Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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À flor do petróleo

Relatos do Equador. Por Juliana Bittencourt, da Caravana Climática

O Equador está imerso na lógica extrativista – inicialmente criticada, agora promovida pelo governo de Rafael Correa.

 

Correa ganhou sua primeira eleição presidencial em 2007 com apoio de diversos movimentos sociais e setores da esquerda. Realizou mudanças que incorporaram concepções indígenas e demandas históricas dos movimentos sociais – como a auditoria da dívida externa, uma nova constituição que afirma os direitos da natureza e propõe o Sumak Kawsay (ou buen vivir) como forma de ruptura com o modelo neoliberal. A Revolução Cidadã que lidera fortalece o Estado em aparente colaboração com os movimentos sociais.

 

No entanto, Correa é hoje criticado por cair em contradições e as críticas por parte das organizações indígenas, de movimentos sociais e ativistas são cada vez mais fortes. Exemplo disso é a manifestação realizada em 17 de setembro deste ano, violentamente reprimida e acusada pelo governo de ser parte de uma ameaça golpista. A polícia prendeu 53 estudantes que estavam protestando sob acusação de dano ao bem alheio. O governo se pronunciou oficialmente afirmando que a policia atuou de forma profissional, apesar dos estudantes terem sido feridos e não terem recebido assistência médica adequada.

 

O protesto de 17 de setembro teve importância histórica ao dar visibilidade a críticas de parte da esquerda aos rumos do governo de Correa – a mesma esquerda que promoveu as mudanças pelas quais seu governo é conhecido.

 

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Yasuní, petróleo e plurinacionalismo

 

Em 2007, Correa apoiou e defendeu internacionalmente a proposta de deixar o petróleo embaixo da terra e não explorar a região do Yasuní, na amazônia equatoriana, que em 1979 foi declarada Parque Nacional e posteriormente considerada reserva da biosfera. A área também é território do povo Waorani e é habitada por grupos em isolamento voluntário – os clãs Tagaeri e Taromenane.

 

Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos solicitou ao Estado equatoriano que fossem tomadas as medidas necessárias para proteger os direitos desses povos. Entretanto, em agosto de 2013 o governo passou a promover a exploração nessa área protegida, além de comprometer outras áreas do país com práticas extrativistas.

 

A extração do petróleo passou de mãos estrangeiras, como a brasileira Petrobras ou a americana Chevron-Texaco,  a empresas nacionais como a Petroamazonas.  As companhias equatorianas herdaram não somente os poços, a tecnologia e a infraestrutura petrolífera, mas também a contaminação e o desrespeito sistemáticos aos direitos das pessoas que habitam estes territórios.

 

A organização Yasunidos defende o Parque Nacional de Yasuní dos projetos de exploração e impulsiona uma campanha para que o petróleo permaneça embaixo da terra como uma forma de defesa da vida. Ao realizar o monitoramento dos acidentes que anteriormente não eram quantificados nem dimensionados, o grupo concluiu que ocorre um acidente por semana e que não é possível realizar extração limpa, como defende o governo.

 

Com a diminuição das reservas de hidrocarbonetos de boa qualidade no mundo, passou a ser rentável comercializar os hidrocarbonetos não convencionais, cuja extração é mais cara e provoca mais contaminação, além de estarem localizados em reservas de difícil acesso e com muito risco de contaminação (como o mar, a camada pré-sal, lugares distantes – como o Ártico -, territórios indígenas e áreas protegidas).

 

No Equador, as reservas não exploradas são de hidrocarbonetos pesados e extrapesados (tipos de petróleo de difícil extração e refino). A proposta de não explorar essas reservas considera tanto os impactos ambientais quanto sociais decorrentes da extração, e tem como horizonte uma resposta critica às mudanças climáticas que ameaçam a vida. As alternativas a este modelo passam, necessariamente por outras formas de desenvolvimento, locais e independentes das lógicas do mercado.

