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TUTTOMONDO | Memórias de um vírus que eu não tinha
O bug do milênio no interior de São Paulo. Por Marcos Visnadi
Minha mãe achava um absurdo os dois homens se beijando na vinheta da MTV. E acharia um absurdo toda a minha vida posterior. Eu entrava na biblioteca sem internet procurando qualquer pornografia. De contracapa em contracapa encontrei o Caio Fernando Abreu. Nas fichas do cadastro nunca achei um livro, que adivinhava sujo igual, chamado Porcos com asas. Não sei como descobri que o Caio tinha morrido um ano antes. Foi quando pensei: posso conhecê-lo. Na televisão, um fã dizia: “Ele era um deus pra gente”. Renato Russo tinha morrido naquele dia. Meu pai bufou com a profanação. Eu ainda vivia o cristianismo e pensei em escrever um texto em que diria: “Deus é só um, mas Renato Russo foi grande”. Estava na sexta série, resolvi ser pesquisador independente. Fui à biblioteca e pedi tudo o que tinham sobre aids. Uma cartilha desenhada com umas células de sangue flutuando. Xeroquei 300 páginas. Não li nenhuma.
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Foi a primeira vez que eu vi dois homens se beijando. Sempre soube que teria o vírus. Minha analista perguntou como assim. Foi na vinheta do primeiro de dezembro da MTV. Todos os gays tinham. Minha mãe disse que o Renato Russo, se era tão inteligente, por que pegou? Eu disse que naquela época ninguém sabia como era. Ela disse que todo mundo sabia, sim. Ele pegou porque quis. Ela tinha vivido aquela época. Eu não. Só comecei a viver muito, muito tempo depois.
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Quando passamos de carro por Itu, fui acordado de um cochilo com a voz: “Aqui sua tia Rute morreu”. Só então soube a história completa. Eu a amava quando muito pequeno. Um dia sumiu, não explicaram, criança esquece. Queria ir na igreja de roupa muito curta. Meu vô não deixou. Ela saiu de casa. “Morreu de aids. Ela era prostituta.” Todas as irmãs da minha avó foram prostitutas. Menos minha avó e a tia Isolina. Minha avó perguntava, de tempo em tempo: “Eu tenho aids?”. Eu dizia que não. “O que é aids?” Eu explicava. “Eu sou homossexual?” Eu explicava o que era homossexual. “A senhora é assim?” Ela dizia que não. “Então a senhora não é homossexual.” “No meu tempo não tinha isso.” Eu explicava que tinha, mas que ninguém podia dizer. Ela dizia: “Nossa!”. E voltávamos a ver TV.
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Não lembro quando surgiu o AZT. Eu ainda era virgem. Sempre gripava e ficava muito doente. Comecei a pensar que tinha aids. A primeira vez que fiz o teste, foi escondido. O bug do milênio no interior de São Paulo. Na sala, uma enfermeira mostrava fotos de DSTs em estágio de nojo. Genitais de dor. Chamou um por um pelo nome. Um nome masculino. Repete. Ninguém atende. Repete. Uma travesti levanta constrangida, diz “sou eu, meu nome é tal”. A enfermeira se faz de sonsa: “Ah, desculpa”. Era óbvio que ela fazia por maldade.
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Minha avó morreu. Eu estava em outro país. Voltei pra cá. Fiz o teste, por acaso. O homem do laboratório ficava dando voltas. Eu já sabia. A gente nunca sabe qual vai ser a reação da pessoa. Fazia o teste sempre. Quando comentava com alguém “vou pegar o resultado”, a pessoa dizia “ai, eu preciso fazer também, mas tenho medo”. Gente tonta.
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Minha mãe contou que uma mulher chorava na praça. Ela conversou com a mulher. Na esquina da nossa casa fica a clínica de um cirurgião plástico famoso. Que me consultou quando eu era criança, eu tinha muitas verrugas pelo corpo. Não quis entrar na faca e um dia elas sumiram. A mulher era um homem que queria ser mulher. Tinha vindo de Goiás. Expulsa de casa pela família. Viu o cirurgião na televisão. Ia tentar a sorte. Minha mãe levou um lanche. Será que ela tinha aids também? Já não lembro dessa história.
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Todo mundo tinha. Ninguém que fosse de família.
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Ilustração: Gui Mohallem.