seja capaz de promover:

 

1- Potência do corpo

2- Vivência comunitária

3- Repensar os modos de produção de tecnologia

4- Reativar os conhecimentos ancestrofuturistas

 

Como Potência do corpo (1), vejo o desejo de desconexão (mesmo que temporária) com um mundo de velocidade mental, e a reconexão com o corpo. O que ele está dizendo? Que movimentos é capaz de produzir? A potência do corpo fica geralmente atrofiada por causa dos nossos estilos existenciais sedentarizados nas cidades, no trabalho, nos estudos, na frente do computador, na sobrevivência em geral. Enquanto buscamos nosso lugar ao sol e pomos comida para as crianças em casa, temos que dar conta de sustentar uma sociedade de espetáculo e  afundamos cada vez mais no precariado, na intermitência de projetos, nos editais mal pagos, nas pesquisas acadêmicas mal e parcamente conduzidas, nos trabalhos terceirizados e instáveis. Esse corpo profundo que deixa de ser ouvido reaje na forma de um corpo que adoece, que se deprime, que fica ansioso, carente, sofrido, que exige das noites, das drogas, das baladas, do sexo, do amor,  sua máxima compensação.

 

Para ativar esse corpo vibrátil (como diz Suely Rolnik) é preciso perceber seus movimentos vibratórios produzidos a partir da sua relação com o mundo, que nem sempre passam pela análise da “inteligência”. Suas variações nos dão sinais sobre valores que lhe são importantes mas que lhe  são constantemente sequestrados. Então tecnoxamanismo é claramente um movimento de potencialização do corpo, que conduzimos através de diferentes práticas, como as ocorridas na Goldsmiths University em Londres com o grupo de nanopolitics (2011) onde criamos os rituais ruidocráticos na rua, ou no Instituto Goethe em São Paulo (2014) onde fizemos um laboratório de práticas rituais, ou ainda na casa nuvem no Rio de Janeiro (2015) onde fizemos o ritual de iniciação dos coyotes, ou no I Festival de Tecnoxamanismo em Arraial D’Ajuda onde o grupo OVNEY propôs o silêncio na geodésica feita de galhos de árvore.

 

São muitas as formas de se acionar as potências de um corpo. No nosso caso usamos a linguagem da performance, o uso de plantas de poder, o travestimento, a criação de rituais, diferentes metodologias imersivas que amplie os sinais fracos do corpo cotidiano. Fazer o corpo vibrar é criar antenas no corpo, antenas afetivas que se conectam com outras vibrações do mundo. Essas práticas quando bem experimentadas pode ter como consequência transformações de estilos de vida.

 

Nisso entra as vivências comunitárias (2), que é a busca de constituir espaços de convivência, seja para plantar, para cozinhar, para fazer os rituais tecnoxamânicos ou para se divertir. Estando no Brasil (e na América Latina em geral, como foi o caso do encontro de tecnoxamanismo em Guayaquil no Equador, em 2014), temos o privilégio de acessar também comunidades indígenas, que praticam esse convivencialismo de forma natural, o que é geralmente perdido nas grandes cidades, salvo em momentos de levantes políticos ou festividades.

 

A relação entre indígenas e não indígenas nesses processos de convivência comunitária e ritualística tem sido muito positivo, pelo menos em dois aspectos: primeiro porque promove a troca de saberes entre indígena e não indígenas, com o franco interesse em valorizar as culturas dos primeiros e suas perspectivas, seguindo aqui a linha conceitual de Eduardo Viveiros de Castro quando fala que não se trata de sociedades atrasadas, como certo seguimento da sociedade não indígena insiste em denominar, mas de ontologias diferentes, de visões radicalmente distintas sobre o que é ou pode ser o mundo. Segundo porque as questões que o antropoceno promove são questões partilhadas entre essas diferentes perspectivas. Não é a toa que pela primeira vez temos levado em alta conta palavras de indígenas como o pajé yanomami Davi Kopenawa que no livro Queda do Céu partilha sua cultura e suas preocupações sobre o futuro da Terra, mostrando as ideias do seu povo sobre a exploração dos recursos terrestres que a sociedade branca, como ele diz, tem conduzido. Nesse sentido, esses encontros são como encontros de terráqueos (como diz Bruno Latour), dos que se voltam para a Terra e suas vibrações, e tentam criar campos de convergência com ela. Ou seja, o tema do limite dos recursos terrestres é de interesse de todos os terráqueos, e os identificados com isso tendem a estar do mesmo lado, independente de suas etnias ou culturas. Desse modo, o tecnoxamanismo aposta no movimento de convivência comunitária que pode ser menor ou maior dependendo dos projetos que ele vai suscitando, enquanto se cria a si mesmo, que pode ser um festival (TAZ) ou criação de comunidades em sítios ou nas cidades de forma mais propositiva.