 

Como a Bolívia, o Equador é um estado plurinacional, mas as autoridades indígenas questionam o exercício dessa plurinacionalidade, já que os projetos extrativistas são impostos sem que se realize a consulta livre, prévia e informada, como previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Também não se consideram as diferentes cosmovisões e posicionamentos em relação à natureza, como a rejeição à exploração da natureza para acumulação de capital ou para a manutenção de um modo de vida insustentável nos grandes centros urbanos.

 

O Sumak Kawsay passou a ser uma série de instâncias no Estado equatoriano, incluindo uma secretaria, enquanto Yasuní é negociado por um valor que sustentaria a burocracia no Equador por apenas dois anos.

 

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Pensar o território a partir do feminismo

 

O extrativismo petroleiro, mineiro e agroindustrial penetra o território com violência, as empresas entram sem considerar a existência de comunidades indígenas e campesinas e não respeita a biodiversidade destes territórios. Todas as formas de exploração tem em comum a subordinação da vida e a desvalorização de práticas de conservação e cuidado. Muitas vezes, para entrar em um território, os dirigentes são subornados – como no caso da nacionalidade Siekopai, da qual lideranças ganharam uma viagem ao litoral do Equador com tudo pago por uma empresa petrolífera estadunidense.

 

O coletivo Miradas Criticas del Territorio desde el Feminismo se formou para pensar as relações entre território e feminismo. No livro Yasuní en Clave Feminista, o coletivo propõe que, ainda que a proposta de defender Yasuní não tenha sido gerada a partir do feminismo, é possível pensar com ela as relações entre ecologia e feminismo. O grupo considera que as iniciativas que não levam em conta as relações de poder internas e generalizadas dentro das comunidades reproduzem padrões de desigualdade, e que o modelo cultural, patriarcal e capitalista invade e viola sistematicamente os corpos e os territórios.

 

Para o coletivo, o território é patriarcalizado através do extrativismo, como quando as comunidades rejeitam a exploração e ainda assim os projetos são impostos, a região é militarizada e a população é reprimida para garantir o funcionamento das empresas. Com a distribuição dos empregos, as empresas concedem aos homens das comunidades trabalhos precários e mal remunerados, mas que criam uma hierarquia quando eles passam a ser os que concentram a (pouca) renda.

 

As condições de trabalho também embrutecem os trabalhadores e deterioram o tecido social e comunitário. Um exemplo é a aparição de zonas de prostituição em territórios indígenas amazônicos e o aumento do consumo de álcool nas comunidades. As atividades contaminam o solo, o ar e a água, e provocam uma série de doenças, além de acabar com a soberania alimentar ao prejudicar a agricultura de subsistência.

 

O ecofeminismo permite perceber criticamente estas relações de subordinação promovidas por uma cultura que inferioriza a natureza e as mulheres em lógicas masculinas, que com poder político e econômico decidem sobre o destino dos territórios.

 

Pensar as práticas e as resistências de mulheres em diferentes contextos da América Latina abre maiores possibilidades para aprender a partir de iniciativas – como a de Yasuní – e reverter as lógicas de sistema econômico que sistematicamente viola a vida.

 

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Construindo redes de confiança

 

As raízes da penalização do aborto estão nos discursos morais, religiosos e científicos que determinam a utilidade das mulheres como úteros sociais, função naturalizada e estereotipada para a reprodução da força de trabalho e das estruturas conservadoras da sociedade.

 

No Equador, como em quase toda a América Latina,  o aborto é penalizado social e institucionalmente. Cinco mulheres já foram processadas por abortar. Debates mais abertos sobre o tema foram dificultados, tanto por grupos religiosos quanto pelo pronunciamento de políticos – entre eles o próprio Correa. O presidente usou como critério a “defesa da vida desde a sua concepção” baseado unicamente nas suas convicções pessoais como católico.