 

Mesmo que essa convivência entre indígenas e não indígenas seja uma prática nem sempre possível, temos várias pessoas dentro da rede de tecnoxamanismo que convivem diretamente com grupos indígenas, ou que desenvolvem projetos lá dentro, como é o caso de Jonatan Sola, construtor de casas de barro, que depois do festival de tecnoxamanismo feito no Itapeco (Instituto de Permacultura) junto com os Pataxós da Terra do Descobrimento no sul da Bahia, começou a fazer um projeto de salvação de nascentes de rio na Adeia Pará, entre outros exemplos. Mas a convivência aqui não é destinada somente a indígenas e não indígenas. Existe vários outros tipos de investimento que estamos impulsando como fazer rádio livre com usuários de hospitais psiquiátricos, caso da nossa participação no Ocupa Nise com a rádio Antena C – Rio de Janeiro 2015), entre outros. A loucura me interessa especialmente pelo fato de ser psicóloga e já ter trabalhado em casas de saúde mental. A ideia de juntar o tecnoxamanismo e as lutas antimanicomiais são ainda incipientes, mas tenderão a se aprofundar ao longo do tempo.

 

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O tecnoxamanismo é também uma rede que repensa os modos de produção de tecnologia (3), pois parte significativa dessa rede vem de outras redes como metareciclagem, submidialogia, bricolabs, que tem como base evidente o movimento de software livre, o que ele representa (ou representou) nessa virada de século. Ou seja, são grupos que trabalham com a noção do faça você mesmo (ou faça isso junto), e nisso entra uma série de atravessamentos, como a cultura hacklab, ética hacker, experiências produzidas no início da implementação dos pontos de cultura aqui no Brasil, a cultura do ruído (noise), a cultura espacial (onde entra escuta de satélites e de planetas, fabricação de antenas e telescópios, construção de naves espaciais (diy), os laboratórios independentes de biologia (biohacklab), dispositivos de interação entre humano e matéria, práticas de uso de tecnologia para resolver problemas locais, como construção das próprias fontes de energia, ou ainda  o que andamos chamando de intranet, que são internets independentes das grandes indústrias da comunicação, que conectam comunidades entre si, como é o caso da Baobáxia da rede mocambos, que produz a rede entre quilombolas, cujo alguns participantes são ativos na rede de tecnoxamanismo como Carsten Agger que produziu o encontro de tecnoxamanismo em Aarhus na Dinamarca (2014).

 

Nesse bojo entra também a cultura de criptografia, de rádio livre, de espectro livre, e essas novas tendências de aproximar a produção tecnológica das necessidades de autonomia e interdependência entre comunidades afins. O movimento tecnológico do tecnoxamanismo tendencialmente se aproxima das bioconstruções, da agrofloresta, da permacultura, das medicinas alternativas,  diversidade sexual, etc. Apesar de ter uma pegada tech, não é uma rede desenvolvimentista, é uma rede que privilegia as discussões sobre o tempo das coisas, o que nos leva para o ponto 4.