 

Nesse cenário, a Coordinadora Juvenil por la Equidad de Género (CJE), uma organização autônoma, reúne jovens que defendem os direitos sexuais e reprodutivos, entre eles o aborto seguro para todas as mulheres. Uma das ações da CJE é disponibilizar informação segura sobre o aborto, estratégia radical de contrainformação que alcança toda a América Latina, já que o conteúdo é acessado por pessoas de muitos países e também do Brasil, apesar de estar em espanhol.

 

Na página, é possível saber como realizar um aborto com o uso de medicamentos e receber acompanhamento através de um chat e de uma linha telefônica. Na falta de políticas públicas voltadas para o tema da saúde da mulher não basta simplesmente informar como um aborto pode ser realizado. Parte importante do trabalho da CPJ é pensar e problematizar as condições nas quais as mulheres decidem fazer ou não um aborto, já que este é um debate de saúde pública, amplo, cuja responsabilidade é de todxs.

 

A CJE luta pela criação de condições adequadas para que as mulheres decidam sobre os seus corpos e procura quebrar tabus e chamar atenção para a violência adicional que acarreta a criminalização do aborto, incluindo a morte de mulheres que o realizam em condições inseguras ou insalubres. No início, a CJE participou de espaços institucionais, mas passou a fortalecer as organizações autônomas de jovens e agora procura criar outras condições sociais para que xs jovens possam decidir livremente sobre seus corpos.

 

A CJE publicou um informe sobre as atividades do blog entre 2010 e 2013, com análises estatísticas – mas também sensíveis – dos relatos de mulheres que procuraram informação, entraram em contato e interromperam uma gravidez. A conclusão é que não existe uma típica mulher que aborta: não se pode definir uma idade, religião ou classe social. Porém, o ponto em comum é que todas têm que lidar com a  violência estrutural que dificulta uma decisão livre e informada sobre o tema.

 

Nem todos os comentários feitos na página são publicados, já que se realizam muitos ataques à iniciativa, mas com uma edição prévia a CJE procura dar espaço a formas mais livres de pensar o tema e a demonstrações de solidariedade. O site é fundamental para entender a necessidade de informação segura e acessível. No endereço, é possível encontrar informação sobre a saúde da mulher e educação sexual, além de visibilizar alguns relatos para que outras mulheres se sintam apoiadas em sua decisão.

 

 

Referências

 

Pungarayaku. El horror de los crudos pesados. Boletim da Acción Ecológica. Dezembro de 2013, nº 169.

 

Maldonado, Adolfo. La forma Occidental de extraer Petróleo. http://www.oilwatch.org/doc/

 

Martínez, Esperanza. Más de 100 buenas razones para No sacar el petróleo del Yasuní. Pachamama, Amazon Watch, Action Aid, 2008. Quito, Equador. http://pt.scribd.com/doc/29054057/Yasuni-mas-de-100-Buenas-Razones-Para-No-Sacar-El-Petroleo

 

Agradeço a Paula Mutante pelas conversas informais e interessantes sobre feminismos e ações diretas. A Fabricio Guamán por apresentar criticamente a situação atual do Equador. A Stephanie Altamirano Herrera e a Fabián David Bolívar Guayacundo que apresentaram o informe do blog http://jovenesdespenalizacionaborto.wordpress.com/ no espaço Nina Shunku, em Quito. Ao coletivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo. A todxs que lutam contra os projetos extrativistas no Equador.

Ilustração: Aline Sodré.

A Caravana Climática é uma gira de ação pela América Latina. O objetivo é chegar a Lima, no Peru, para a COP20 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. No caminho, realizaremos algumas visitas a comunidades em luta por justiça climática e um projeto de documentação audiovisual que será publicado na nossa página. Para a Geni, escreveremos uma série de textos a partir do encontro com associações de mulheres, coletivos e individualidades feministas e outros temas afins que compartilharemos durante o trajeto.

Leia outros textos da Caravana Climática e da seção Geni no Mundo.

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