 

A reativação dos conhecimentos ancestrofuturistas (4) tem a ver com o tempo. Desde antes do I Festival de tecnoxamanismo, temos trabalhado com os sonhos. Na lista da rede (tecnoxamanismo@lists.riseup.net) por ocasião da chamada para o livro tecnoxamanismo que fizemos em 2014, construímos 8 meses de sonhares, onde integrantes da rede compartilharam seus sonhos nos e-mails, cultivando desse modo a troca de imaginários com mais densidade do que e-mails informativos. Por isso valorizamos o tempo dos sonhos, o tempo da memória.

 

É um movimento de comunicação interespécie que quer se conectar com espécies não humanas como as pedras, os rios, as árvores, os animais, o cosmos. E para isso o xamanismo é fundamental, não só por nos ensinar a percorrer a memória ancestral contida nessas diferentes civilizações, como também o deslocamento perceptivo para o futuro. Utilizamos geralmente a ideia de ficção e ruidocracia (eu uso muito) para pensar o ancestrofuturismo. Ficção vista aqui como essa incrível capacidade de inventar realidades e ao se conseguir alguma consistência nisso, atualizá-las concretamente no mundo (pode ser visto como hiperstição também). A ruidocracia serve para entendermos os diferentes ruídos que as vibrações de tudo que existe comunica, e como nosso corpo responde ao noise dos ecossistemas, dos inconscientes em rede, das manifestações abruptas ou singelas do ambiente.

 

Ancestrofuturismo, então, seria nosso desejo de compreender esse percurso entre passado e futuro, que há muito já não pensamos ser linear. Como a visão xamânica tem nos demonstrado, essa potência de conectividade entre passado e futuro não se manifesta linearmente, mas como ondas, correlações, transcomunicações que nos propicia aventuras perceptivas, que o tempo das timelines e das últimas notícias não propiciam. Muito pelo contrário: elas afunilam o futuro, deixando-nos pensar que o futuro está nas mãos de especialistas como os transhumanistas do Google e da Nasa, que tem sonhado com o corpo 3.0, desmerecendo totalmente o corpo humano (visto como corpo animalizado) e prevêem o upload em rede dos intelectos humanos, desenvolvendo muito precariamente as questões políticas, éticas, étnicas que isso implica, e sem quase nem tocar no assunto do super controle, que é a primeira coisa que nos suscita tal projeto. Ou nos deixam reféns das últimas descobertas científicas, cujas pesquisas se mantém longe da maioria de nós. O tecnoxamanismo não só quer desenvolver ciência, mas a quer de um modo mais distribuído e relacionado com todos pontos levantados.

 

Por fim quero dizer que o tecnoxamanismo tem 3 sentidos bem evidentes.

 

1- A tecnologia do xamanismo (o xamanismo visto aqui como uma tecnologia de produção de conhecimento);

2- Xamanismo da tecnologia (a busca das potências xamânicas através do uso de dispositivos tecnológicos);

3- A conjunção entre esses dois campos de saberes obstruídos historicamente pela igreja católica e posteriormente pela ciência (idade média, renascimento, etc).

 

Lembro a tempo que esse texto é meu ponto de vista, que ele não pretende representar, reduzir ou criar um manifesto tecnoxamânico, ou uma verdade sobre o que isso significa, ele é um eco escrito por alguém que está inserida no processo de construção da rede de tecnoxamanismo.

 

 

Referências:

Bruno Latour – War and peace in an age of ecological conflicts Paris – Lecture prepared for the Peter Wall Institute Vancouver – 2013

Davi Kopenawa and Bruce Albert – The Falling Sky – Ed. Harvard University Press. USA/2013

Eduardo Viveiros de Castro. Metafisicas Canibales – Líneas de Antropología Postestructural. Ed. Kats. Espanha. 2010

Fabian Ludueña Romandini. Comunidade dos Espectros; I Antropotecnia. Ed. Cultura e Barbárie.

Florianópolis SC/2012-2013

Fabiane M. Borges – Prolegômenos para um possível tecnoxamanismo – Revista Cadernos de Subjetividade – 2014

Suely Rolnik – Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

http://tecnoxamanismo.metareciclagem.org

http://baobaxia.modspil.dk/#mocambos/hyndla

 

 

 

Ilustração: Gunther Ishiyama

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